
Expressar sem dialogar, eis o saber primordial do cinema, infelizmente em falta nos últimos tempos. Um filme sem palavras exige do diretor o domínio da fisicalidade, da poética da síntese, para que o sentido possa emergir. “Flow”, candidato da Letônia aos Oscars 2025 de melhor filme internacional e de melhor animação, faz isso a partir da imitação da corporalidade da natureza e dos animais. E diz muito, sem falar.
A palavra “flow”, do original em inglês, pode significar vazão tanto quanto fluxo. Flow, neste filme, representa os dois. Um fluxo tão intenso (de água, de inconsciente, de ideias) que transborda em criação.
Seu diretor de 30 anos, o letão Gints Zilbalodis, usa os animais para passar mensagens, como fazem os fabulistas. Os principais recados do filme dizem respeito à solidariedade (entre espécies diferentes que precisam se ajudar carinhosamente para sobreviver) e à finitude (são belamente surreais suas representações da morte e das ruínas, estas que indicam vestígios da antiga presença humana).
Trata-se de um criador em fluxo e em forma, a conduzir uma animação em 3D de 3,6 milhões de dólares que às vezes pode parecer muito filtrada, estilizada dos contornos de animais reais, mas que é imbatível quando mimetiza os movimentos. Por meio de sua direção, os animais-personagens ganham a rapidez da vida. Só assim o gato protagonista de Zilbalodis (o diretor roteirizou o filme ao lado de Matiss Kaza), além de sete existências, pode exibir um milhão de olhares.
A essa narrativa que por vezes parece reproduzir as situações encadeadas dos sonhos, juntam-se uma sonoplastia precisa e a dublagem das expressões vocais dos outros bichos presentes, como o cachorro, a capivara, o lêmure e o pássaro-secretário. E assim, sem ouvir uma palavra sequer, sentimos o fluxo de um dilúvio arrebatador.