Uma tela de De Kooning inspirada em um filme de De Santis

“Escavação”, óleo sobre tela de
De Kooning, 1950

A pintura “Escavação” foi realizada por Willem de Kooning em 1950, inspirada no filme “Arroz amargo”, dirigido no ano anterior pelo italiano Giuseppe de Santis com as interpretações centrais de Silvana Mangano, Doris Dowling, Vittorio Gassman e Raf Vallone. Segundo o pintor estadunidense nascido na Holanda (1904-1997), o ponto de partida da pintura foi uma cena do longa-metragem neorrealista em que mulheres trabalham em um campo de arroz.

No óleo sobre tela estão sua pincelada expressiva e a organização distinta do espaço em planos soltos, com contornos abertos. Apropriadamente intitulada, a composição do artista expressionista abstrato reflete o processo de elaboração da pintura. Trata-se de uma construção intensiva. As camadas de tinta da superfície foram raspadas durante meses até que o efeito desejado surgisse.

A estrutura dinâmica de linhas caligráficas em forma de gancho define partes anatômicas – formas de pássaros e peixes, narizes, olhos, dentes, pescoços e mandíbulas humanos – e revela a tensão particular entre representação realista e abstração, inerente ao trabalho de De Kooning.

(Com informações do The Art Institute of Chicago, onde a tela está exposta)

Doris Dowling (segunda a partir da esq.) e Silvana Mangano (quarta a partir da esq.) em cena de “Arroz Amargo”, de De Santis, 1949

Enquanto seu Monange não vem

As perfumarias aqui do centro têm imensos corredores vazios com prateleiras cheias de ofertas. Por isso não entendi a fila de hoje de manhã, que se dobrava muitas vezes na entrada da loja.

Estariam vendendo ingressos pro samba? Sorteando presentes? Contratando lojistas?

Cheguei-me à menina de top e shortinho acompanhada de uma senhora de óculos que talvez fosse vizinha ou parente, evangélica, possivelmente, e perguntei:

– Black friday?

– Não.

– Vão dar presentes pra vocês?

– Que presente o quê! Até parece que eles dão alguma coisa pra gente. Vamos é comprar na promoção.

Não perguntei mais. Precisei me recuperar da cutucada existencial. De onde viemos, onde estamos e pra onde vamos a bordo de nossos carrinhos de Impala e Monange?

sem madonna sou

não sintonizo a globo jamais, porém no passado assisti ali deliberadamente à transmissão do início da invasão de bagdá, uma vergonha com hora marcada.

não vejo jornal nacional, portanto, nem telenovela nem huck, graças a deus.

as últimas coisas da emissora percebidas por mim, durante ocupada juventude, quiçá tenham sido o funeral do tancredo, o show do joão gilberto com a rita lee e a morte do sena.

já me diverti com a madonna no passado, mas nunca a levei a sério, jamais constituiu meu ícone pra coisa alguma (quem me liberou foi wilhelm reich), embora admire seu racional, o saber lidar com as massas & sua psicologia.

ela é mais velha do que eu e talvez por isso minha coluna vá melhor que a dela.

não gosto de show de dublagem, embora assista sem muito gosto, eventualmente, aos lip syncs do reality da ru paul.

a primeira vez que vi a imagem de marielle no telão foi durante um show emocionante dias depois da sua morte, dado pela brilhantíssima neneh cherry, com a presença paga de seus grandes músicos, sim, no sesc pompeia.

nascida também há seis décadas, igualmente sabedora de nós, a linda afilhada do don cherry tocou assim no dedo quente da ferida brasileira sem que bebel gilberto, ao abrir a apresentação, tivesse se ocupado minimamente do brutal assassínio.

dito isso, e não necessariamente na ordem/desordem acima, que todo mundo possa encontrar diversão no que é de divertir, ver o que quiser ver e amar quem deseje até dizer chega, como falava minha tia alzira do nordeste e do coração.

Pasolini sobre Chaplin e outros fundamentais

Em 16 de abril de 1889, nascia Charles Chaplin. Aqui Pasolini escreve sobre a importância de Carlitos e outros diretores na formação de seu cinema:

“Não pertenço a nenhuma corrente cinematográfica, exceto de forma muito vaga.

Não sou profissional de cinema e por isso não fiz o noviciado, não estagiei, não tive professores, não me encaixei numa corrente. Eu vim de uma área completamente diferente e, portanto, agi de forma bastante irregular.

Mas eu tinha uma constelação de nomes comigo: em primeiro lugar eu diria Carlitos, seguido, mas em alguns aspectos diria até superado, por Buster Keaton. A outra constelação é a de Carl Dreyer, eu diria mesmo que é a mais importante de todas. E depois um artista absolutamente obsoleto para um diretor italiano, ou seja, o diretor japonês Mizoguchi.

Não sei se formam uma corrente, mas formaram, pelo menos nas linhas externas, aquela estrutura e aquele jeito estilístico típicos de mim. Tanto em Chaplin como em Keaton, em Dreyer e talvez em Mizoguchi, porque nunca estudei bem Mizoguchi em câmera lenta, faltam os típicos planos-sequência que são a principal característica do neorrealismo.”

PIER PAOLO PASOLINI em “Il mio sacro è qui”, ensaio de 1970 publicado por “Avvenire” em 2014

via Città Pasolini

Coppola, à espera de um lugar ao sol de Hollywood para seu “Megalopolis”

À véspera de completar 85 anos no dia 7 de abril, o diretor Francis Ford Coppola apresentou seu novo filme, “Megalopolis”, cujo projeto iniciou em 1983, em uma sessão especial para magnatas da distribuição, da exibição e da publicidade. O filme explora os embates entre sonhadores e pragmáticos durante a reconstrução de uma cidade acidentalmente devastada. Adam Driver, Shea Le Boeuf e Jon Voight estão no elenco.

Ao final da sessão, apurou o “Hollywood Reporter”, os poderosos não disfarçaram o mal-estar. Eis um produto impossível de vender. O filme não distingue bandidos de mocinhos, mostra umas esquisitices indie lá pelo meio e se desenvolve em mais de duas horas sob um ritmo longe de ser frenético.

Nos bastidores, os magnatas consideram que o pessoal alternativo deveria cuidar do bebê. O problema para que isso ocorra, já se pode imaginar: os alternativos não têm os 100 milhões de dólares que Coppola calculou necessários para a distribuição, a exibição e a publicidade. O diretor precisa retornar o que gastou sozinho para produzir o filme, alegados 120 milhões de dólares obtidos com a venda de parte de sua vinícola estimada em 500 milhões. Quanto ao streaming, só ele não faz tudo.

O cineasta deve estar habituado ao processo. “O Fundo do Coração”, lançado em 1981, faliu seu estúdio. A história se repete como farsa, quiçá alegoria para o fim de um sonho de cinema. Coppola terá energia para empreender via crúcis semelhante depois quatro décadas, ademais no ambiente de derrocada atual? Ele deve se lembrar todos os dias do que leu entre os escritos deixados pelo filho roteirista, morto em um acidente de carro: “A arte não dorme”. Tantos deuses do crepúsculo quebraram estúdios no passado sem deixar de ser deuses.

Já preciso ver este filme, que no mínimo deve ter funcionado, aos magnatas, como um espelho.

Quando a notícia da morte de Cobain chegou à redação

Mais uma croniqueta em torno da ausência de pensamento que resultou nas serpentes cantanhedes do presente

Lutei por você, Kurt

Na revista que em dias melhores derrubara um presidente, concluíamos a edição de cultura às quartas-feiras, e às sextas nos revezávamos (o outro jornalista da área e eu) no plantão de fechamento geral. A ideia do nosso plantão era absorver qualquer urgência dita cultural antes de a publicação sair para rodar na gráfica.

Eu era a escalada a esperar por eventuais informações inadiáveis de cultura quando a notícia da morte de Kurt Cobain apareceu na sexta-feira 8 de abril de 1994 (só posteriormente se estabeleceu que o falecimento ocorrera três dias antes).

Postada diante da máquina de fax, recebi a notícia como um golpe e fui até a direção, umas quatro mesas à frente, para informar a morte – o mais duro, convencer o meu superior de que o fato merecia espaço já naquela edição da revista.

O secretário de redação responsável pelo fechamento tinha os cabelos pretos repicados, lisos de oleosidade, na altura do pescoço. Os olhos fundos eram cultivados durante as noites perdulárias passadas de táxi em táxi, de bar em bar, às vezes compartilhadas em parte (a do jantar) por alguém da redação como eu. Sempre necessitada de carona pra casa, eu estava apta a exercer a companhia breve de certa forma solicitada por alguém tão só, ainda que breve em termos. Em uma dessas ocasiões ele me fez sentir presa no filme After Hours de Martin Scorsese, a escorregar por Pinheiros como se houvesse sido decretada uma noite sem fim.

No entanto, não era mau como os outros, o secretário. Não gritava, não jogava garrafas vazias de cerveja no chão. Apesar de sua idade (hoje eu diria que nem tivesse chegado aos 40 anos), imerso na fumaça dos cigarros sorvidos por entre os dentes desordenados do tipo ingleses, ele agia como um lulu dos 1960 e de seus mitos, a glória e a repressão enfrentadas pelos companheiros do passado. Era cavernoso, encucado, um drácula típico para quem o observasse pela primeira vez.

Claro estava que a revista, em parte editada por ele próprio, comentara já os paranauês reinantes da música pop, mas isso não lhe entrava na cabeça, visto que vivia em outro tempo, até outro lugar. Por muitos segundos pareceu firmemente em dúvida sobre se valeria a pena desfazer a diagramação para incluir o obituário de Cobain, já que não contava com outros parâmetros para estabelecer se aquilo era mesmo importante. A redação não dispunha de tevês ligadas e os jornais do dia seguinte, que ele sorvia diariamente com a intensidade dos cigarros, careciam de ser impressos. Era principalmente um leitor de jornais e de revistas, não de livros, como convinha à época a um verdadeiro, sólido e bem posto jornalista monoglota brasileiro.

O principal a ocorrer naquele infortúnio inesperado chamado Cobain: a notícia vinha comunicada a ele unicamente pela coisinha sem lastro que eu parecia ser. Desconfio que desconhecesse o prodígio de Seattle, assim como ignorava River Phoenix, o ator igualmente estadunidense que morrera no ano anterior e não merecera matéria extensa na publicação.

Lutei então para que déssemos a morte do músico em pelo menos duas colunas com foto numa seção de urgência que abria a revista. A seção introdutória de textos curtos fora chupada diretamente da Time, assim como todas as outras da revista, por Sr. Democracia, o diretor de redação substituído (“temos de copiar o que é melhor e a Time é a melhor”). O secretário acabou concordando que fazia sentido publicar o necrológio, e sobrou pra mim. Tinha de me manter ligeira, embora não fosse fácil escrever tão rapidamente assim naquela redação.

O arquivo da editora era precário. Nem sonhávamos com a existência da internet. E produzíamos em máquinas de escrever, ao contrário do que ocorria no mais festejado jornal paulista desde a década anterior. A redação da revista, situada numa espécie de grande mezanino de madeira em prédio antigo e abafado, diante da linha do trem, me dava frequentemente a impressão de estar prestes a desmoronar.

Me virei como pude, ou seja, obtive os dados de que mais precisava a partir de uma matéria feita por mim mesma, pouco tempo antes, sobre o grunge, um estilo que a imprensa havia inventado para rotular o surgimento de bandas como Nirvana e Pearl Jam. Guardava algumas revistas em minha mesa justamente para necessidades assim.

Durante a escrita, dei-me conta de um pequeno fato que hoje parece óbvio para quem acompanha a história do rock. Cobain se suicidara aos 27 anos, a mesma idade em que morreram Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones. Achei que muita gente notaria o fato em seus textos publicados naquele fim de semana. Mas não. A revista enfumaçada, com seu necrológio modesto, fora a única brasileira a ressaltar a entrada de Cobain para o que ficou conhecido posteriormente, em tom macabro, como o Clube dos 27. Não recebi elogio algum por isso, claro. O secretário nem me cumprimentou na segunda-feira seguinte. Fiz o meu dever, e ele respirou de alívio.

Se todos fossem iguais a vocês

Faz três dias que mergulho numa gastroenterite inquietante. Na verdade, ela obriga a aquietar-me, enquanto me provoca espamos frequentes. Não se trata de nada grave, garantiu-me o médico, que está no exterior e respondeu a meus questionamentos por WhatsApp. Mesmo que houvesse gravidade e eu sofresse mais, não acharia minha dor maior do que a experimentada por tantos palestinos e brasileiros no exato momento em que escrevo.

Dito isto, sonhei. Um sonho típico de quem digere mal, acometida por malfeitores invisíveis. Sonhei que ocupava a poltrona de uma sala de cinema lotada, onde amigos sorriam submissos para o governador de São Paulo.

Já seria tormenta suficiente visualizar à distância de dois metros, mesmo que em sonho, a efígie bexiguenta do serial killer, certo? O que dizer então de vê-la passar-se por decente diante daqueles por quem eu nutria compadrio?

O governador sorria de volta para meus amigos como se estivesse em campanha, apertando-lhes as mãos com as duas palmas juntas. Talvez meus amigos buscassem dinheiro, editais, e fosse esse seu caminho para conseguir os meios? Eu poderia compreender. Mas a coisa não parava aí. Entre o público, havia jornalistas do tipo mais comum que conheci, os submissos arrogantes. Nem sei se alguém distante desse meio vai entender, mas essa gente existe. No meu sonho, eles viam o governador como um sujeito inteligente, cujos bons atributos não poderiam ser facilmente contestados. Se o patrão está com ele, com ele estamos!

Sim, eu pensava comigo, o governador não pode ser contestado porque vocês, jornalistas de política, se esquivaram da contestação. Eu tentava acionar os números comprobatórios da escalada de miséria, morte e abandono da população em todas as áreas sob esse governo, mas os dados não me chegavam à mente com nitidez. E, assim, eu me sentia mais uma responsável pela construção da imagem do governador como um técnico competente, macho da porra toda, até gente boa.

Foi então que aconteceu como se eu tivesse 20 anos de idade na redação da Folha, diante da corja de puxa-sacos usuais da categoria. Mesmo não sendo jornalista de política, eu podia constatar o óbvio. Mesmo sem os números em mãos, eu me servia da observação direta do caos cotidiano e dos apelos dos desprovidos. Comecei a gritar.

“Covarde assassino” eram as duas palavras que eu dirigia ao governador, sem medo nenhum. Ele teria me ouvido? Seus capangas? A milícia? Não me importava. A cada aplauso, um grito meu. Até que ele se levantou para o meu lado e bradou:

“Por isso sento o trabuco!”

E meus amigos, quietos…

Como se fosse natural, eu deixava a sala de cinema para dirigir um carro veloz. Não fazia isso por temer a autoridade, mas meus próprios amigos, cujos corpos e mentes pareciam invadidos por outra força invisível, que certamente os comeria por dentro. Pelo menos me sentia arriscada e feliz ao volante, praticamente uma Grace Kelly nas escarpas da Riviera, imbatível na capacidade de contornar o precipício. Cary Grant, eu sei, teria me sorrido.

Acordei suando. A sensação de ter sido próxima em pesadelo do governador emberebado e barrigudo equiparava-se à de meu sistema digestivo em looping.

Um ladrão em que a casaca de Grant jamais caberia…

Matando marielles todos os dias

Cidinha Campos denunciou Brazão no parlamento inúmeras vezes e não foi ouvida pelos integrantes da casa. Em razão da ausência de providências contra o assassino, livre para legislar pela milícia, continuou a ser ameaçada de morte, chamada de puta por quem ela não hesita em classificar como “serial killer”, ademais brindado com passaporte diplomático por Bolsonaro.

Mulheres parlamentares, as mais ignoradas, são caladas à força no Brasil. Uma polícia manipulada, dominada, engorda seu poder corrompido matando pobres, forjando inquéritos policiais de intimidação contra quem poderia denunciar os desmandos políticos.

E como não seria assim, se a imprensa dá as costas à população? E só agora, após a determinação de um governo democrático, a polícia fez o que já deveria ter feito?

O pior, sempre o pior pra mim, é que o jornalismo brasileiro não tenha corrido atrás desse monstro por tantos anos. Principalmente, que nenhum dono de jornal o tenha feito, pois um jornalista não age só, ou só a muito custo pessoal pode agir. Bons jornalistas têm de ser hábeis negociadores dentro de um jornal. Sofrendo os diabos.

Hoje, pleno 2024, o Estadão ousa um editorial ridículo, associando o sistema de cotas ao aprofundamento do racismo, estabelecendo que sua prioridade é retroceder politicamente para garantir o fim do ensino público e aumentar a concentração financeira.

Vergonha, vergonha dos nossos donos de jornais, dos banqueiros esgarçados de poder político, gente do crime como qualquer outra, a matar marielles todos os dias.

O extermínio, um vício

43 mortes na Baixada Santista até agora.

E o secretário de segurança deste estado anuncia-se orgulhoso do que fez e fará, assim como o governador, que corre a Israel para ver como se encaminha de fato a extinção de um povo.

E o povo?

O povo não tem quem brigue por ele.

O povo não pode protestar por pura impossibilidade, já que a polícia o ameaça à luz do dia, em suas casas e até em seus enterros.

E nós?

Anestesiados, né?

Cansados de saber como opera a justiça?

Hoje vi um vídeo no qual o corpo de um jovem com um buraco na cabeça é carregado sem vida por outros jovens. Negros, em sua maioria. Mas brancos também.

Pobres.

Se não foi fácil de ver, imagine então, naquele lugar, ser.

Pobres e jovens que não importam, para quem não há comoção popular, nem uma pálida movimentação de justiça.

Há muito tempo vivemos de Gaza em Gaza a somar os sonhos interrompidos. O veneno do extermínio tornou-se vício. Um concentramento.

Enquanto isso, a classe média da Baixada sai em passeata para defender a meticulosa concentração desse extermínio.

Dá nem alegria de existir enquanto a polícia militar também existe.