O crepitante Carax, em duas lições

O filme de Leos Carax que será precedido de um curta de Alice Rohrwacher e JR, a partir de 17 de abril

“Não sou eu” talvez resuma Leos Carax. Este seu documentário de 2024, em exibição no IMS Paulista, no IMS Poços de Caldas e no Cine Arte UFF, em Niterói, a partir de 17 de abril, precedido do curta de Alice Rohrwacher e JR “Alegoria urbana” (no qual Carax também atua), apresenta-se como chave interpretativa para a obra do diretor francês de 65 anos. 

Realizado para uma exibição jamais concretizada pelo Museu Pompidou – e que perguntava “onde está você, Leos Carax?” -, o filme, exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, outubro último, apresenta o cineasta à sua maneira poética. Não sendo um inventor, mas um mestre (isto se aceitarmos as categorias determinadas aos artistas por Ezra Pound), Carax espelha e arredonda o cinema de arestas de Jean-Luc Godard, este sim o criador de uma nova trajetória cinematográfica, cuja voz aparece em um trecho deste documentário solicitando-lhe um encontro.

Diretor de “Os amantes de Pont-Neuf” (1991), Carax escondeu a narrativa tumultuada da nouvelle vague em um invólucro de clareza fotográfica e argumentativa. Foi um filósofo do amor. E também, como se autodefine neste documentário, um heterossexual e judeu do século XX que buscou a liberdade e a igualdade, a seu ver escassas na Europa dos Le Pen, naquele Israel de Netanyahu, na China de Xi Jinping, nos EUA de Trump ou na Rússia de Putin. 

Carax, por isso mesmo, não esteve em nenhum lugar – ou, pelo menos, não em um novo lugar. A sua perspectiva foi a de revisitar os lugares já percorridos, acrescentando-lhes um espírito de época tantas vezes indesejado. Perseguidor que advoga o déjà-vu, Carax defende repetir planos como recurso para construir alegorias do presente. O documentário, em que ele também cita trechos de suas obras, refaz uma estética tardia de Godard: cenas de arquivo do cinema e do jornalismo colam-se a palavras e letreiros, formando um mosaico poético-reflexivo de efeitos crepitantes.

Iria tudo muito bem se sua narrativa não contradissesse um dos princípios do cineasta, exposto no documentário: o de que o belo contém a imperfeição. Por que então Carax não abraça as camadas reflexivas pontiagudas que elevam a beleza do cinema de Godard? Se um rosto é belo justamente por conter a assimetria de uma pinta, por que retirá-la?

Carax cochicha a Naïm El Kaldaoui o sentido da
revolução, no curta “Alegoria urbana”

Carax parece bem melhor – ou coerente – ao atuar como um diretor canastrão de balé no curta “Alegoria urbana”, de Alice Rohrwacher e JR, também presente na 48ª Mostra. O seu personagem ensinará ao menino interpretado por Naïm El Kaldaoui o sentido da revolução: ela deverá mostrar aos acorrentados da caverna de Platão que as sombras às quais se acostumaram não são a realidade, antes constituem sua prisão.