A bienal histórica

Com 121 artistas, a 35ª edição do evento celebra a imaginação radical, especialmente assinalada nas obras afroindígenas

“Peixe”, grafite, acrílica e pigmento natural sobre tela, da série “Mangue”, de Rosana Paulino, 2023

As portas da 35ª Bienal de São Paulo abriram em setembro para um mundo raramente visto, em especial para um Brasil múltiplo, expandido no tempo e vibrante em suas manifestações artísticas. O presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira, classifica-a como “histórica”. Intitulada “Coreografias do Impossível”, em cartaz até 10 de dezembro, ela busca as origens da arte, acrescidas das conquistas do tempo.

Tais “coreografias” vêm representadas por 95 artistas e 26 duos ou coletivos, a maioria da América do Sul. Mais de 50% são negros e 12,4%,  indígenas. As mulheres formam 47%, 2,5% delas, mulheres trans. Uma quase impossibilidade foi a presença inédita do quarteto de curadores, que jamais trabalhara junto e atuou sem hierarquias internas. A escritora Diane Lima e o antropólogo Hélio Menezes vieram da Bahia. Grada Kilomba, artista e escritora, é portuguesa, e o antropólogo Manuel Borja-Villel, pesquisador espanhol. 

Os quatro desenvolveram a ideia de “coreografar o possível dentro do impossível”, que resultou em um convite às imaginações radicais para mergulhar no desconhecido. O termo coreografia, segundo eles, realça o desenho de movimentos que atravessam o tempo e o espaço, criando novas formas e imagens. Interessaram aos curadores ritmos, estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos que os saberes extradisciplinares transformam em exercícios poéticos.

A expografia, desenho segundo o qual a exposição vem apresentada, resultou em mais um desafio nessa direção. No pavilhão Ciccillo Matarazzo, ao subir a rampa para o mezanino, o espectador nota os vãos entre os vários pavimentos fechados por superfícies curvas. Em idêntica cor branca do prédio, eles seguem a sinuosidade dos guarda-corpos modernistas. Para o escritório de arquitetura Vão, responsável pela mudança temporária, tratou-se apenas de manipular o desenho de Oscar Niemeyer já existente. Mas, com a modificação, a maneira de percorrer a bienal mudou. Do primeiro pavimento, o público segue para o último andar, e então volta ao segundo. A descida ocorre pela rampa externa, e nessas idas e vindas o espectador pratica a própria coreografia.

O contraste entre a racionalidade modernista do prédio e as novas estruturas de tempo e espaço propostas pelo grupo curatorial talvez não passe despercebido ao espectador. “O projeto do Vão me parece dialogar contra e a favor da ideia modernista”, acredita o curador Hélio Menezes. “Este prédio consiste basicamente de três avenidas, uma em cima da outra, quilômetros que se percorrem horizontalmente, do início ao fim. Com a perspectiva mudada, trabalha-se contra a ideia inicial, mas também a favor, já que se acrescenta a circularidade à linearidade e é possível percorrer o mesmo lugar de forma inesperada.”

O curador vê como extraordinário o fato de a Bienal de São Paulo diferir de suas irmãs no mundo. “Além de gratuita, ela tem grande apelo popular, o que muda bastante o trabalho curatorial, pois nos dirigimos a todos os públicos, não a um nicho especializado. Esperamos que os visitantes se abram a aprender coisas novas. Contudo, mesmo se portarem ideias preconcebidas, que aceitem rever suas posições e se sensibilizem para novas vivências.”

As obras indígenas deslumbram, especialmente quando se sabe que o dinheiro obtido com a venda desses trabalhos serve para comprar mata virgem e protegê-la do desmatamento. Destaca-se o Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin), fundado há dez anos como um coletivo baseado na Terra Indígena Kaxinawá (Huni Kuin) do rio Jordão, no Acre. Seu início remonta o final da década de 2000, quando lideranças Huni Kuin, especialmente Ibã e três de seus filhos, Acelino, Bane e Maná, começaram a realizar oficinas para registrar em desenhos os cantos, mitos e práticas de seu povo. 

Muitas obras do Mahku são traduções visuais dos cantos huni meka, conhecimento tradicional que acompanha os rituais de nixi pae com a ayahuasca – uma espécie de chá com potencial alucinógeno preparado com plantas amazônicas e utilizado há séculos na América do Sul. As experiências visuais provocadas pela bebida, denominadas mirações, fornecem matéria-prima para os trabalhos. As pinturas e os desenhos também figuram narrativas míticas e histórias ancestrais sobre o surgimento do mundo e a divisão entre as espécies.

A aparição de mãe Stella de Oxóssi na instalação “Floresta de Infinitos”, dos artistas Ayrson Heráclito e Tiganá Santana

São várias as obras nesta bienal a evocar encantamentos afroindígenas. É o caso da instalação “Floresta de Infinitos”, que o artista plástico Ayrson Heráclito, integrante do pavilhão brasileiro vencedor do Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, idealizou junto ao músico e historiador Tiganá Santana, autor de “Maçalê”, o primeiro álbum a conter, em 2009, canções em línguas africanas no Brasil. Os dois celebram as forças da natureza em uma sala com projeções de imagens múltiplas, sonorizada e decorada por bambus de reflorestamento. As imagens de ancestrais originários, de mãe Stella de Oxóssi e dos ativistas Chico Mendes, Bruno Pereira e Dom Philips surgem entre as evocações de rios, pássaros, folhas, flores, insetos, biomas extintos.

“A gente brinca com a ideia de abismo, de mistério, de aparições”, conta Santana, que compõe, canta e arranja a trilha da incursão. “Aparecem seres biomórficos ou antropomórficos, pessoas que mantinham conexão com a religiosidade afrobrasileira ou indígena. Algumas dessas aparições são sons da natureza, com minha voz a evocar inquices [divindades], atabaques a compor as forças protetoras e o som de instrumentistas como a clarinetista e saxofonista Joana Queiroz.” Enquanto o público passeia, os sensores acionam as aparições. “Se você permanece no local na hora em que ela surge, irá vê-la. Aparição é aparecer para quem aparece.”

Que a 35ª Bienal de São Paulo nos mostre o trabalho resplandecente da veterana brasileira Rosana Paulino, doutora em artes visuais especializada em gravura pelo London Print Studio, já terá funcionado como um grande presente. Sua série “Mulheres-Mangue”, trípticos em acrílica sobre tela aos quais dedicou os últimos cinco anos, ensejam firme defesa da natureza esmagada, defendida, contudo, pelas comunidades locais em luta por seu santuário enraizado. O trabalho é coerente com a formação da artista. Durante a infância paulistana em Pirituba, sua mãe, que bordava à noite, ensinava-lhe e às três irmãs a revolver a terra, cavar buracos e enchê-los com água do rio Tietê. A plasticidade desse material permitia-lhes construir os únicos brinquedos que poderiam ter, pequenas esculturas de tartarugas, boizinhos, mesas, cadeiras, bonecos, cenários. A terra é a matéria desta artista desde sempre. E, por toda a sua obra, ela dá centralidade à mulher negra, sem a hipersexualização de que é vítima na sociedade brasileira.


“Nahene Wakame”, acrílica sobre tela de Acelino Sales Tuin, do coletivo Mahku, 2022

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