Quando a notícia da morte de Cobain chegou à redação

Mais uma croniqueta em torno da ausência de pensamento que resultou nas serpentes cantanhedes do presente

Lutei por você, Kurt

Na revista que em dias melhores derrubara um presidente, concluíamos a edição de cultura às quartas-feiras, e às sextas nos revezávamos (o outro jornalista da área e eu) no plantão de fechamento geral. A ideia do nosso plantão era absorver qualquer urgência dita cultural antes de a publicação sair para rodar na gráfica.

Eu era a escalada a esperar por eventuais informações inadiáveis de cultura quando a notícia da morte de Kurt Cobain apareceu na sexta-feira 8 de abril de 1994 (só posteriormente se estabeleceu que o falecimento ocorrera três dias antes).

Postada diante da máquina de fax, recebi a notícia como um golpe e fui até a direção, umas quatro mesas à frente, para informar a morte – o mais duro, convencer o meu superior de que o fato merecia espaço já naquela edição da revista.

O secretário de redação responsável pelo fechamento tinha os cabelos pretos repicados, lisos de oleosidade, na altura do pescoço. Os olhos fundos eram cultivados durante as noites perdulárias passadas de táxi em táxi, de bar em bar, às vezes compartilhadas em parte (a do jantar) por alguém da redação como eu. Sempre necessitada de carona pra casa, eu estava apta a exercer a companhia breve de certa forma solicitada por alguém tão só, ainda que breve em termos. Em uma dessas ocasiões ele me fez sentir presa no filme After Hours de Martin Scorsese, a escorregar por Pinheiros como se houvesse sido decretada uma noite sem fim.

No entanto, não era mau como os outros, o secretário. Não gritava, não jogava garrafas vazias de cerveja no chão. Apesar de sua idade (hoje eu diria que nem tivesse chegado aos 40 anos), imerso na fumaça dos cigarros sorvidos por entre os dentes desordenados do tipo ingleses, ele agia como um lulu dos 1960 e de seus mitos, a glória e a repressão enfrentadas pelos companheiros do passado. Era cavernoso, encucado, um drácula típico para quem o observasse pela primeira vez.

Claro estava que a revista, em parte editada por ele próprio, comentara já os paranauês reinantes da música pop, mas isso não lhe entrava na cabeça, visto que vivia em outro tempo, até outro lugar. Por muitos segundos pareceu firmemente em dúvida sobre se valeria a pena desfazer a diagramação para incluir o obituário de Cobain, já que não contava com outros parâmetros para estabelecer se aquilo era mesmo importante. A redação não dispunha de tevês ligadas e os jornais do dia seguinte, que ele sorvia diariamente com a intensidade dos cigarros, careciam de ser impressos. Era principalmente um leitor de jornais e de revistas, não de livros, como convinha à época a um verdadeiro, sólido e bem posto jornalista monoglota brasileiro.

O principal a ocorrer naquele infortúnio inesperado chamado Cobain: a notícia vinha comunicada a ele unicamente pela coisinha sem lastro que eu parecia ser. Desconfio que desconhecesse o prodígio de Seattle, assim como ignorava River Phoenix, o ator igualmente estadunidense que morrera no ano anterior e não merecera matéria extensa na publicação.

Lutei então para que déssemos a morte do músico em pelo menos duas colunas com foto numa seção de urgência que abria a revista. A seção introdutória de textos curtos fora chupada diretamente da Time, assim como todas as outras da revista, por Sr. Democracia, o diretor de redação substituído (“temos de copiar o que é melhor e a Time é a melhor”). O secretário acabou concordando que fazia sentido publicar o necrológio, e sobrou pra mim. Tinha de me manter ligeira, embora não fosse fácil escrever tão rapidamente assim naquela redação.

O arquivo da editora era precário. Nem sonhávamos com a existência da internet. E produzíamos em máquinas de escrever, ao contrário do que ocorria no mais festejado jornal paulista desde a década anterior. A redação da revista, situada numa espécie de grande mezanino de madeira em prédio antigo e abafado, diante da linha do trem, me dava frequentemente a impressão de estar prestes a desmoronar.

Me virei como pude, ou seja, obtive os dados de que mais precisava a partir de uma matéria feita por mim mesma, pouco tempo antes, sobre o grunge, um estilo que a imprensa havia inventado para rotular o surgimento de bandas como Nirvana e Pearl Jam. Guardava algumas revistas em minha mesa justamente para necessidades assim.

Durante a escrita, dei-me conta de um pequeno fato que hoje parece óbvio para quem acompanha a história do rock. Cobain se suicidara aos 27 anos, a mesma idade em que morreram Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones. Achei que muita gente notaria o fato em seus textos publicados naquele fim de semana. Mas não. A revista enfumaçada, com seu necrológio modesto, fora a única brasileira a ressaltar a entrada de Cobain para o que ficou conhecido posteriormente, em tom macabro, como o Clube dos 27. Não recebi elogio algum por isso, claro. O secretário nem me cumprimentou na segunda-feira seguinte. Fiz o meu dever, e ele respirou de alívio.

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