Com os pés na porta

O poeta, professor e pensador da geração beatnik Claudio Willer, morto aos 82 anos neste 13 de janeiro de 2023, lamenta na reportagem abaixo, que fiz com ele em agosto de 2012, o uso não autorizado da sua tradução para um poema de Allen Ginsberg

Willer, alguém para quem a poesia significava vivenciá-la e um tradutor consciente da dificuldade de seu ofício

Claudio Willer tem asas nos pés. Asas porque poeta. Pés porque a poesia, como ele a entende, deve ser perseguida com o próprio corpo, o ritmo marcado no chão. Aos 72 anos, nascido em São Paulo, filho de judeu austríaco e mãe católica alemã, este gói cuja avó foi morta pelos nazistas representa o pensamento beat do Brasil. Não exatamente aquele de Jack Kerouac ou Allen Ginsberg, estilizado nos filmes, mas sua ambição libertária, a de experimentar a vida como poesia.

Willer é beatnik calmamente, mesmo quando em sua fala surgem inimigos como a acomodação da cena cultural brasileira, a mediocridade burguesa ou, recentemente, a usurpação de seus direitos de tradutor. “Você sobrevive de eu fumar?”, pergunta ele um pouco depois de pedir à esposa Maninha, pintora surrealista, que abra as janelas do apartamento onde me recebe na Vila Madalena. É que o cigarro o levará à palavra certa.

 

O autor de Estra­nhas experiências, poesia cursou Psicologia e Sociologia, mas, na São Paulo retratada pelo diretor Ugo Giorgetti em Uma Outra Cidade, decidiu-se por viver dos versos libertadores ou indiretamente deles, traduzindo quem os compõe, analisando sua obra ou alinhavando sua filosofia, como faz em um pós-doutorado tardio. A sua cidade de juventude, “provinciana pro melhor e pro pior”, foi seu início. Nas ruas ele andava a pé, na piscina da Associação Cristã de Moços nadava dois mil metros e nas mesas de bar poderia tomar “porres homéricos” enquanto transcorresse a leitura coletiva de O Poeta de Nova York, de Garcia Lorca, ou da Ode Marítima, de Fernando Pessoa. 

 

O poeta percorrera um caminho curto do surrealismo à “rebeldia romântica” sem dar a mínima para os versos de João Cabral de Melo Neto ou de qualquer outro formalista da poesia. “Desde o começo, o beat me interessava como mensagem no seguinte sentido, o de estar acontecendo uma rebelião juvenil. Era um movimento rebelde coletivo, com aquele impacto, provocando enorme escândalo.” Além da poeta Hilda Hilst, que se tornou sua amiga mesmo depois de ele a ter “enterrado” em um performático “necrológio”, amava a “anarquia individualista” de Roberto Piva, a veia teatral de Décio Bar, o talento de Antonio de Franceschi ou a verve de Rodrigo de Haro.

 

“O Claudio sempre foi político e basicamente uma pessoa de grande generosidade. Equânime, ele divide e organiza as coisas, com muita bondade”, disse De Haro a Camila Hungria e Renata D’Elia, autoras de Os Dentes da Memória, livro sobre esta turma beatnik que, a bem da verdade, nem mesmo se intitulava assim. Culto, com domínio da língua inglesa, foi Willer, segundo o editor Massao Ohno, quem trouxe a poesia dos americanos ao grupo. Por necessidade social, espiritual ou poética, ele e os amigos de 20 anos não só escreviam ou declamavam poesias, como invadiam “os casarões de Higienópolis”, bebiam no Paribar da praça Dom José Gaspar e eventualmente quebravam o consultório do psiquiatra que tivesse levado um amigo à internação. 

 

Willer não foi, portanto, menino fácil, embora a “burguesia filisteia” contra a qual ele e seus amigos lutavam igualmente apresentasse um corpo de dificuldades. Naquela São Paulo burguesa havia autoritarismo nas escolas, o trânsito vivia congestionado e as filas de ônibus eram comuns. O sexo estava confinado em zonas e as mulheres se dividiam entre as noivas intocadas e as prostitutas. Depois do final da década de 1960, com a chegada da contracultura, os burgueses locais “queimaram os próprios miolos” com cocaína “em vez de encher o saco da gente”. E mesmo Willer passou a entender a vida de outro modo. Existir pela poesia se tornou perigoso. Como lembra Roberto Piva em Uma Outra Cidade, os meninos da periferia que nos anos 1960 liam Baudelaire e tinham “os rostos rurais dourados queimados de sol” haviam sido substituídos por “pálidos criminalóides”, perambulando feito zumbis.

 

Aquele Willer beatnik transformou-se no pensador do beat que fala em universidades, tem bolsa da Fapesp e vive de muitos cursos. Ele acha que poderiam lhe estender um tapete vermelho maior. Ou, pelo menos, respeitar o caminho que trilhou. Willer é o tradutor de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e de Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg. Para traduzir Ginsberg, usou mais de duas décadas de experimentos. Em 1984, a L&PM publicou Uivo sob a consultoria do próprio Ginsberg, que endossou, entre outras, a tradução de leaping towards the poles of Canada & Paterson por pulando nos postes dos pólos do Canadá & Paterson.

 

Por conta de tantas dificuldades enfrentadas, Willer estrilou ao ver a sua tradução ser aplicada sem autorização à legenda brasileira do semidocumentário Uivo, dirigido por Robert Epstein, durante a Mostra Internacional de Cinema de 2010. “Reclamar com o Leon Cakoff ainda bem que não reclamei, porque ele morreria logo depois. Deixei por isso mesmo, mas mandei um email para meu editor, Ivan Pinheiro Machado, que não se interessou pelo assunto.” Em julho deste ano, ao assistir ao filme no canal Cinemax, Willer viu sua tradução mais uma vez em cena, sem créditos ou agradecimentos. Lá estava o verso I saw the best minds of my generation como ele o traduzira, Eu vi os expoentes da minha geração. “Mas, desta vez, como se tratava de tevê, o pessoal foi cretino. Em vez de usar a palavra ‘caralho’, como eu a escrevi, puseram ‘pênis’. Em lugar de ‘adoçaram as trepadas’, ficou ‘adoçaram as vaginas’. E a expressão ‘ofertaram seu ânus’ substituiu ‘deixaram-se enrabar’.”

 

O poeta expôs a situação em seu blog. Isa Carvalho, coordenadora da empresa 4 Estações, me diz que, em função do pouco tempo disponível para a legendagem durante a mostra, a tradutora Ludmila Breitman usou a versão contida no blog poemasbeatnick.blogspot.com.br, que não creditava a autoria: “Ela pede desculpas pelo problema causado e nós, como coordenadores, vamos reforçar essa questão na reunião com todos os tradutores esse ano.” Muito diferente foi a reação do canal HBO-Max (que programa novas sessões dias 12, 15 e 25 de agosto e 1 de setembro). A HBO não informa que empresa fez a legendagem. E diz: “A HBO adquire os direitos dos filmes que vão ao ar nos seus canais com todas as liberações necessárias para a exibição. Não foi registrado até o momento nenhum problema de direitos com o filme O Uivo, que está sendo exibido no canal Max. Sendo assim, a HBO não possui comentários sobre qualquer questão envolvendo o filme.” A editora do livro resume em uma frase sua posição oficial: “A L&PM não foi consultada sobre a utilização da tradução”. Neste momento, Claudio Willer se contenta com a repercussão do caso no blog. “Mas se essa versão passasse no cinema, eu fazia sair de cartaz. Se fosse comercializada em DVD, eu fazia prender.” Eis os pés com asas do poeta próximos da porta, perigosamente.

 

 

PS:

O pensador Claudio Willer, que viveu pela poesia, era uma pessoa de quem qualquer um prezaria se aproximar. Um personagem da cidade ou de “Uma Outra Cidade”, como no documentário de Ugo Giorgetti em que a cena de sua juventude literária, ao lado de Roberto Piva e de outros, ganhava detalhe.

Um dia, encontrei uma boa desculpa para entrevistá-lo, quando ele se irritara ao ver sua tradução para “O Uivo” usada sem autorização ou respeito. Depois da entrevista acima, nós nos falamos várias outras vezes, sem registro. E ele gentilmente aceitou o convite para a noite de autógrafos de um livro que eu escrevera, “O cineasta historiador”. Ainda em 2022, esteve presente numa roda virtual em comemoração ao ciclo de filmes documentais de Ugo Giorgetti dentro do Festival É Tudo Verdade, a última vez em que nos falamos.

Willer, sem você perdemos a alegria, mas por você continuaremos a resistir.

Claudio Willer ao meu lado em 2015, enquanto lhe redijo uma dedicatória do livro que acabara de lançar

Como cheguei à flânerie na Paris de 1990

Fiz jornalismo cultural a maior parte do tempo em que exerci a profissão, sempre a sofrer imensos problemas de saúde decorrentes dessa escolha, depressões, gastrites, síndromes irritáveis, cáries… Minhas complicações com o jornalismo brasileiro sempre foram totais, giraram em torno de seu modo de ser, de haver e de se impor a mim, fosse por assédio moral e sexual dos superiores ou por implicância com qualquer coisa que eu escrevesse e propusesse, como uma vez fizeram troça da minha ideia de falar sobre dança numa edição de quarta-feira…

Por exemplo, eu era bem jovem, 26 anos, quando me vi fundadora e editora de um caderno cultural. E depois de certo tempo a sofrer o de sempre, pressões e enxovalhos, pedi demissão do tal jornal. Nessa época ainda era possível requerer a um patrão que nos demitisse e ele aceitar isso, o que permitia a nós, demissionários, retirar nosso fundo de garantia (isto se o empregador tivesse depositado o valor devido todos os meses…) e usá-lo de nosso jeito. Demiti-me em 1990 e planejei a primeira viagem à Europa.

Ao comprar dólares com o valor da rescisão, vivi minha grande sorte. Quando Fernando Collor assumiu a presidência, eu me tornei quase a única pessoa com dinheiro no Brasil. A besta quadrada collorida, que mal andar sabia, não conseguira confiscar meu dinheiro! E assim fui a Paris, depois ao interior da França, ao litoral e ao norte da Itália, deslumbrada com tudo, visitando, fotografando, comendo e bebendo com prazer desse privilégio. Já sem um tanto desse dinheiro, retornei depois de um mês de viagem à mesma Paris por onde comecei. E lá morei mais um mês em troca de cuidar do filho pequeno de uma família que esperava outro nenê.

Neste mês a viver por ali com meu francês ruim, senti toda a ojeriza do parisiense a pessoas “inferiores” feito eu, ainda por cima em ousada flânerie. Uma vez passeava sozinha pela avenida Champs Elysées e uns jovens baixinhos italianos começaram a me cantar e a me sorrir. Eu tinha pernas bonitas e nem sabia mais o que fazer para afastá-los, eles que me perseguiam pela rua, quando o menorzinho se aproximou, me perguntando de que região da Itália eu era: “Di Napoli? Di Roma?” E então achei um jeito de me livrar deles, sorrindo também: “Sono brasiliana!” Fugiram de imediato de mim, e até hoje me divirto em pensar que talvez tivessem me achado uma travesti brasileira alta, muito da bonita e elegante.

Bem, continuei andando tranquilamente, às vezes sob olhos ruins, pela rua e de metrô, embora uma noite tenha sentido como ameaçadora a presença de um homem em um vagão vazio. Paris pode nos abraçar como não desejamos…

O resto dos meus dias foi no parque com o bebê de um ano, assistindo a shows como o de Marianne Faithful no La Pigalle ou andando pela cidade com minha câmera fotográfica analógica Yashica, que comprei graças à contribuição monetária do meu amado tio Bissa, seu presente a mim antes de morrer com câncer. Eu mal sabia focalizá-la direito manualmente, a única opção de foco que tinha.

Fotografava bobagens que poderia ver nos livros, quadros e esculturas do Louvre ou do d’Orsay, e às vezes, um pouco temerosa, a rua em si. Hoje meu filho descobriu um álbum pequeno com essas fotos em papel e me mostrou. Fotografei um sem-teto, clochard embriagado que fechou os olhos ao protestar contra mim diante da câmera, o clássico descanso ao sol das famílias no Jardin de Luxembourg, um elegante jogo de cartas à sombra das árvores, a fachada de um cinema de arte, as esculturas representando Marcello Mastroianni e Massimo Troisi em “Che Ora È?”, filme de Ettore Scola de 1989 que os franceses chamavam de “Quelle heure est-il?” (assisti à ficção atraída pela vitrine e a saudade da Itália me pareceu imensa…)

Entre as fotos, havia ainda a tímida tentativa de mostrar um homem a passear com uma mulher na cadeira de rodas, o céu de maio sobre o qual se formavam nuvens finas e, sim, o estranho veículo conduzido por jovens que sugava das calçadas o cocô dos cães…

Antes que eu empreenda novas buscas por esses arquivos, mostro-lhes estas imagens sentimentais.

O clochard embriagado fecha os olhos ao protestar diante da livraria
O clássico descanso ao sol
no Jardin de Luxembourg
O elegante jogo de cartas
à sombra das árvores
As esculturas representando
Troisi e Mastroianni em “Quelle heure est-il?”, na vitrine do cinema
A fachada de um cinema de arte
Um passeio bem assistido
O céu de outono
O veículo que chupava o cocô dos cães

Mattoli à brasiliana

Roberta Gomes, Maurício Tagliari e Marco Mattoli na Biroska, em 2019

Mau, meu marido, era já amigo dele havia décadas quando finalmente o conheci, em um desses cinemas da avenida Paulista, em São Paulo, durante a première de “Mundo Cão”, em 2016. O estranho filme de Marcos Jorge inspirado em “Un Borghese Piccolo Piccolo”, de Mario Monicelli, embora ancorado na Globo Filmes, não faria sucesso algum.

Eu diria que Jorge, embora tendo estudado cinema em Roma, não havia absorvido o espírito frio como aço da commedia all’italiana, algo, cá entre nós, que seria muito difícil mesmo para qualquer um fazer. Seria preciso ter estado lá, naquelas duas décadas posteriores ao fim da guerra, sofrendo aquela Itália de um classe média sonegadora e pequena (alguma semelhança com o que acontece em outro tempo e lugar?), e além disso, estar munido das garras do socialismo crítico de Monicelli, para entender aquele tipo médio italiano que nem pequeno burguês chegara a ser. 

Contudo, com toda a parcialidade possível, eu havia entendido que a trilha sonora composta por meu marido, o Maurício Tagliari, para “Mundo Cão”, com a participação do Marco Mattoli, dera a dimensão da malandragem que a ficção havia tentado mostrar sem conseguir.

Mattoli cantava ali com a bossa de um Wilson Simonal. Uma coisa propositadamente suingada, a evocar com muita beleza um cantor que a história não repete. E assim o filme ganhava o sal que sua direção (ou a produção de Daniel Filho) falhara em ter. 

Em certo momento da première nos vimos juntos, Mattoli e eu, os sem estrela, presos num corredor, e ele que mal havia sido apresentado a mim começou a me falar de filhos. Do meu, que então estagiava no estúdio onde ele trabalhava… “Ele tem talento, musicalidade, é um menino muito bacana”, foi dizendo. Agradeci e comentei alguma coisa em relação ao conflito geracional que temos de enfrentar em relação aos nossos meninos, e ele começou a me falar da filha arquiteta, que tanto respeitava.

Pronto. Desde então, sempre me senti próxima dele, do modo como a gente sente um igual, embora nunca mais tenhamos conversado muito tempo sozinhos, e com tanta franqueza. Certeza que eu não fora a única com quem Mattoli dividira um momento assim, pois se uma coisa ele fazia como ninguém era tratar a humanidade como uma situação a seu alcance.

Em uma ocasião na qual desejava introduzir o Maurício ao imenso talento musical da compositora Roberta Gomes, por exemplo, cozinhou meticulosamente um macarrão a carbonara para nós, e eu notei pela primeira vez a seriedade por trás daquele sorriso. E ele só extravasou a enorme alegria de novo pra mim quando soube que eu tinha relação com a “Animal”, revista que ajudei (ou atrapalhei) o Rogério de Campos a fazer. Era um amante de quadrinhos. Liberatore!

Fui a muitos shows do Mattoli nestes últimos anos, do Clube do Balanço ao Samba do Marcos, ou àqueles de que participava como convidado. Bebíamos e ríamos muito depois. O último foi o show da big band Nova Malandragem, que ele produziu com Maurício para o selo Mundaréu Paulista, criado pelos dois. Que descoberta! Que músicos além de seu tempo! “Feliz com essa juventude, né, querido?”, eu lhe perguntei. E ele, sério, cabeça baixa: “Gosto muito também”.

Em maio fiz aniversário, convidei-o a almoçar com a gente, mas ele andava por uma Ilhabela ensolarada (ainda bem!), com sua linda Betânia. Não deu.

Meu italiano sambista, figura rara, tive tanta sorte em lhe conhecer! Você viverá para sempre na gente, como um pedaço de luz.

Tudo pode dar certo: minha entrevista com Geraldine Chaplin

Em outubro de 2015, aproveitei a rara chance que a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo me dava e, tremendo nas pernas, entrevistei a atriz Geraldine Chaplin, hoje com 78 anos. Me avisaram de um dia para o outro que eu teria dez minutos apenas para conversar com ela no saguão do hotel Renaissance da alameda Santos, em São Paulo. Cheguei lá antes, fui a primeira e abusei da sorte – de dez passei para vinte minutos de conversa, e ela não reclamou. Pessoa rara, raríssima, não recusou responder qualquer questão, riu comigo e me deixou fotografá-la com o celular, imagem que posto aqui. Todos os grandes são simples! Alguns dias depois, tentei entrevistar o diretor Wolfgang Becker, de “Adeus, Lenin”, filme no qual ela atuava, e ele foi tão diferente, um porco comigo, com perdão aos porcos. Quis que eu pagasse a cerveja que tomava no Maksoud Plaza e reclamou de só haver Heineken no bar. Paguei foi nada! Mas o filme com Geraldine era razoável, até muito bom quando ela aparecia nele. Na entrevista a seguir, a atriz atribui sua carreira à sorte. Diz que seu pai jamais quis lhe ensinar atuação, embora ela muito solicitasse. Chaplin, ela conta, demonstrava muito menos bom humor que sua mãe, Oona. Ele não sabia quem era Ingmar Bergman e só se interessava pelos próprios filmes. Cinéfila, Geraldine amou ter conhecido “Limite” e toda a fatalidade a envolver Mário Peixoto, seu diretor.

Com a camiseta das
Tartarugas Ninja e o crachá
da Mostra, posando para
meu celular: os grandes
são simples

Um mar de tranquilidade cerca Geraldine Chaplin. Aos 71 anos, sem jamais impacientar-se, a atriz enfrenta o burburinho em direção à mesa do saguão do hotel paulistano onde conversará sobre sua vida e seus filmes. A presidente do júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo tem os cabelos pintados de preto e sua franja se vê encimada por um par de óculos de sol de cor laranja, que ela usa como uma tiara. Veste calça, tênis e uma camiseta com a estampa do desenho animado Tartarugas Ninjas. Uma estrela em “Kaminsky e eu”, o primeiro filme dirigido por Wolfgang Becker depois de “Adeus, Lênin”, de 2003, ela sorri sempre e fala rápido. “Humor é a única maneira pela qual você pode lidar com a tragédia da vida”, acredita, disposta a enfrentar qualquer pergunta, mesmo as inevitáveis a envolver Charles Chaplin, seu pai.

A filha maior em
“Luzes da Ribalta”, dirigida
por seu pai

Diz-se que o diretor mal viu os filmes em que ela atuou, mas a atriz assegura o contrário. Por exemplo, Chaplin assistiu a “Doutor Jivago”, no qual ela interpreta Tonya, em 1965. Era sua segunda participação em um longa-metragem depois de ter sido escalada, no mesmo ano, para estrear ao lado de Jean-Paul Belmondo em “Par um beau matin d’été”, de Jacques Deray. Ela havia seguido a carreira de bailarina depois de uma breve aparição, aos 8 anos, em “Luzes da Ribalta”, dirigida por seu pai. Mas o balé, que exercera com brilho até mesmo no circo, não lhe dera compensação financeira. “Não podia voltar para casa assim sem nada, não teria como encarar meus pais. E então pensei: ‘Talvez possa me tornar uma atriz.’ Eu tinha um bom sobrenome, não é? Aquele que me abriria portas. E saí atrás de empresário, simples assim.”


Em “Doutor Jivago”, seu segundo

longa: o diretor David Lean
a escalou porque ela
se parecia com uma russa

“Doutor Jivago” surgiu de um acaso. “O diretor David Lean me viu na capa de alguma estúpida revista feminina e, ao saber que eu era uma Chaplin, disse a sua produtora: ‘Ela parece russa, vamos testá-la’.” O longa correu animado, como sua carreira em mais de uma centena de filmes. “Toda a minha vida foi sorte, sorte, sorte”, diz, sem ironia. “Mas o sobrenome Chaplin não tem a magia de antes. Minha filha Oona, uma atriz maravilhosa, bem o sabe.” O fato é que depois de não se entender estupenda em “Doutor Jivago” pediu ao pai as orientações que auxiliariam seus futuros desempenhos. “Oh, você é a melhor coisa do filme”, respondeu-lhe aquele cujo nome, à época, talvez estivesse próximo de significar todo o cinema. “Queria seus conselhos e ele não me dava. Nem ligava para o que eu fazia ou apenas agia como meu pai.” De todo modo, ela desejou ser atriz, apaixonar-se pela profissão. “Mas não é uma carreira fácil, sabe? O estudo dos seres humanos que fazemos. Os deserdados que representamos. Como chegar até eles?”

No filme “Peppermint Frappé”,
do então marido Carlos Saura:
Chaplin amou

Talvez tenha se sentido atriz pela primeira vez ao lado do diretor espanhol Carlos Saura, com quem esteve casada por doze anos, e para quem atuou em clássicos como “Cria Cuervos”, de 1976. Quando partiu para viver com ele sob a ditadura franquista, seu pai arregalou os olhos: “Você enlouqueceu?” E ela sentiu então de perto a diferença entre lutar contra o totalitarismo imersa no regime ou a milhas distante dele. “Todos na Espanha odiávamos o dramaturgo Fernando Arrabal, porque ele atacava a ditadura acomodado em Paris”, recorda-se. “Percebi, naqueles anos com Saura, que os filmes poderiam ser mais, quem sabe mudar o mundo. Hoje é preciso reconhecer que provavelmente os filmes não mudem o mundo. Se assim fosse, vários deles, como os de meu pai, talvez tivessem transformado alguma coisa.”


Chaplin, que esteve na Suécia para receber um prêmio,

viu um filme de Bergman, gostou,
mas não tinha ideia de
quem fosse o diretor

Ao contrário do que sugerem relatos de época que informam o apreço de muitos diretores, como Vittorio de Sica, às avaliações positivas do criador de Carlitos sobre suas obras, Chaplin não assistia a muitos filmes. “Só os via quando estava escrevendo os seus, porque tinha de escolher com quem trabalhar. Caso contrário, nada de filmes, exceto os que ele fazia.” Uma vez foi à Suécia receber algum prêmio e, quando voltou, perguntou à esposa: “Vimos esse filme, tão bonito, tão incrível, daquele, como é o nome mesmo?” E Geraldine: “Ingmar Bergman?” Para que Chaplin respondesse: “Acho que é esse mesmo”. Ele não tinha a mínima ideia de quem fosse quem no cinema. Seu marido, Saura, Chaplin conheceu por necessidade, e gostou muito de “Peppermint Frappé”, de 1967, em que ela atuou.

Como uma documentarista
em “Nashville”: a única
orientação do diretor
Robert Altman foi que
ela o seguisse e imitasse

Um pouco à moda do pai, Geraldine buscou a originalidade, e suas interpretações mesclaram graça, profundidade e estranheza. Muitas vezes, um papel inesquecível representado por ela nasceu de uma orientação inesperada. Em “Nashville”, por exemplo, ela surpreendeu ao interpretar uma documentarista que sai atrás dos nomes da cena country estadunidense. “Eu não conhecia o trabalho do diretor quando aceitei o papel. Uma amiga que trabalhava com ele sugeriu meu nome”, conta. “Ao me aceitar para o filme, Robert Altman deu apenas esta indicação: ‘Siga-me e me imite.’ Fiz como ele pediu. Alguns dos filmes de que participei são muito bons, e eu fiquei tão feliz por ter atuado neste. Ninguém imaginou que virasse o que virou. Uma obra-prima, ao contrário de ‘Mash’, do mesmo diretor, que envelheceu.”

Na direção oposta à do pai, Geraldine tem muito a dizer sobre o cinema, novo ou antigo. Sentiu-se maravilhada, por exemplo, ao descobrir “Limite”, realizado por Mário Peixoto em 1931, restaurado e exibido durante a mostra. “Foi um choque completo para mim. Os planos são mágicos nesse filme melancólico, tão poético. E de pensar que, velho, o diretor ainda tentasse explicar essa magia jamais retornada, como se fosse um Arthur Rimbaud retirado da poesia, mas aos 21 anos.” Apesar de tão observadora, nem sempre deu sorte com os filmes de que participou, especialmente os dirigidos pelos novos. Ela destaca um raro caso de felicidade ao aderir a uma obra de estreia. Em 2007, interpretou uma médium em “El Orfanato”, um sucesso de crítica e público na Espanha. O diretor Juan Antonio García Bayona a quis para “A Monster Calls”, com lançamento então previsto para 2016, por sentir que ela lhe dava sorte. Contudo, de início, não tinha o que lhe oferecer. “O papel disponível era o de uma professora chinesa de 25 anos. E então Bayona decidiu que deveríamos esquecer que ela era chinesa e tinha 25 anos.”

Em 1952, entre Chaplin e Oona,
além da irmã Jacqueline: a
engraçada da família era a mãe

A atriz aderiu alegremente a “Kaminsky e eu”. Adorava o filme anterior de Wolfgang Becker, um diretor que lhe garantiu ter feito muito dinheiro no cinema e não ter pressa. “Ele me perguntou se eu aprenderia alemão para atuar, respondi que não. E no filme falo a língua apenas foneticamente. Mas Wolfgang se entusiasmou com a performance a ponto de me pedir para adicionar uma pronúncia francesa a meu alemão. Fiquei incrédula.” Seu personagem neste filme é um entre tantos que interpretou à margem da vida. “Tentei atuar como um computador que deu errado. Tudo estava lá, mas algum botão… Bem, não entendo nada de computadores. Vejo meu marido, o diretor Patricio Castilla, reclamar dizendo que perdeu tudo dentro deles, e eu penso como isso se dá. Então sou como um computador neste papel. Estou lá, mas não estou.”

Por não saber cantar, nunca enfrentou uma carreira na Broadway, como fizera seu irmão Sydney, embora tenha atuado ao lado de Anne Bancroft na bem-sucedida peça “The little foxes”, de Lilian Hellmann, dirigida por Mike Nichols. “O teatro é diferente demais, exige outra técnica. Cinema é o que sei fazer.” Uma arte naturalmente equilibrada entre o riso e a melancolia, como ela a entende. “Sempre vi o humor correr pelo sangue da família, mas jamais fui ensinada a desenvolvê-lo. Muito mais que meu pai, minha mãe nos divertia com seu senso de humor extraordinário. E somente Oona conseguiria rir das situações mais trágicas, como os funerais.”


Com o pai, que jamais quis
lhe ensinar a atuar

Odisseia paulistana

O imenso escultor grego Nicolas Vlavianos, radicado em São Paulo há seis décadas, morreu hoje nesta cidade que considerava sua, aos 93 anos, de insuficiência respiratória. Quando chegou aos 80, ele me concedeu esta entrevista, em maio de 2009, na qual descreveu sua revolução pelo aço, mas não só. Conversar com este artista foi um grande privilégio meu. Aprendi como poucas vezes no jornalismo, antes ou depois, o sentido da arte em um tempo que inviabiliza o esforço físico e no qual a escultura não cabe mais.

Em foto de Patrícia Stavis, o escultor Vlavianos segura uma miniatura, ele que foi o artista da grande escala

POR ROSANE PAVAM

Sob seus olhos há pequenas bolsas e os cabelos brancos estão gentilmente rebeldes, mas o escultor grego Nicolas Vlavianos ainda pensa como sorri, de um jeito jovial, aberto às utopias. Ele habita São Paulo há quase cinco décadas, os pais e a esposa morreram aqui e os filhos Myrine e Gabriel prosseguem o caminho que ele abriu na arte. A cidade é seu lugar e sua revolução.

Homenageado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte em abril, Vlavianos tem 80 anos, 40 deles como professor e coordenador cultural da Faculdade Armando Álvares Penteado, a Faap. Mas nada disso talvez conte tanto para ele quanto esta metrópole, toda por sua desde que o artista foi selecionado à VI Bienal Internacional de Arte. “São Paulo me deu a oportunidade de não sentir falta de alguma coisa”, raciocina Vlavianos, inclinado a terminar sua narrativa com frases excelentes, um homem educado que se senta em seu escritório na Faap em meio a pequenas esculturas nas prateleiras, uma mesa com papéis, folhetos e livros de arte e um computador.

Menino em Atenas

Vlavianos contava 32 anos naquele 1961, não era casado, não tinha filhos, não terminara o curso de Direito e seus pais, Charilaos e Evangelia, continuavam tabeliães em Atenas, de onde ele saíra cinco anos antes para habitar Paris. Por sua natureza de escultor, jamais pulou de lugar em lugar, sempre fixado à forja dos ateliês. Não era surpreendente, portanto, que de toda a Grécia só conhecesse a capital, até deixá-la, em 1956, aos 28 anos. Na cidade francesa, suas exposições adquiriram fama para além do estúdio que alugara em Montparnasse. Ele era uma nova realidade nas mostras do Museu Rodin, um artista finalmente moderno, contra tudo o que seu país lhe proporcionara.

É preciso não exercer a tentação de associar a imagem de Vlavianos à de todos os grandes escultores gregos dos quais aprendemos histórias. Vlavianos não é Fídias, não constrói imagens de adoração que parecem uma coisa quando vistas de perto e outras diferentes se observadas do sopé da montanha. Vlavianos não é um clássico, assim entendido o artista como um homem da Antiguidade. Ele nunca persegue a velha escola. Ontem como hoje, olha para o depois.

Paris aconteceu em sua vida porque os gregos deixaram de ser como seu conterrâneo Fídias, do qual não restaram obras, apenas relatos. Desde meados do século XIX, os gregos eram alemães da Bavária no campo da arte, e Atenas não pertencia politicamente a si mesma. A escultura neo-helênica, surgida nos últimos dois séculos, fora influenciada pelo neoclassicismo alemão. Os gregos, então, obedeciam curiosamente a quem reinterpretava sua luz antiga. “Não existia arte moderna em meu país”, diz.

O artista e sua lida, na cidade que lhe possibilitou a revolução pelo aço inoxidável e lhe deu um ambiente artístico atento, ameno, solícito

O Brasil do artista grego não tinha passado e seu futuro parecia certo aos estrangeiros. Como todos os que correram para cá naqueles anos, Vlavianos não enxergava limites nas terras brasileiras. A língua portuguesa não lhe parecia difícil, ele que falava francês, e além disso o jovem a sofisticava de tempos em tempos com a leitura da coluna do Vão Gogo, na verdade Millôr Fernandes, na revista O Cruzeiro. O clima era quente e os homens e mulheres, amenos. Todos, neste particular, eram um pouco gregos também.

Bastava conversar com uma profissional especializada como Felícia Leirner, a ele apresentada por um amigo grego comum, para que todo o mundo da arte se abrisse a Vlavianos. Havia críticos na São Paulo de então para notar sua existência e convocá-lo à contribuição no panorama das artes. Walter Zanini o percebera como escultor e se tornara seu amigo pessoal. Mário Pedrosa e Geraldo Ferraz acompanhavam entusiasmados a solidez do artista. A partir de pessoas como essas, a amizade com Cacilda Becker lhe surgiria como um novo degrau. A atriz de Pirassununga aproximara-se do escultor com uma proposta teatral.

Em 1963, Vlavianos já alugara um ateliê, em razão da encomenda feita por um funcionário da Bolsa, Fernando Leite de Barros, que desejava ter um cavalo de bronze em tamanho natural, parecido com aquele fincado no Edifício Itália. Para fazer a escultura por boa quantia, Vlavianos não viu outra opção a não ser alugar um estúdio, encontrado à rua Espártaco, para diversão do escultor. O gladiador de origem trácia liderara a maior revolta de escravos da Roma Antiga e entrara no imaginário popular alguns anos antes por meio da interpretação de Kirk Douglas no filme Spartacus, de Stanley Kubrick. Enquanto Vlavianos fazia o cavalo no estúdio da Lapa, Cacilda lhe pedia armas para a montagem de César e Cleópatra, uma peça de Bernard Shaw que se revelaria um fracasso de público em 1964. Vlavianos compôs escudos, capacetes e espadas para os personagens ensurdecerem em cena os poucos espectadores.

Por essa época, as esculturas do artista começaram a mudar. Em sua sólida base terrena, sem jamais aspirar à leveza de quem voa pelo céu ou o procura, as obras ganharam flexibilidade, pregos, furos, humor. E aço. São Paulo deu-lhe o que, para Carlos Drummond de Andrade, havia de sobra nas calçadas da mineira Itabira, e também nas almas. “Em Paris, eu usava bronze e alumínio”, conta. “Mas São Paulo me deu o aço inoxidável.” E não somente ele. “Aqui achei eletrodos para soldar, lixas para lixar, todo o maquinário destinado a esculpir.”

Esta foi uma revolução para Vlavianos e para a arte do Ocidente, embora poucos se dessem conta do enorme fato. Até os anos 1960, não havia quem se atrevesse a esculpir integralmente em aço em todo o mundo. O material e o equipamento para manejá-lo, fartos na capital paulista, impulsionaram essa revolução.

“Sempre falamos mal de São Paulo, e eu também. Mas considere isso. A cidade tem de tudo.”

Aqui também houve centros para estudar a arte. O grego foi convidado a dar aulas na Faap em 1969, depois de recusar o convite do amigo Zanini para ensinar na Escola de Comunicações e Artes da USP, pobre em ateliês e recursos. Na Faap também dava aulas sua mulher, a artista Teresa Nazar. Ele via com bons olhos o trabalho estável, que ainda lhe rendia mais espaço para planejar as esculturas. Contudo, não tinha qualquer didática a oferecer à garotada. “Ainda não tenho. O que eu sei fazer, até hoje, é trazer os alunos para produzir as coisas. Nunca falo ‘o seu projeto é uma merda’. Eu digo: ‘Dá para melhorar’.” Ele não se recorda de um nome extraordinário saído de suas aulas de escultura, mas reconhece ter tido bons alunos pintores.

Isso porque a pintura, no seu particular modo de ver, é um estágio para um crescimento tridimensional. A arte começaria pela poesia. Dela seria possível chegar ao desenho e, posteriormente, à tela com cores. E, desse estágio, existiria a chance de alcançar a escultura, primeiramente feita com materiais maleáveis, como a madeira e a pedra-sabão de Minas Gerais, depois com os blocos rígidos.

A questão importante, para ele, é que hoje em dia não há nem mesmo uma possibilidade real para quem deseja alcançar o estágio de um escultor. “A escultura não é para nossa época”, sentencia. “Ela requer um grande esforço físico, mas nós perdemos essa capacidade de nos esforçar fisicamente.” O computador daria soluções mais rápidas e desacostumaria o artista com a lida. “É um instrumento que estreita o pensamento. Não é o computador que entra na sua maneira de pensar, é você que entra na maneira de pensar do computador.”

Para Vlavianos, que experimenta, contudo, parcerias para esboçar projetos nesse formato, tal meio técnico inibe até mesmo a avaliação de um problema, quando ele surge. E é só compreendendo o problema corretamente que se pode solucioná-lo. A solução, na escultura, acontece quando usamos a cabeça e as mãos, não quando clicamos o mouse, defende.

O computador também responderia a uma necessidade que a época tem por reagir de forma menos agressiva às coi- sas. “Quando o sapo é jogado na água quente, pula de imediato. Mas não percebe a ameaça se é cozido em fogo brando. Quem percebe o aquecimento global, a menos que tudo aqueça demais?”

Vlavianos compara esse estado de coisas na arte ao jornalismo, que incluiu gastronomia no cardápio, quando antes só admitia, e em casos específicos, a publicação de receitas de pratos. “O que vou fazer? Brigar por isso? Para brigar, seria necessário uma razão que o tempo não me dá.”

O espírito do tempo pede a acomodação, não a polêmica, o debate de ideias, afirma Vlavianos, como quem se resigna. Uma vez que a crítica acabou, o que é artístico se torna também negociável. A arte encarece com a necessidade atual de patrocínios, transporte, seguro, fotografia. Há a figura especialmente intrigante do curador. Ele é o homem do conceito, mas e se o conceito estiver errado? “Um conceito errado, por exemplo, é o de arte brasileira. Se colocamos estrangeiros para fazer arte brasileira, o que isso significa? Não existe arte brasileira. Existem os artistas do Brasil. Existem o carnaval e as mulatas.”

Vlavianos não tem conselhos a dar ao artista novo. Exceto, talvez, aquele de trabalhar de forma incessante, sem esperar enriquecer. “Se você quer dinheiro, abra um bar. Os bancos são os caminhos mais fáceis para isso. Para fazer arte, ou seja, expressar uma pequena parte do que pensa, você não pode exigir descanso. Se eu fico parado, tenho ideias muito boas de vez em quando. E daí? Daí, nada.”

O artista nunca soube o exato significado de seu nome de família. Talvez, em grego, algo “vlaviano” equivalha a algo “fiel”. O qualificativo faria sentido para ele, já que, neste mundo, a coisa que suporte mais dificilmente seja a perda de “quase todos os amigos”. Restaram-lhe as utopias. Ele ainda espera, como um sonho, correr um rio e conhecer a França inteira.

Adeus, Perrin

Soube que Jacques Perrin morreu dia 21, aos 80 anos. Amava-o nos filmes de Valerio Zurlini. Que triste e maravilhoso é “Cronaca Familiare” (Dois Destinos), de 1962.

Mastroianni vive ali o irmão maior, inconformado, voluntarioso, que tenta ensinar algo da sua força ao caçula, frágil e contido até a morte.

Me parece haver também no filme a alusão a um amor entre homens, impossibilitado pela educação social. A direção de atores é estupenda, como em qualquer filme de Zurlini. E como estão perfeitos aqui!

Obrigada, Perrin. 💚

Adeus, Catherine Spaak

Catherine Spaak, um rosto
para o cinema

Catherine Spaak morreu. Tinha 77 anos. Atriz, cantora, dançarina e apresentadora da TV italiana, nascida francesa, foi musa de muitos diretores. Dino Risi, que a dirigiu em “Il Sorpasso”, o oitavo filme de que participou, deu-lhe fama.

Aos 17 anos, em “Il Sorpasso”,
depois de sete filmes

Tinha 17 anos quando deu à luz a filha Sabrina. Por não se sentir à vontade na casa da família do pai da criança, ator que conhecera num set e com quem passaria a viver, fugiu com a menina. Foi presa e a justiça tirou-lhe o direito de ver a filha. Nunca mais a viu. Mas continuou a trabalhar e a viver no cinema dessa Itália machista, no meio musical e na tevê.

A elegância que a acompanhou

Casou-se quatro vezes e seu último marido era 18 anos mais novo. Tinha vivacidade, um rosto feito para o cinema, entrega e elegância.

Em 2020, poucos dias após o isolamento imposto pela pandemia, ela foi atingida por uma hemorragia cerebral e não se recuperou.

Viva Catherine Spaak!

Em “Il Sorpasso”, de Dino Risi,
que lhe deu fama

Resistir, eis o que Lygia nos pediu

Ela morreu. Uma mulher mais jovem do que eu. Bailarina que dançava na sala do seu apartamento em prédio dos Jardins, ladeado por palmeiras, toda vez que lançava um livro. Em duas ocasiões abriu um vinho do porto pra mim. Sabia de tudo, dos escondidos da vida, da simplicidade da morte, esta que talvez tenha visitado de passagem e onde desaparecemos um pouco todos os dias. Dessas viagens voltava com um riso, não gargalhada, os olhos sapecas, franzidos.

Lygia Fagundes Telles, afastada agora definitivamente de nós, aos 98 anos, morava em um lugar próximo, ainda que distante. Foi a paraninfa da minha turma de Escola de Comunicações e Artes, lá nos anos 1980, e deu seu banho sem abrir mão da atitude protocolar. Bonita, gozadora, presente. Alguém para quem os ouvidos abertos na direção de Olavo Bilac não impedia sua entrega a Roberto Piva. Olhos, mãos, cabelos, tudo como a razão de uma expressão. Lembro-me sempre dela até porque moro no mesmo prédio onde residiu seu filho.

Ela fumava razoavelmente durante as conversas jornalísticas e eu, que não suporto bem o cheiro de cigarro, nem sentia nada, submetida a uma espécie de básica hipnose. Nem sei, juro, como isso podia ser.

Com ela era só sedução. Sabia ser distante, apresentando-se, contudo, cordial. Chegava na gente com sua impessoalidade sorridente, às vezes irritada, também. Fazia da ocasião conosco uma espécie de palco… e recitava. 

Se me telefonasse para agradecer pelo texto “inteligente” que eu fizera sobre ela, cessavam as borboletas no meu estômago. Porque antes disso era viver sem dormir: e se ela não gostasse, gente? E se não gostar? 

Eu a entrevistei muitas vezes. Feliz ou infelizmente mal guardei todos os textos que escrevi. Não presta muito reler o que a gente faz, sob pressão, na imprensa. Mas com Lygia estava tudo certo. Jamais estaríamos nem mesmo próximas a sua altura, e a questão era quase só copiar o anotado, servindo ao leitor.

Fez questão de proclamar a mim o veredito de culpado a O J Simpson, quando o mundo transformara o assassínio por ele cometido em questão racial. Ela não estava nem aí. Caetano Veloso bonito? Como poderia se equiparar a Rodolfo Valentino? Eu ria muito. Até suas paredes falavam. Os quadros que guardava, fotos, desenho de Darcy Penteado, de Carlos Drummond. Um apartamento antigo, móveis de boa madeira. Somente a história interessava como elemento de decoração.

Eu queria ter-lhe dito adeus em algum momento, mas me intimidei. Sua neta me abrira as portas para entrevistas, mas faria o mesmo para minha presença tímida e pessoal? De toda forma, talvez eu não aguentasse. Da última vez que fui entrevistá-la perdi o celular no qual fizera fotos. Ela parecia deprimida, embora encorajada. Vivia pela força da paixão por seu filho, para quem construíra um altar onde estavam a imagem dele ao lado de seu urso de pelúcia de infância… E o próprio urso, velho, encardido, nos sorria de cima daquela cadeira.

Eu nem sei como agradecer a essa mulher por tanto que me deu. Uma vez eu a indiquei para um trabalho, o de falar, sob um bom pagamento, para umas funcionárias de telemarketing que gostavam de escrever. E o que ela lhes disse? Basicamente, que resistissem. “É preciso resistir!” Sem isso não haveria literatura, não haveria Lygia, não haveríamos nós. Mas resistir a quê, não fez questão de explicar. Resistir, entendeu?

Eita que as saudades serão imensas.

Vou publicar algumas coisas que tenho sobre ela pela semana. E até um texto inédito em livro, de sua autoria, que ela me mandou por ocasião da edição de Natal do Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde, nos anos 1990.

Viva Lygia! Viva para sempre em nós!

Mil e uma Mônicas

Amo esta foto feita por Giancarlo Botti em 1973, no ateliê da Dior, porque nela está Monica Vitti de fato, mulher cultíssima e plena de talento, que em sua longa carreira, interrompida por uma doença degenerativa nos últimos anos, foi bem mais que uma só, tendo atuado do teatro à dublagem, atriz das maiores no cinema, diretora, escritora. A seguir deixo pra vocês uma tradução que fiz do obituário de Chiara Ugolini no jornal La Repubblica. É preciso conhecer mais de seu trabalho, não apenas com Antonioni, os cômicos também. Adeus, Monica, e nosso obrigado infinito!

“Monica Vitti, imenso talento do cinema italiano, está morta. Ela havia completado 90 anos em novembro, há anos afastada da vida pública devido à doença que a atingiu. Trabalhou com os maiores. Foi musa de Michelangelo Antonioni, companheira de aventuras de Alberto Sordi, mas também autora e diretora. A notícia de sua morte foi dada pelo marido Roberto Russo através de Walter Veltroni, que escreveu no Twitter: “Roberto Russo, seu parceiro de todos esses anos, me pede para comunicar que Monica Vitti se foi. Faço isso com dor, carinho, lamento”.

Monica Vitti foi capaz – única em sua geração – de cobrir toda a gama de expressões do cinema italiano. A mulher burguesa, neurótica, dolorosa da incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni. A plebeia, grosseira, de alegria contagiante, com Alberto Sordi. Referência essencial para todas as atrizes que vieram depois, Monica Vitti foi tudo: profunda, enigmática, sensual, espirituosa. Intelectual, popular, melancólica, inteligente. Extremamente bonita.

Nos últimos anos, devido a uma doença degenerativa, deixou de aparecer em público, mas seu legado se manteve muito forte no mundo do cinema, que, por ocasião de aniversários e aniversários, não deixou de lhe retribuir o carinho com exposições fotográficas e críticas de seus mais de cinquenta filmes.

Uma carreira extraordinária e muitos prêmios: 5 David di Donatello como melhor atriz (mais quatro outros especiais), 3 Nastri d’Argento, 12 Globo de Ouro (incluindo dois pelo conjunto da obra), um Ciak de Ouro e um Leão de Ouro pela carreira em Veneza, um Urso de Prata em Berlim, Cocha de Plata em San Sebastián, indicação ao Prêmio BAFTA.

E de pensar que Monica Vitti nem tinha intenção de se dedicar ao cinema! Sua paixão era o teatro, descoberto ainda criança durante a guerra (nasceu Maria Luisa Ceciarelli em Roma, 3 de novembro de 1931), quando brincava com seus irmãos, encenando espetáculos de marionetes para distraí-los da realidade que os cercava.

A estreia, ainda menina, aconteceu no teatro com “A inimiga” de Dario Niccodemi. Foi estudar na Academia Nacional de Arte Dramática (onde se formou em 1953) e manteve uma curta mas intensa atividade teatral, interpretando de Shakespeare a Molière, de Brecht a “Seis histórias para rir”, de Luciano Mondolfo. Depois veio a dublagem e foi ali mesmo, na sala de controle, enquanto Monica emprestava sua voz para a atriz Dorian Gray em “O Grito”, que Antonioni disse a frase destinada a mudar sua carreira e sua vida: “Você tem uma bela nuca, poderia fazer cinema”.

O encontro com Antonioni implodiu todos os projetos da atriz, que estava prestes a se casar com um namorado arquiteto. Vitti se tornou a musa do diretor e daquela página de seu cinema dedicada às neuroses de casal, às angústias da mulher moderna. Um após outro, vieram Aventura (1960), A noite (1961), Eclipse (1962) e Deserto rosso (1964): quatro mulheres diferentes mas semelhantes, quatro variações sobre o mesmo tema, a atormentada Claudia que procura a amiga entre as ilhas Eólias, a sedutora Valentina que “rouba” Mastroianni de Jeanne Moreau, a misteriosa e descontente Vittoria que é cortejada sem entusiasmo pelo corretor Alain Delon e a deprimida e atormentada Giuliana, esposa de um empresário insatisfeito com a vida.

Na segunda metade da década de 1960, separou-se de Antonioni e de seu cinema para frequentar a comédia, que havia exercido no teatro. Com Mario Monicelli (La ragazza con la pistola, 1968) finalmente conseguiu libertar sua visão cômica, já claramente anunciada por seu professor na academia, Sergio Tofano. Linda e elegante, ela foi uma das primeiras atrizes a conseguir demonstrar que para fazer as pessoas rirem não era preciso ser feia ou indesejável. Ao lado de Alberto Sordi (que sofre muito por ela em Amore mio aiutami) começou uma parceria que os levaria ao grande sucesso Polvere di stelle, em 1973. Fez colaborações com Ettore Scola (Ciúme à italiana, ao lado de Giancarlo Giannini e Marcello Mastroianni), Dino Risi (Noi donne siamo fatte così), Luciano Salce (Pato com laranja), Nanni Loy, Luigi Comencini (dois dos episódios de Basta che non si sappia in giro).

Na década de 1970, a atriz foi dirigida três vezes por seu então parceiro, o diretor de fotografia de Antonioni, Carlo Di Palma, que passou a atuar como cineasta. Ela é Teresa a Ladra, filme de estreia de Di Palma (1973), depois Qui comincia l’avventura (1975), uma motociclista que veste couro e capacete em filme com Claudia Cardinale (antecipando Thelma e Louise) em Mimì Bluette…fiore del mio giardino, de 1976. Nos anos setenta houve também algumas incursões na televisão, enquanto continuou a frequentar o teatro. Em 1974, com Raffaella Carrà e Mina cantou Bellezze al bagno no espetáculo de variedades Milleluci, quatro anos depois atuou para a televisão na comédia O cilindro, de Eduardo De Filippo.

A partir dos anos 1980 Monica Vitti começou a diminuir as aparições no cinema, trabalhando especialmente nos filmes dirigidos por seu novo parceiro, o fotógrafo still que mais tarde se tornaria o diretor Roberto Russo (Flirt, 1983; Francesca è mia, 1986), com quem, após 27 anos de relacionamento, se casou em 2000. Dez anos antes, sua estreia como diretora do filme Escândalo Secreto, escrito e interpretado por ela, deu-lhe uma última grande satisfação, o prêmio David di Donatello como melhor estreia. É a história de Margherita, a própria Vitti, que recebe de presente de um amigo diretor uma câmera muito moderna, automática e completa, com controle remoto; sua vida mudará radicalmente e a máquina revelará não apenas a traição de seu marido com sua melhor amiga (Catherine Spaak), mas também a desolação de sua própria existência. Em sua vida, escreveu dois livros: em 1993 “Seven Skirts”, uma autobiografia que recebeu o título do apelido que tinha em criança, “Sete vestidos”, pois, se estivesse com pressa, conseguia colocar um vestido por cima de outro… E depois, em 1995, “A cama é uma rosa”, em que escreveu: “A perda me aperta pela garganta como uma jibóia transparente. Não posso provar que existe, mas me envolve e rasteja no meu rosto, prometendo horrores …”

Em 35 anos de cinema, fez 55 filmes. Ao nos despedirmos de Monica Vitti damos adeus às muitas mulheres que ela interpretou com graça, feminilidade e coragem. As mulheres atormentadas de Antonioni, a espiã Modesty Blaise de Joseph Losey, a siciliana seduzida e traída que voa até Londres para se vingar e descobre a liberdade, a Giuliana de Natalia Ginzburg trazida à tela por Luciano Salce em Casei com você por alegria, a mulher que inventou o movimento: Mimì Tirabusiò. E na floricultura de Scola, a Adelaide dividida entre o pedreiro Mastroianni e o pizzaiolo Giannini. Monica, muitas mulheres em uma só.”

O que aconteceu com as irmãs Curi

Minhas tias-avós Maria e Vitória eram tão desiguais que talvez tenha sido exatamente isso a mantê-las inseparáveis

Maria e Vitória, as irmãs Curi

Minhas tias-avós maternas da familia Curi, Maria e Vitória, tinham a vaidade compulsória da juventude. Nasceram no Maranhão, filhas de migrantes árabes, fãs ardorosas de bijuterias e tecidos, ou “cortes”.

Tia Maria era uma espécie de vulcão. Lá pelos 20 anos, nos anos 1920 desta foto, de tanto amar Hollywood, e desagradada dos próprios dentes em relação ao das estrelas, convenceu o dentista da família a arrancar todos eles. Em seu lugar, eternizou-se em sua boca uma dentadura reta e alva, trocada de tempos em tempos. “Fiquei linda!” – me contava sempre, como quem declamasse no palco grego.

Nunca se casou, mas até os 80 anos imaginou que isto aconteceria a ela inevitavelmente. Lembro-me de vê-la, aos 60, num vestido de tule verde à saída da missa de domingo no Tatuapé – e ela a me explicar que o vestido era para Jesus primeiramente, mas, em segundo lugar, para o homem indefinido que apareceria, se apaixonaria por ela e a levaria ao altar.

Nós a visitávamos aos domingos naquele bairro paulistano, para onde íamos de ônibus elétrico desde o centro, numa viagem demoradíssima. Lá Maria morava com as duas irmãs e os três irmãos, todos solteiros.

Dois dos homens eram feirantes. O mais velho deles, Fuad, muito próximo de nós, crianças, nos enchia de balas de mel vencidas, é verdade, mas dadas com tanto carinho que nem ligávamos pro sabor. O outro, Alfredo, vendia meias de náilon e, enquanto eu cresci, não parou de presenteá-las nos meus aniversários. O terceiro irmão, Dudu, era incapacitado desde os 9, quando, conta-se, ouviu um grito na noite e nunca mais falou.

No sobrado do Tatuapé, os seis irmãos dormiam em quartos separados – os três homens em um, as três mulheres, em outro. Quase não entrávamos no quarto dos homens, mas no das mulheres eu me sentia numa festa eterna, ao ouvir, durante as sestas, as histórias das irmãs sobre a família.

Maria ia além. Não só falava sobre o passado (e foi ela a me contar que, quando nasci, minha mãe inconformada salpicou um “que feia essa minha filha!”, para me encher de uma tristeza divertida desde sempre), como nos repassava as conversas que tivera com Jesus nas noites anteriores, até mesmo quando já nos tornáramos adultos. Tínhamos de ouvir e seguir o que o filho de deus nos mandara fazer… só que não, né?

Depois de Vitória e Maria, havia Helena, a mais nova, orgulho dos irmãos. Ela não apenas sobrevivera às doenças que mataram na infância sua irmã imediata Hilda e o gozador Luís (este que, no álbum de fotografia, surgia com uma cabeleira encaracolada até a cintura, tipo Luís XIV, em função da promessa materna por sua saúde, algo que infelizmente não impediu a morte da criança aos 7). Helena também tivera a sorte não dispensada ao caçula João, loiro de cabelos cacheados, atropelado aos 6 anos por um dos primeiros carros de São Luís, cidade para onde um casal de amigos de seus pais o levara a passeio. (“Como o senhor pega o meu filho vivo e o traz morto?”, disse minha bisavó ao compadre infeliz).

Vitória, eu e Helena diante do prédio em que morávamos, no Bixiga, em foto tirada por meu pai

Além de passar a perna na morte como por milagre, Helena representava grande orgulho familiar porque, tornada funcionária pública, praticamente sustentaria os outros cinco irmãos até que se aposentassem. Do nada ela apareceu um dia no sobrado com um piano para receber aulas – e eu, que não o tinha em casa, aproveitava os domingos na casa das tias (raramente dizíamos que aquela casa era dos “tios”) para repassar as lições da semana.

Vitória, à direita na primeira foto, era a minha querida, aquela me presenteava com um mussaká só dela, toda vez. Na sua infância, houve abundância familiar, visto que ela fora a segunda entre doze ou treze irmãos e os pais ainda tinham podido esbanjar com sua formação. Deram-lhe um piano para estudar, mas música não parecia ser coisa em que Vitória se aplicasse. Ela gostava mesmo era de ler romances, e para fazê-lo escondia-se atrás do instrumento à noite com uma lamparina, algo que seus pais não aprovavam nem um pouco, castigando-a por seu mau comportamento quando percebiam a ousadia.

Vitória foi crescendo e acumulando pretendentes de que não gostava em absoluto. Enrolava-os todos, negando seus pedidos de casamento, até que nenhum mais aparecesse e ela se visse, sem qualquer problema, como a irmã que cuidaria dos pais e irmãos pela vida toda, visto que minha avó, a primogênita, saíra de casa para se casar ainda adolescente.

Meus irmãos e eu na casa das tias (Maria e Vitória no canto à esquerda), diante do piano de Helena
e do Jesus de Maria

Essa dama brilhante, que nem ligava para sua beleza juvenil – ao contrário de minha tia Maria, que se imaginava bonita sem o ser -, foi minha luz na infância inteira. Muito inteligente, segura, perspicaz, bem-humorada, Vitória suportou as esquisitices de Maria, seus sonhos com Jesus, seu pudim que sempre solava, o tabaco mascado em grande quantidade e um louvor sem fim às garrafas de cerveja, até que Helena morresse algo precocemente. Todos sabiam que Vitória não aguentaria Maria sozinha por muito tempo. Eu ia visitá-la quando soube de sua morte, ocorrida menos de um mês depois que a caçula se foi.

Tia Maria foi a última dos irmãos a partir. Salvou-a, acredito, essa falta de noção em alto nível que a tirava da miséria cotidiana aqui embaixo. Até o fim, tia Maria viveu o céu que lhe coube. E a proximidade com o filho do dono – este ser que sobrecarregava com pedidos e de quem arrancava confidências – deu-lhe, bem antes que à maioria dos seres humanos, a sensação do paraíso.