Sobre o Caderno de Sábado, sobre Antonio Cícero

Nos anos 1990 eu era subeditora do suplemento cultural semanal do Jornal da Tarde. O Caderno de Sábado, primeiro do gênero na imprensa, findou pouco depois da minha demissão, ocorrida quando eu era recém-retornada da licença maternidade, em 1999 (o de sempre na vida de qualquer mãe que trabalha no Brasil).

Os jornalistas da redação detestavam o Caderno de Sábado e chegavam a vir até minha mesa de trabalho para expor seu inconformismo, isto quando não se indignavam por trás dos monitores mesmo, aos cochichos. Eu ficava na minha. Uma vez fui parar no consultório do comentarista esportivo Osmar de Oliveira, que também era ortopedista, e tive de ouvi-lo dizer, fumando, que um caderno como aquele não podia ser. Os jornalistas que me cercavam eram em grande maioria anti-intelectuais fervorosos. Na minha opinião, o caderno acabou por conta deles e de sua campanha contra qualquer ideia de cultura que extrapolasse o fait-divers da tevê, os livros ligeiros e o cinema schwarzenegger. Bolsonaro não venceu a eleição à toa, vocês me entendem?

Leão Serva comandou a redação por um tempo e pretendeu ignorar esse clima. Queria um caderno vibrante, com leitura, resenha e entrevista, de modo a competir com quem tinha melhores condições financeiras e favorecimentos das editoras para fazer isso – a Folha de S. Paulo, resumindo. Como eu acompanhava o lançamento de livros havia algum tempo, ele decidiu que eu abandonasse a cobertura diária de artes e espetáculos para me encaminhar ao posto de subeditora do caderno (o titular responsável pela publicação era um dos jornalistas do JT a escrever editoriais, leia-se a opinião do dono; sendo homem de confiança de Ruy Mesquita, me parecia incomum que agisse como um amigo e me deixasse trabalhar em paz). 

Só fui subeditora do Caderno de Sábado porque Leão, ao chegar no JT, ligou para Luis Schwarcz, o dono da Companhia das Letras, perguntando que jornalista brasileiro ele aconselhava contratar para o posto. Pouco tempo antes eu havia conseguido uma entrevista com o futuro Nobel de Literatura V.S. Naipaul, estrela internacional da Companhia, que adorou nossa conversa e disse saber, de antemão, que eu escreveria a melhor matéria sobre seu novo livro. “Olha, Leão, a melhor jornalista de livros do Brasil está aí na sua redação mesmo, é a Rosane Pavam”, respondeu o Schwarcz ao Serva. Estranho um editor de livros orientar a escolha de um profissional de caderno de cultura que no fim das contas acabará por avaliar seus livros, não? Pois se acontecia assim na Folha, seria o mesmo no JT.

Eu amava fazer o caderno. Adorava os colaboradores, procurava expandir suas ideias em textos mais longos. Propunha a escritores muito bons resenhar os novos. Uma vez, pedi a João Antônio, um escritor gentil e sempre necessitado de dinheiro, para resenhar o livro de estreia de Rodrigo Lacerda. João achou o livro criativo, escreveu isso e Rodrigo Lacerda vive até hoje de ser o dono do “assunto João Antonio”. Nunca me deu créditos por isso, jamais pedi e só me divirto ao lembrar.

Entre os colaboradores que Leão Serva trouxe para tornar o jornal mais moderno (mais Folha), estava Antonio Cícero. Eu publicava seus textos escritos especialmente para o caderno em torno da filosofia clássica. Ele não era assim tão fácil de ler, não concedia muito ao leitor, ao contrário de Antonio Medina, que escrevia sobre o mesmo assunto com o vigor do professor de cursinho empenhado em enfiar um motor nos cérebros lentos. Me contava casos até mais divertidos que João Antônio, e eu me sentia privilegiada ao ouvi-los.

Por seu lado, Cícero, sério, ético, gentil, comunicava suas intenções a mim quando simplesmente poderia impô-las ao Leão. Não me surpreendo que tenha sido racional ao decidir sobre a própria vida, afinal de contas fundada na razão. Querido, vá em paz.

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