
Estava à toa em Paris, vivendo como uma espécie de babysitter de um bebê franco-brasileiro, à espera de que o horror da posse de Fernando Collor passasse, quando soube que Marianne Faithfull, morta agora, faria um show em La Cigale.
Era (ainda é) um teatro muito bonito no bairro La Pigalle, perto de Montmartre, cheio de poltronas estofadas vermelhas. Embora coubessem centenas de espectadores por lá, a impressão que o teatro me dava era de aconchego. Me sentei num lugar relativamente perto do palco.
O show aconteceria umas nove da noite, mas cheguei bem antes. Um perigo andar de metrô quando somos jovens e nossas pernas têm algum poder de abalar Paris. Era de metrô que andavam os valseuses (nada parecidos, por certo, com Gérard Depardieu ou Patrick Deware no filme do Bertrand Blier), gente à toa feito eu, e à noite, às vezes perigosa. Passei aperto quando dias antes andei num vagão onde havia apenas mais um homem a ocupá-lo além de mim. Eu pulava de banco em banco e ele vinha atrás. Quando o trem chegou na estação seguinte, saí apressada. E só peguei outro trem de novo quando entendi que duas pessoas pelo menos embarcariam junto comigo.
Enfim, não havia a opção, para uma pobretona feito eu, de usar um meio de transporte diferente. O metrô chegava em todo lugar, e se comprássemos um pacote de bilhetes, pagaríamos menos. Quando finalmente me sentei na plateia do teatro, respirei aliviada. Pensava com orgulho que conseguira chegar ali sã e salva, prontíssima para ver Marianne, e que isso representava um triunfo em minha modesta história.
O teatro não lotou. Havia jovens como eu e gente bem mais velha na plateia. Poucos casais. Muitos vinham sérios e sós. Quando ela pisou no palco, agiu como divindade. Um vestido midi algo brilhante, uma sandália com salto, distante de todos, olhando altiva para a frente. Sem agradecer nem falar com o público, iniciou a apresentação com toda a iluminação sobre si, e assim permaneceu.
Eu não conhecia as novas canções e só esperava a hora do “As Tears Go By”. Mas Marianne não dava mole. Cantava o que queria em francês e inglês à frente do palco, desinteressada da banda e do público, fumando o tempo todo. A voz grossa vinha se especializando, e o sorriso que eu vira na televisão ou no cinema não aparecia nunca.
Não a achei particularmente bonita. E a entendi bem mais velha do que era. Tinha então 44 anos. Cantava roucamente, mas era como se falasse alto. Grande presença, o tempo bem marcado, sem nunca vacilar.
Um homem magro, em sua idêntica faixa etária, aplaudia tudo embevecido desde a primeira fila. Mas ela reclamou dele. Precisava de silêncio, como talvez Maria Callas também precisasse. E ele não conseguia aquietar a emoção.
Marianne destoava. Uma figura excepcional, consciente de sua excepcionalidade neste mundo. Sempre me intrigou a certeza dessas pessoas a respeito de si mesmas. Será mais fácil ou mais difícil viver quando se tem essa consciência? Bem, não me interessa. Ainda guardo a imagem de ternura transmitida por ela nas fotos de revista. Não é fácil ser mulher, nem tornar-se.
