O encanto revolucionário de Godard

Livro da historiadora francesa Nicole Brenez, lançado durante homenagem no Sesc, refaz a trajetória do cineasta como um pensador de ação, inspirado nos românticos alemães

Jean-Luc Godard em Berkeley, 1968, na foto de Gary Stevens: a transformação não descarta o chiste

Uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação. Eis o que Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas oferece a seu leitor, por meio de um impressionante fluxo reflexivo. Publicado originalmente na França pela editora De l’incidence éditeur, há dois anos, e a ser lançado no Brasil às 19h30 do dia 15 de julho de 2025 pela Desconcertos, em mesa-redonda na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, o livro da historiadora e crítica de cinema francesa Nicole Brenez integra vasta programação daquela unidade em homenagem ao cineasta, morto em 2022, aos 91 anos. Haverá até o dia 25 um ciclo de filmes, dois cine-concertos e um curso no Sesc Avenida Paulista a partir da perspectiva crítica e política apresentada no livro (veja a programação ao final deste texto).

Nicole Brenez, de 64 anos, professora da Universidade Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), historiadora, crítica e programadora de sessões de vanguarda da Cinemateca Francesa, define-se como uma pirata a serviço de Godard. Ela admira seu espírito de contradição tanto quanto sua energia contestatória, o prazer pelo chiste tanto quanto o empenho revolucionário pelo cinema e pela transformação social, além de sua capacidade de revelar o desconhecido no conhecido, como um poeta e um filósofo fariam. Brenez nos propõe um caminho para decifrar a originalidade de Godard ao desenhar seu percurso intelectual. De forma talvez surpreendente, ela vê o pensamento do cineasta fundado no romantismo alemão, que pregava a “liberdade integral de auto-determinação”.

Para Brenez, Godard é o “Goethe dos séculos XX e XXI”. Cada filme seu propõe uma forma organizacional diversa, inverte uma estrutura singular, conforme faziam os escritores sob a perspectiva romântica. O romantismo alemão floresceu no final do século XVIII e início do século XIX como uma reação ao racionalismo iluminista, valorizando a emoção, a subjetividade e a imaginação. Como os românticos, Godard terá vivido de contradizer as grandes ordens da estética clássica e preconizado a diversidade formal, a variedade sem fim, munido do que a autora denomina Witz, um poder eletrizante para praticar a montagem do pensamento e desfazer simbolicamente o poder, este que também não passa de um conjunto de símbolos. 

E então há que buscar em outro romântico, Karl Wilhelm Friedrich Schlegel (1772-1829), um fundamento para o ocasional exercício da obscuridade de que tanto Godard é acusado, talvez não sem razão. Ser obscuro se faria necessário para ele, tanto quanto para Schlegel, porque os dois teriam entendido que a compreensão total é impossível, dado o caráter caótico e contraditório de todos os seres. Além disso, o cineasta exerceria o Cinismo grego, que, surgido no século IV a.C., dilacerava com belos dentes toda forma de alienação, conformismo e superstição. E, claro, Godard também se apoiaria em outro alemão, o Karl Marx que transformou a especulação filosófica em ação.

Em “A Chinesa” (1967), a revolução vermelha de Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto

Até 1968, Godard buscou desvelar o poder por meio de obras como “A chinesa”, mas, a partir de então, fez filmes fundados na contra-informação, à moda do que empreendia o diretor Chris Marker para furar as falsas verdades do poder. A energia emancipatória de sua luta, para usar uma expressão repetida pela pesquisadora no livro, foi renovada de forma constante. Os últimos filmes de Godard são construídos sem personagens e sem narrativas, a partir de um esquema visual feito à mão, principalmente à base de imagens reempregadas, concebido em parte como multitelas e, no final, exibido de todas as maneiras e em todos os canais, exceto em uma grande sala de cinema comercial. Ele fez um cinema para o qual o sofrimento humano é o princípio a ser encarado e revisto. “Já está na hora de o pensamento voltar a ser o que é na realidade: perigoso para o pensador e transformador da realidade”, conforme ensinou Denis de Rougemont.

Nas fotos reempregadas de Imagem e Palavra (2018), o ponto de partida é o sofrimento

Brenez conheceu Godard em uma ocasião na qual o diretor decidiu exibir para alguns pesquisadores sua pré-montagem de “Imagem e Palavra”, filme de 2018. (Sim, Godard trabalhou em colaboração por toda a vida). Brenez foi até lá munida de lápis e papel para fazer anotações, e Godard se incomodou com isso de início, por achar que, ao escrever durante a sessão, ela se distrairia do filme. No dia seguinte, pediu-lhe suas notas, que continham sugestões de paralelos com as sequências apresentadas no filme. Godard se encantou com suas ideias e os dois iniciaram uma correspondência por email que durou até a morte do diretor, quatro anos depois. 

Em seu livro, Brenez mostra alguns emails que recebeu do diretor. “Cada mensagem eletrônica de Jean-Luc Godard oferece uma pequena obra (opus) fundada no prazer de inventar simultaneamente ligações entre o título e o corpo do texto, ressonâncias novas entre imagem e linguagem, fraturas com capacidade de desabrochar as palavras em flores cubistas. O Witz no cotidiano. Nada aí permanece na quietude falaciosa dos usos. Até o fim, o telefone continuou sendo uma máquina de criar”, ela escreve. Contudo, mostra apenas uma de suas respostas ao diretor. Um dia, talvez queiram fazer um livro sobre esta sua correspondência com ele, mas ela mesma não fará. O que a consome agora é um grande projeto para mostrar a correspondência do autor com os profissionais de cinema de todo o mundo.

A seguir, suas respostas a minhas perguntas, feitas por email.

Nicole Brenez, autora de Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema
e outras artes fílmicas: pirata a serviço do cinema transformador

Em que momento você decidiu que precisava escrever este livro? Quanto tempo levou para terminá-lo? Teria sido o próprio Godard a lhe pedir que o escrevesse?

A decisão de criar este livro me ocorreu cerca de uma semana após o suicídio de Jean-Luc Godard, na manhã de 13 de setembro de 2022. Tratava-se, se não de sair do luto, pelo menos de fazer algo com ele para escapar do desamparo e da consternação. Jean-Luc não estava bem havia semanas, sua saúde se deteriorava, e quando lhe enviei uma mensagem, em 20 de agosto de 2022, tive a profunda intuição de que seria a última. Então, tentei escrevê-la da forma mais concisa e breve possível, para não cansá-lo, mas também da forma mais afetuosa e “perspectivista” possível, porque queria dizer-lhe que, ao contrário do que ele às vezes declarava – ou seja, que ninguém se interessava por seus novos filmes – sua obra estava sendo vista e debatida em todo o mundo pelas novas gerações, em particular porque agora, disponível integral e gratuitamente em sites piratas, persiste e ressoa cada vez mais. No entanto, nada nos prepara para a morte, não sabemos como a psique reagirá a ela. Para mim, como para muitos cinéfilos, esse desaparecimento já corresponderia a uma data na história do cinema, uma página prestes a virar, um baluarte contra o cinema industrial prestes a ruir. 

Após o anúncio do suicídio, tive o mesmo reflexo que meu amigo e colega David Faroult, outro especialista nesse trabalho. Percebemos isso em retrospectiva. Começamos a ouvir todas as entrevistas com JLG disponíveis na internet, como se fosse uma questão de ainda nos banharmos nas vibrações de seus pensamentos, de nos envolvermos neles para nos sentirmos menos infelizes. E se éramos dois, tenho certeza de que outros tiveram o mesmo reflexo.

Então, este é um pouco da atmosfera concreta da qual nasceu este trabalho, com uma loucura como projeto: que o livro existisse em 3 de dezembro de 2022, ou seja, na data de aniversário de JLG, que naquele dia teria completado 92 anos. Quase conseguimos: o livro foi concebido, estruturado, coletado, escrito, concluído, diagramado em três meses; mas tivemos que esperar até 3 de fevereiro de 2023 para que fosse distribuído nas livrarias, o tempo necessário para que voltasse da gráfica, fosse distribuído, etc. Como muitas vezes levo anos para escrever meus livros, este é, nesse aspecto, muito excepcional e eu o amo ainda mais por isso: uma vida de pesquisa racional (meu primeiro curso sobre Jean-Luc Godard data da década de 1980) e três meses de loucura gastos na escrita.

É claro que o próprio Jean-Luc não pediu para que este livro acontecesse. Sempre me surpreendi ao vê-lo me contatar, ele que parecia não ter o menor interesse, ou mesmo ser hostil, ao que escreviam sobre ele. Ao longo do trabalho que desenvolvi em sua companhia, tentei não me colocar na posição de exegeta, não lhe fazer perguntas sobre seus filmes anteriores, mas manter-me no presente em sua criação. Contudo, atendi a alguns pedidos desse tipo, como o do grande diretor de fotografia Pierre William Glenn, que precisava do depoimento de Jean-Luc para um documentário que estava preparando sobre seu amigo Johnny Halliday – você pode ler o resultado no livro.

Seu livro me pareceu uma jornada pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida por meio do cinema, entendido como uma arte de transformação. Às vezes, parecia denso, e a princípio busquei cada referência que ele abordava. Então, percebi que deveria percorrê-lo como se estivesse sendo levado pelo fluxo de ideias, histórias e conceitos que este manifesto de encantamento (digamos assim) contém. No final, percebi que é um livro que captura o leitor não apenas racionalmente, mas emocionalmente, levando-o a compreender os fundamentos de sua maneira única de fazer cinema — a maneira Godard. Meu modo de ler o livro é aceitável? Como você aconselharia os leitores a abordarem seu livro?

Muito obrigada por esta expressão, “uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação”. Não poderia sonhar com uma abordagem melhor. E, na minha opinião, ela também resume perfeitamente a obra do próprio Jean-Luc Godard, que ao longo de sua vida buscou revolucionar o cinema: em sua escrita, no tratamento de seus temas, em sua relação com a realidade, em suas apostas políticas, em sua organização material, em sua logística, no uso de seus instrumentos… Nenhuma dimensão do cinema escapou às suas iniciativas revolucionárias. 

Em Friedrich Schiller, a inspiração para uma liberdade que se tornaria civil

Um dos aspectos a que ele frequentemente retornava diz respeito à organização concreta e material do cinema: ele explicava que uma equipe de filmagem formava uma pequena sociedade provisória e que, portanto, deveria ser fácil começar revolucionando as relações hierárquicas e de trabalho ali reinantes, de modo a começar a revolução por algum lugar. Nesse ponto, tão significativo em sua carreira acredito ter sido ele haver encontrado espontaneamente uma dupla influência: a de Friedrich Schiller e a do Romantismo alemão, que considerava a obra de arte um modelo de liberdade, precursora de uma liberdade que se tornaria civil; e a do Grupo Cine Liberación, de Fernando Solanas e Octavio Getino, redefinindo a prática do cinema com base em modelos de guerrilha, estes segundo os quais, em uma equipe, cada membro pode ser substituído por qualquer outro em caso de prisão, lesão ou morte.

Quanto ao livro, cada um o lerá como quiser, isso é óbvio; mas creio que todos começam lendo as mensagens do próprio Jean-Luc. De qualquer forma, é o que eu também faria se outra pessoa o tivesse publicado! Cada mensagem de JLG oferece uma pequena obra em si mesma e mostra até que ponto cada uma de suas ações, mesmo as mais técnicas, triviais, por exemplo, organizar uma reunião, se tornou uma oportunidade para criar, inventar, sorrir, de uma forma lúdica e alegre que, a meu ver, vem de muito longe, de toda a cultura do chiste de protesto atestada pelos cínicos gregos como Diógenes, por exemplo, e cuja teorização culmina com o Witz dos românticos, ao qual dediquei um estudo. Essa cultura do Witz, que passa por Baltasar Gracián, Diderot, Karl Marx, os surrealistas, os irmãos Marx… era congênita a ele, e a vemos funcionar cotidianamente nas mensagens que ele enviava de seu celular e que são pequenas montagens maravilhosas entre título, texto e imagem.

A riqueza das cartas de JLG conhecidas até o momento (ele publicou várias na Cahiers du cinéma, em particular) me lançou em uma empreitada que exigirá várias gerações de pesquisadores: publicar a correspondência de Jean-Luc Godard. Dois volumes já estão em preparação: sua correspondência com o curador e diretor de instituições culturais francês Dominique Païni; e com a cineasta suíça Danielle Jaeggi. Por isso, lanço um apelo a você: se tiver conhecimento da existência de correspondência com cineastas, artistas, críticos e programadores brasileiros, por exemplo, o caso mais evidente, Glauber Rocha, escreva-me!

Seu livro mostra Godard em contato constante com diferentes grupos de cineastas e técnicos. Ele buscava reavaliar sua própria obra e incorporar novas técnicas para concretizar sua atuação como diretor de cinema. Você acha que outros cineastas em contato com Godard souberam fazer isso de forma semelhante? Quem são seus maiores discípulos? Ou, melhor ainda, é possível seguir os passos de Godard no cinema, dada a singularidade e originalidade de sua expressão?

Esta é uma boa pergunta. Um cineasta verdadeiramente godardiano obviamente fará de tudo para evitar imitar Jean-Luc Godard e, como ele fez, encontrar o caminho para sua própria liberdade. Alguns cineastas o seguiram diretamente, como Chantal Akerman, respondendo a Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas, 1965) com Saute ma ville (1971); Philippe Garrel a Masculin Féminin (Masculino-Feminino, 1966), com seus primeiros filmes; ou Rainer Werner Fassbinder, a La Chinoise (A Chinesa, 1967), com Die Dritte Generation (A Terceira Geração, 1979). 

Mas, acima de tudo, há uma linhagem magnífica de artistas que segue explicitamente os passos dos grandes ensaios de JLG e Jean-Pierre Gorin e que brilhantemente concretizaram essa herança formal: a linhagem de diretores como o tcheco Harun Farocki (1944-2014), Hartmut Bitomsky (nascido na Alemanha em 1942) e o romeno Andréi Ujică (nascido na Romênia em 1951). Juntos ou separadamente, eles criaram poderosos ensaios cinematográficos dedicados a muitos assuntos diferentes (a comercialização da vida, a sociedade de controle, a indústria militar, o papel paradoxal da televisão na revolução, o jogo de atuação, etc.), mas, como JLG, afirmaram e desenvolveram os poderes críticos da imagem e do som. 

Harun Farocki também dedicou-lhe Speaking about Godard (Falando sobre Godard, NYU Press, 1998), em conversa com Kaja Silvermann, um pouco como JLG e Anne-Marie Miéville conversaram em Soft and Hard (Soft Talk on a Hard Subject Between Two Friends): Speaking about Godard (Conversa suave sobre um assunto difícil entre dois amigos: Falando sobre Godard, vídeo-ensaio de 1998, com 52 minutos de duração). O professor de Cinema da Universidade de Zurique Volker Pantenburg escreveu um excelente resumo sobre o assunto, Farocki/ Godard: Film As Theory (Farocki/Godard: O filme como teoria, editora Amsterdam University Press, 2015). 

No alto, três mensagens a Nicole que trabalham o autorretrato do diretor. Acima, Godard com seus cães Roxy e Loulou

É muito tocante a maneira como você decidiu mostrar Godard por meio dos e-mails que o diretor lhe mandou. Seu rosto, seus cachorros! (Você os conhecia? Sabe os nomes deles?) Mas por que não mostrou a nós, leitores, a troca completa de e-mails entre você e ele? Pretende fazer isso no futuro?

Os cães se chamam Roxy e Loulou; Roxy Miéville foi a protagonista de Adeus à Linguagem (Adieu au langage, 2014). Quanto à correspondência, não quis mostrá-la como tal, ou seja, na forma de trocas; mas precisamente especificando a natureza de obra, de pequena obra, de cada uma das mensagens de Jean-Luc. Se um dia nossa correspondência fosse publicada, certamente não seria por mim, talvez depois da minha morte, daqui a uma ou duas gerações, se a espécie humana ainda existir e se interessar por cinema…

Quais das suas notas sobre Imagem e Palavra (Le livre d’image, 2018), dadas a Godard, foram incluídas no filme?

Eu preferiria não responder a essa pergunta, preferiria que minhas sugestões se encaixassem de todo no trabalho geral, para isso elas foram feitas.

Entre suas notas sobre Imagem e Palavra, há uma sugestão de incluir filmes feitos por mulheres árabes. Ele aceitou? Se sim, quais desses filmes ele citou?

A esta pergunta, porém, respondo com prazer, pois me permite evocar duas das pessoas mais magníficas que tive a oportunidade de conhecer. Imagem e Palavra cita filmes de Moufida Tlatli, Safia Benhaïm, Wiam Simav Bedirxan e Jocelyne Saab. Na minha memória, as três primeiras já estavam presentes. Jean-Luc conhecera Jocelyne Saab durante suas viagens ao Oriente Médio para empreender Jusqu’à La Victoire – Méthodes De Pensée Et De Travail De La Révolution Palestinienne (Até a Vitória – Métodos de Pensamento e Trabalho na Revolução Palestina, 1970), filme assinado pelo grupo Dziga Vertov. 

Ambos tinham um grande amigo em comum, o escritor e diplomata Elias Sanbar. Em 2018, Jocelyne já sofria da doença que a tiraria a vida e, com a Editions de l’œil, buscávamos publicar, ainda em vida, um álbum de suas fotografias e fotogramas, nos quais ela trabalhava em seu leito de hospital. Precisávamos urgentemente de dinheiro e, sem hesitar um segundo, Jean-Luc ofereceu todo o valor necessário para a publicação do que apareceu sob o título Zones de guerre (Zonas de guerra) e que foi, sem dúvida, a última alegria de Jocelyne. Em 4 de dezembro de 2018, Jocelyne dedicou um exemplar a Jean-Luc em seu aniversário; e ela partiu em 7 de janeiro de 2019. Ela lhe escreveu: “Meu caro produtor, querido Jean-Luc, eu gostaria de estar ao seu lado para lhe desejar um feliz aniversário. Sem você, este livro jamais teria existido. É uma alegria compartilhar os créditos com você. Jocelyne Saab, 3 de dezembro de 2018.” 

Este caso particularmente comovente me permite evocar a incrível generosidade de Jean-Luc. Ao longo de sua vida, ele ajudou muitos cineastas e pessoas de diversas maneiras, financeiramente ou por outros meios, para sua criação, para sua vida ou para sua sobrevivência. Mas, como todas as pessoas verdadeiramente generosas, ele nunca mencionou isso. Como resultado, sua imagem pública, alimentada por provocações, conflitos e farpas de todos os tipos, está em grande desacordo com sua pessoa privada.

Você diz que o filme Imagem e Palavra se opõe às religiões da Biblos Mística. O que é a Biblos Mística? Por que lutar contra ela? Como Godard combateu isso?

Biblos é o Livro, pois dita a Lei, exemplarmente o que no Ocidente chamamos de Bíblia, um estranho agregado de fábulas e prescrições que conseguiu impor-se durante dois milénios e em nome do qual se cometeu a pior violência imperialista, colonial, racista, sexista, sexual, intelectual… Construir um mundo sem as aberrações e divisões falaciosas ligadas a uma religião doutrinária (que não equivale, evidentemente, a um sentimento religioso, místico ou animista), foi um sonho e um esforço nascido do Iluminismo e prosseguido até ao século XX, por vezes com algum sucesso, como o laicismo republicano na França, por vezes com tanta aberração quanto o antagonista, como as perseguições religiosas na União Soviética ou mesmo hoje, na China comunista. Contra a comprovada violência histórica de Biblos e Logos, Imagem e Palavra aposta no poder libertador da imagem, pela sua polissemia, pela sua imprecisão, pela sua profundidade, pela sua volatilidade, pelo seu caráter multidimensional (a imagem é também concreta, psíquica, material, cultural, descritiva, alegórica, criativa, ilustrativa, etc.) 

Jean-Luc fez parte de uma geração que podia acreditar que o problema da religião doutrinária estava mais ou menos resolvido, pelo menos na Europa. E que de repente, como todos nós, o viu ressurgir no final do século XX e se impor novamente ao mundo no início do século XXI. Este é um dos principais elementos regressivos contemporâneos, a ponto de não vermos mais quais ferramentas poderiam neutralizá-lo desta vez: a dinâmica da Razão não será suficiente como antes. Com suas próprias ferramentas, JLG, em Imagem e Palavra, observou como a imagem e o som poderiam se levantar contra a tirania do Logos. Como pode ser visto em particular em sua obra-prima, História(s) do cinema, mas já era verdade em Alphaville, Duas ou três coisas que eu sei dela ou Weekend à francesa, ele sempre pensou em fenômenos na escala da Civilização, algo que poucos cineastas foram capazes de realizar.

O livro Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas, de Nicole Brenez (trad. Adilson Mendes, org. de Mendes e Lucas Murari, Desconcertos Editora, 260 págs., R$ 120), é lançado em São Paulo no dia 15 de julho de 2025. Na noite do lançamento, haverá mesa-redonda com a participação de Adilson Mendes, Lucas Murari e Carlos Adriano na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, entre 19h30 e 21h30. O livro também pode ser adquirido pelo site da editora, https://desconcertoseditora.com.br/produto/jean-luc-godard-escritos-politicos-sobre-o-cinema-e-outras-artes-filmicas/

PROGRAMAÇÃO DO EVENTO NO SESC AVENIDA PAULISTA

As sessões de filmes no espaço Arte II (13º andar), do Sesc Avenida Paulista, acontecem entre 16 e 18 de julho e apresentam filmes que atravessam diferentes fases da obra de Jean-Luc Godard. A mostra apresenta desde clássicos da juventude maoísta como A Chinesa (1967), até seus trabalhos mais recentes e experimentais, como Imagem e Palavra (2018) e Film annonce du film qui n’existera jamais: Drôles de guerres (2023), finalizado pouco antes de sua morte. As sessões no espaço Arte II são gratuitas. 

Integram ainda a seleção obras inéditas no Brasil, como Scénarios (2024), filme póstumo codirigido por Fabrice Aragno e Jean-Paul Battaggia, que inclui o último autorretrato do cineasta, e Rolle: Inventário (2024), documentário sobre o ateliê de Godard, transformado em espaço de memória e criação. O curta Apresentação do trailer do filme Scénario (2024) completa a programação, traçando um panorama íntimo e radical dos últimos gestos cinematográficos de Jean-Luc Godard.

Os cineconcertos completam a programação de filmes. No dia 24 de julho, o OLIB Ensemble apresenta uma trilha sonora original ao vivo para Momentos selecionados da(s) história(s) do cinema (Moments choisis des histoire(s) du cinéma, 2004, 83’), versão em formato de longa-metragem da série Histoire(s) du cinéma, originalmente concebida em oito episódios. A obra reúne uma seleção pessoal de Godard com momentos marcantes da série, funcionando como uma montagem-síntese da história do cinema sob sua ótica.

No dia 25 de julho, o músico e artista sonoro Dino Vicente realiza uma performance ao vivo para a sessão dupla de Sang Titre (2019) e Reportagem amadora (maquete da exposição) (Reportage amateur [maquette expo], 2006, 47’). Esta última foi realizada como parte da preparação da exposição Voyage(s) en utopies, Jean-Luc Godard, 1946–2006, apresentada no Centre Pompidou, em Paris. A trilha concebida por Vicente propõe uma intervenção sonora dodecafônica e concreta, a partir dos próprios materiais elaborados para a mostra. Os ingressos custam R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia) e R$ 12,00 (credencial plena), com venda online e na bilheteria.

Nos dias 22 e 23 de julho, das 19h às 21h, o curso “Jean-Luc Godard: vanguarda e política” será ministrado pelos curadores da mostra e editores do livro de Nicole Brenez, Adilson Mendes e Lucas Murari. Realizado no espaço Estúdio do Sesc Avenida Paulista e com limite de vagas para 20 participantes, o curso propõe uma leitura crítica da trajetória do cineasta à luz das proposições teóricas de Brenez, destacando os elementos de ruptura, experimentação e engajamento político que marcam sua filmografia. As inscrições devem ser feitas online, com valores de R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia) e R$ 9,00 (credencial plena).

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