Rita em tudo

eu nem mais próxima da Rita Lee era, cansada de vê-la mimetizar as reacinhas do saia justa e no twitter, embora tenha me sentido sua fã absoluta desde a infância, e tivesse visto um show seu em 1979, por aí, naquele ginásio da improvável Fortaleza onde eu passava as férias escolares com a família, e houvesse amado tudo, apesar da acústica ruim, mas principalmente vê-la conversar com a gente, linda, elegante até o impossível, toda de branco, com a franja no cabelo vermelho comprido e liso, parodiando as próprias canções, surpresa pq não conhecíamos ‘meu bem você me dá água na boca, no chão, no mar, na lua, em cima da pia’, e a menina triste aqui dentro não podia parar de pensar como seria bom se soubesse rir de mim mesma como ela, tão genial, fazia consigo própria, enquanto eu tentava explicar confusamente aos meus primos nordestinos o que queria dizer ‘orra meu’, minha rita linda e louca, o choro não tem fim nesta solidão do momento sob o sol, não tem!

Imagine all the people

Amo São Paulo. Mas a amo vazia.

Não sei negar conversa e me arrepio. Ainda não digeri o que me disseram hoje de manhã na hidro do Sesc. Do Sesc, bem entendido, não do Clube Pinheiros. Mais ou menos isto:

“Estamos num mato sem cachorro. Fodidos. Deveríamos tirar Lula já, mas não fazemos isso porque somos acomodados. Os noias não devem ser alimentados por nós, porque se acostumam mal. Eles agem em quadrilha. Eles estão chegando em Santa Cecília. As tendas! Precisava pegar esse povo da Cracolândia e colocar numa casa. E quem quisesse se matasse lá. Lula só viaja. Foi vaiado em Portugal. E levou sindicalista e sem-terra na comitiva. Agora vai cobrar imposto sindical na aposentadoria. Se ainda tivermos aposentadoria! Essa história de o Brasil se meter na guerra da Ucrânia não dá pra acreditar. Bolsonaro deu azar porque teve a pandemia no meio.”

De noite, no ônibus, não tenho coragem de expulsar do meu lado no banco o homem preto bonito, todo vestido e totalmente bêbado, com aquela bebedeira sem fim nem começo, que insiste em me apertar pelos olhos, mesmo estando eu a escutar música pelo enorme fone de ouvido vermelho, com o rosto voltado pra janela. Acha que sou alguém muito conhecida dele e não se conforma. Deixo ele falar o quanto quer. É uma fala adoecida pelo mundo, não aquela da manhã na hidro, pra adoecer.

Amo São Paulo vazia. Que a imaginação nos crie.

O que eu sei é que só se fala do arrastão na farmácia aqui no centro.

Fui olhar o filme feito a partir de uma janela no alto. E fiquei impressionada com a imagem de dezenas de sem-teto/noias do sexo masculino a sair pela porta levando qualquer coisa nas mãos (como fraldas), tiradas das estantes deixadas vazias, sob o olhar impotente de cinco seguranças vestidos de preto que não sabiam o que fazer com seus… bastões.

Algo muito particular aconteceu ali, que talvez se relacionasse com indignação. Vc não se arriscaria a entrar numa farmácia em mutirão para roubar apenas um pacote de fraldas, certo? Só se tivesse muita raiva, ódio daquele lugar e do que os seguranças aprontaram para defender o estabelecimento ou se favorecer diante de alguma situação de fragilidade.

Malditos prefeito, governador, GCM e PM que tratam essas pessoas no centro como lixo o ano inteiro, desfazendo suas tendas e cobertores.

Quando vcs aceitam humilhar moradores de rua, atacam todos os outros habitantes da cidade de uma vez. Que esses sem-teto se rebelem é questão de tempo.

Não sei, por exemplo, por que não tiramos esse prefeito imediatamente de onde está.

Não sei por que a revolta sempre se deu tão mal no livro de história chamado brasil.

erramos uma ova

não me venha a folha falar em erro ao mandar publicar uma versão não aprovada do editorial.

essas coisas não são assim.

editorial é sempre uma bomba atômica checada e rechecada mil vezes por funcionários antigos e bem pagos.

não raro os editorialistas almoçam e jantam com seus patrões, para então assimilar seu mundo, sua cabeça oca. e se os patrões pediram assim, alguém teve de escrever assim – razão pela qual houve um texto finalizado com esse teor.

aconteceu, isso sim, de o mundo ter caído por lá no dia seguinte, o mundo jurídico, imagino.

bando.

mean girls

ah pronto.
agora o caso é o de defender as meninas de 18 anos porque qualquer uma de nós, aos 18, achava velha uma mulher de 40?
sim, achávamos velha uma mulher dez anos mais velha, que dirá vinte!
mas fazíamos chacota por trás, por acaso?
ridicularizando em alto e bom som alguém que voltava a estudar?
não me lembro de isso ser perdoável em tempo algum.
e não entendi por que as estudantes em questão saíram da faculdade sem se defender.
advogados?
elas deveriam ter ficado até o fim e provado sua inocência imatura, ou a existência de algo assim.
só isso seria educativo pra elas próprias e pro brasil.

As it is, as it was

Inteligência, inteligência, inteligência! Não aguento mais ouvir esta palavra esmagada, sangrada, pregada a sua combatente, a sua mulher de areia desinteligência, cujo fim é o oposto do convívio, é destruir nossa integridade, nossos laços.

Sim, eu ando com celular à mão no centro de São Paulo, onde moro, em meio a uma onda assustadora de furtos e assaltos de aparelhos. Ando com meu celular na mão durante o dia porque não sei pra que mais teria um celular durante o dia, a não ser para colocá-lo na mão e usá-lo no centro. E fotografar. E me aproximar de alguma forma daqueles de meu entorno, de minha geometria.

Mas agora parece que incomodo a ordem do mundo se seguro o celular junto ao corpo no centro. Uma borboleta vai interromper seu voo em Seul! Pode parecer incrível pra qualquer um que na minha idade e dez quilos mais pesada eu me exercite fazendo isso e saiba calcular distâncias.

Eu roubo cenas de rua. Roubo. É um vício, uma canção permanente no meu coração. Eu julgo essas as cenas mais legítimas, responsivas. Eu quero devolver com carinho o que chegou até mim como uma rápida visão. Eu vou empunhar o bicho furtivamente enquanto julgue que ele me ajuda nesta tarefa. E é claro que um dia meu anjo da guarda distraído vai deixar que me peguem. E então?

É engraçado como nenhum noia jamais me incomodou por isso. Uma trans me parou uma vez sob o viaduto da Marechal Deodoro para ofertar uma pose sua em troca das moedas que eu tivesse. Como agradeci!

Um sem-teto me pediu pra fotografá-lo tempos depois para que pudesse se ver na imagem que eu fiz, já que não tem celular. E o fotografei com tanto carinho, e lhe mostrei a foto e ele amou. Mas eu estava na avenida São João. E estava na São João um grupo de senhoras que me vociferou como se eu, dentro do aquário, topasse com um rosto deformado pelo vidro: “Não!” Que não? “Não! Abaixa isso! Eles vão te roubar, te roubar, entendeu?!” Eles quem? Eu não estou em guerra com eles. Eu sei o que estou fazendo! Ou não sei e não importa!

E hoje o mesmo, e hoje de novo, praticamente chamada de indolente enquanto empunho o bicho no cruzamento do viaduto. Assustador ser surpreendida por aquela senhora Cansei. Por que só mulher parecida com golpista encosta em mim? Vá lá, ri também. Ri ao vê-la gesticular enquanto eu ouvia alto no fone o Harry Styles lutar contra a gravidade em “As it was”. Finalmente entendi a canção!

Eu não vivo neste mundo. A esta altura da existência, como me explicar? Pensando bem, por quê?

manhã

às vezes a gente acha que nada vai mudar, e talvez nada realmente mude.

porém o tempo, que é um presente, é também a morte.

descubro agora cedo que não só o Facebook afunda, como afundaram as Kardashians no imaginário de adoração do mundo, não sei que mundo.

vou tomar um café, minha celebração das manhãs.

TUDO AO MESMO TEMPO AGORA NO ZAP


(Uma história baseada em pura realidade)

Hugh Grant não aguentaria dez segundos neste tapete cor de sangue que é o Brasil.

Fui ao mercadinho vizinho de manhã antes da chuva sem levar guarda-chuva, a quarta vez que faço isto na semana e me molho, e me escorrego e quase caio no buraco da calçada que não dá pra ver.

Eu joguei pedra na cruz, é o que concluo. Eu sou como o Hugh Grant. Má. Mal-humorada. Sem paciência pro mundo e pra burrice. Eu mereço. Mas quem dera tivesse aquele talento encarnado que o Grant tem. Daria minha vida, sem nem ligar que o inferno chegasse depois. Tá ouvindo, deus?

Entro no mercadinho, pego as coisas que preciso levar e vou até a caixa livre. Ela está num conversê com a colega que arruma a prateleira.

A caixa é bem doida, notável por isso, fala o que vem à cabeça e acabou. Uma vez no auge da pandemia me mandou tirar a máscara para entender se eu queria crédito ou débito e não tirei. É doida mas jovem, mas magra, mas negra, linda de morrer, e não vou brigar com ela. A colega, nem tanto. Porém, bonita mesmo assim. Basta ser jovem pra ser bonita, dizia minha tia Alzira desde que completou 50 anos. E nem 50 tenho mais.

Essa conversa não para nunca? Bela nota que o ano está passando rápido. E que os jovens continuam morrendo todos os dias, metidos em drogas. Ela se pergunta: Depois de morrer, de que adianta tudo melhorar? Porém, vê uma esperança. Bela leu uma coisa no zap.

Bela leu que vivemos o pior dos tempos, razão pela qual ele vai voltar. Neste ano ainda!

Ai, meu deus, retiro o que pedi. Nem olho pra ela, pra não correr o risco de invocar o Grant Encarnado e lhe responder. Quero juntar tudo no balcão, pagar e sair correndo. Mas ela insiste na conversa e não registra as compras. É quando a colega Menos Bela pergunta, do nada:

– Pior dos tempos?

E me olha diretamente.

Fecho os olhos pra desaparecer, abro-os mas elas continuam lá, incansáveis de mim. Apertei o botão errado? A quantos metaversos tenho direito ainda? Três, um? Já! Respiro.

– Vejam bem – digo a elas, fazendo-me de velhinha multiplicada por seis. – Não é o pior dos tempos. Eu já nasci no pior dos tempos. Antes de mim, os tempos já eram os piores. Então, não se preocupem. Quanto custa o abacaxi?

Muita discordância naquele olhar de máscara abaixo do nariz. Mas estou no caminho certo. Pelo menos, Bela correu pra olhar o preço que pedi.

– São os piores tempos sim, são como eu disse, são como estava escrito! – Bela protesta.

É, não deu certo, então. Ela tem a força. Continua a se mostrar, a se impor ao mercadinho inteiro, como se seus peitos crescessem até as paredes.

De repente, sinto uma coceira nas costas e já sei de tudo. O Grant Encarnado baixou em mim, mesmo eu tendo implorado ao meu deus que não. Bicho sacana. Preciso dizer uma coisa rápida pra mudar o rumo da conversa e humilhar Bela, antes que Menos Bela sucumba e, com ela, o mercado, a cidade toda, o país e a humanidade inteirinhos.

– Tá certo, você tem razão, é o pior dos tempos – digo-lhe. – Mas quem é mesmo que vai voltar?

Vocês entenderam certo. Eu respondo perguntando. E essa pergunta ousada inicia o combate. A essa altura, Grant Encarnado já me toma pelos pés.

– Jesus! – Bela responde.

– Ele vai voltar, né? – assegura-se Menos Bela depois de informar o preço do abacaxi: – 10,50, senhora! Mas na semana passada juro que só custava 7!

É isso. Reclamo do preço e do Brasil, pronto, vai dar certo, não levo o abacaxi e saio correndo.

– Quando soar a última trombeta, o céu vai se abrir inteiro para Jesus passar! – volta Bela. – Vai ser maravilhoso, e vai ser logo mais!

É a guerra instaurada. A máscara infla com o sopro. Não aguentamos mais. Nem eu, nem Grant Encarnado.

– E Jesus vai descer como? Voando? – pergunto, Grant já preso em meu joelho.

– Sim, voando num cavalo branco! – responde Bela.

– Ah, mas não vai mesmo! – e mostro a ela meus punhos mentais.

– A senhora não crê na bíblia? – Bela retruca, desta vez suave, melíflua dos infernos.

– Isto não está na bíblia, meu bem, por favor leia direito…

E enquanto isto vago no metaverso dois. Bela nunca viu uma bíblia na vida. Nunca viu um livro. Ela acha que tudo o que existiu está escrito no zap.

– Nem na luz a senhora acredita? – me pergunta docemente.

– Na luz? Na luz, você diz? (Minhas bochechas arfantes). Acredito sim! Tá cara pra burro!

Meto as compras no saco. Saio correndo. De novo a chuva, de novo o bueiro, de novo o buraco. Meu chinelo ameaça navegar, mas isto nem é o pior. O pior é… Que botão verde aperto? O que faço com Grant Encarnado já agarrado na minha cintura? (Hum!). Preciso correr. No metaverso 17, é Verme contra Jesus. Só resta uma solução. Um tradutor para as massas. Um educador urgente. Lula, paim, venha correndo. Dê um jeito. Ensine essa gente depressa! Nos liberte, meu filho! Ou você vai nos deixar morrer fritos em dez dimensões?

Um sol invencível


O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas. Aqui, a entrevista que fiz com ele em dezembro de 2022, a pedido da revista Robb Report.

Walter Firmo, fotografado por mim
com as cores de sua alegria, em um restaurante do centro paulistano

POR ROSANE PAVAM

Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelas intangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.


Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em “No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito”, a melhor exposição fotográfica a ter início em 2022.

Pixinguinha em plenitude,
na foto de 1967


Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1o de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino. Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter.

Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.

Na festa de São Benedito,
Espírito Santo, 1989


Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?” Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim.

Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia
lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete. Daí para o cabelo black power, de
protesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a “Life” na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista “O Cruzeiro”, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos,
que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.

O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares


Em “O Cruzeiro”, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal “Última Hora”, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como “Realidade”, “Manchete”, “Veja” e “IstoÉ”, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares. Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens “100 Dias na Amazônia de Ninguém”, que pautou, escreveu e fotografou para o “Jornal do Brasil”, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”

Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980

Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista “Manchete”. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.

Integrante da festa de São João,
em Cachoeira, no Recôncavo
Baiano, em 1975

De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser duro como foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!” João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado. Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.

A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001