Flow, dilúvio arrebatador

Expressar sem dialogar, eis o saber primordial do cinema, infelizmente em falta nos últimos tempos. Um filme sem palavras exige do diretor o domínio da fisicalidade, da poética da síntese, para que o sentido possa emergir. “Flow”, candidato da Letônia aos Oscars 2025 de melhor filme internacional e de melhor animação, faz isso a partir da imitação da corporalidade da natureza e dos animais. E diz muito, sem falar.

A palavra “flow”, do original em inglês, pode significar vazão tanto quanto fluxo. Flow, neste filme, representa os dois. Um fluxo tão intenso (de água, de inconsciente, de ideias) que transborda em criação. 

Seu diretor de 30 anos, o letão Gints Zilbalodis, usa os animais para passar mensagens, como fazem os fabulistas. Os principais recados do filme dizem respeito à solidariedade (entre espécies diferentes que precisam se ajudar carinhosamente para sobreviver) e à finitude (são belamente surreais suas representações da morte e das ruínas, estas que indicam vestígios da antiga presença humana).

Trata-se de um criador em fluxo e em forma, a conduzir uma animação em 3D de 3,6 milhões de dólares que às vezes pode parecer muito filtrada, estilizada dos contornos de animais reais, mas que é imbatível quando mimetiza os movimentos. Por meio de sua direção, os animais-personagens ganham a rapidez da vida. Só assim o gato protagonista de Zilbalodis (o diretor roteirizou o filme ao lado de Matiss Kaza), além de sete existências, pode exibir um milhão de olhares.

A essa narrativa que por vezes parece reproduzir as situações encadeadas dos sonhos, juntam-se uma sonoplastia precisa e a dublagem das expressões vocais dos outros bichos presentes, como o cachorro, a capivara, o lêmure e o pássaro-secretário. E assim, sem ouvir uma palavra sequer, sentimos o fluxo de um dilúvio arrebatador. 

Cancelaram o francês

Seria preciso ler o artigo do colaborador do NYTimes do dia 6 para entender por que ele viu nos desenhos de Pepe le Pew, o Pepe le Gambá, um incentivo à cultura do estupro. O que me contam é que seu apelo pelo cancelamento foi ouvido pelos executivos da Warner, que anunciaram o veto de acesso aos filmes a partir de agora.

Talvez essa animação fosse de início apenas uma grande sátira ao francês, um aprofundamento do estereótipo segundo o qual na França os homens não tomam banho e ainda assim se veem como grandes amantes. Seu criador foi Chuck Jones e Tex Avery, o diretor mais constante até 1969. Nunca assisti ao revival que começou em 1987.


Humor se baseia em estereótipo, em caricatura. E ali parecia acontecer a típica reação de uma nação pouco valorizada por sua cultura (a americana) contra outra excessivamente apreciada por isso, a europeia. Em 1945, depois de os Aliados venceram a guerra contra o Eixo, a Warner deve ter achado que seria boa hora para intensificar a crítica aos franceses, afinal colaboracionistas.
De resto, não sei se algum menino se animou com a perspectiva de Pepe ao assistir a esses desenhos. O gambazinho não se enxergava, era um imbecil. Apaixonou-se por uma gatinha preta achando que ela fosse um gambá também, já que uma tinta branca caíra em seu dorso e fizera com que se assemelhasse fisicamente a ele.


A gatinha tinha horror ao gambá, murcha e atormentada diante do sem-noção. Nós que assistíamos àquilo nos sentíamos aflitos e ríamos da estupidez do gambá. Terá alguma criança se identificado com Pepe a ponto de sair por aí, na vida adulta, estuprando mulheres? As crianças que conheci riam de Pepe e se identificavam com a mocinha, torcendo para que escapasse logo.
Por fim, pelo menos em sua primeira fase, era um desenho muito bonito e bem feito, com cenários inspirados na art déco. Bastava que a Warner, antes de cada exibição, esclarecesse as circunstâncias dessa produção, e que os DVDs contendo os desenhos colocassem uma introdução histórica situando a criação.


Enfim, muita água ainda rolará debaixo desta ponte e a gente sempre terá mais o que fazer.