O acesso livre ao parque do Jardim da Luz, patrimônio do lazer paulistano, é o maior bem que a abertura da Pina Contemporânea nos faz

Pelo Jardim da Luz, o melhor acesso à Pina Contemporânea
É um novo museu, mas também o acesso a uma paisagem esquecida da cidade de São Paulo. Um novo projeto arquitetônico, mas dentro de uma antiga construção escolar. O acolhimento da produção artística de nosso tempo, e também de um público para ela. Aberta em março de 2023 no centro da capital paulista, em área contígua à da unidade Luz, a Pinacoteca Contemporânea demonstra em poucos meses transcender a função contemplativa para atingir a de pertencimento. Naquela região da cidade onde miséria e violência parecem não ter fim, o visitante se sente em casa outra vez.
O diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Jochen Volz, descobriu com alegria, nos últimos meses, que a imensa maioria do público da Pina Contemporânea chega ao museu por um caminho inesperado. Não necessariamente ao atravessar a bela fachada de cobogós de sua entrada principal, na avenida Tiradentes, mas depois de experimentar sem sobressaltos o passeio do Jardim da Luz. O parque mais antigo da cidade, aberto ao público em 1825 como Jardim Público da Luz, é percorrido depois de o visitante circundar a Pina Luz à esquerda, pelo tradicional café.
“Era usual que mesmo os frequentadores mais fieis da Pinacoteca nunca tivessem pisado no parque”, conta o alemão Volz, que integra a equipe da instituição há seis anos. “Trinta obras de escultura do acervo do museu estão no jardim desde 2001, mas a maioria das pessoas nem tinha ideia disso, nunca havia ido até lá. É gostoso ver agora o público descobrir um passeio desta natureza e constatar que, apesar de estar próximo da Estação da Luz e da cracolândia, nada de ruim vai lhe acontecer.” Depois de atravessar o parque, o visitante chega à Pina Contemporânea talvez sem se dar conta de que já pise nela. É um mundo vasto. Com este terceiro edifício, a Pinacoteca de São Paulo, antes composta pela Pina Luz e pela Pina Estação, passa a ter 22.041 metros quadrados de área e 9.112 metros quadrados para exposições.

No projeto da Pina Contemporânea, foram mantidos os volumes arquitetônicos dos dois blocos de edifícios no terreno. Um mais antigo, atribuído ao escritório de Ramos de Azevedo, remanescente da primeira escola lá construída, e outro mais moderno, da década de 1950, de autoria do arquiteto Hélio Duarte. A unir esses dois blocos, há uma grande praça pública coberta, com 1.339,2 m², e um pavilhão onde está localizada a Galeria Praça, com 200 m², dois ateliês para atividades educativas e a loja do museu. Com 1.000m², a Grande Galeria está no subsolo. O mezanino com vista para o parque da Luz, onde está localizada a cafeteria, pode ser frequentado sem a necessidade de adquirir o ingresso do museu.
O prédio principal, que pertenceu à Escola Prudente de Moraes até 2015, ganhou três anos depois uma ampla reforma conduzida pelo escritório Arquitetos Associados em parceria com Silvio Oksman e em diálogo com as equipes da instituição. O intento foi manter as estruturas consideradas importantes, como o pátio da escola, e derrubar os muros que a cercavam. Investiram-se R$ 85 milhões na construção do novo espaço – R$ 55 milhões vieram do governo do Estado de São Paulo e R$ 30 milhões, sem uso de leis de incentivo, da família Gouvêa Telles, do empresário Marcel Telles, um dos fundadores da Ambev.
Transfigurado em vão do museu, o pátio evoca a arquitetura do prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, cujo projeto é de Villanova Artigas (1915-1985). O projeto tem várias inspirações históricas, entre elas Paulo Mendes da Rocha (1928-1921) na sua parte alta. Uma vez no pátio, desobrigado de passar por catracas ou detector de metais, o visitante depara com a imponente escultura de Tunga “Tríade Trindade” (2001) ali instalada. Na Grande Galeria, a primeira exposição do museu, aberta em março e intitulada “Chão da praça: obras do acervo da Pinacoteca”, trouxe 60 trabalhos de artistas brasileiros em torno de um conceito de territórios e encontros.
O museu pensa a arte de nosso tempo. E o momento artístico atual pede grandes espaços, possibilidade de movimento e interação com o público. Não que a Pinacoteca Luz tivesse deixado alguma vez de prestigiar a arte presente, como Volz ressalta. Trata-se do mais antigo museu de artes plásticas do Estado de São Paulo, inaugurado em 1905 e transformado em instituição estadual em 1911, quando inexistiam salões públicos para a exibição de obras de arte na cidade. Um terço do acervo é composto de arte contemporânea, desde que o museu começou a funcionar. A obra “São Paulo”, de Tarsila do Amaral, que em 1924 retrata o viaduto do Chá e o vale do Anhangabaú de maneira estilizada, foi adquirida pela Pinacoteca cinco anos depois de pintada. O museu comprou a tela “Mestiço”, de Cândido Portinari, em 1935, um ano após sua finalização. “Até 2020 o foco permanecia na ideia do academismo e da profissão de artista. Em 2006 foi agregada à Pinacoteca a Pina Estação, onde era exposto principalmente o acervo Nemirovsky, com ênfase para o modernismo. Já nesta época se pensava em como seria bonito criar um espaço dedicado à arte contemporânea.”

Em 2016, a coleção Nemirovsky foi para o prédio principal. E a ideia do espaço específico para a arte contemporânea se estabeleceu. “Contudo, de lá para cá, muitas coisas mudaram”, explica Volz. “Uma narrativa histórico-cronológica se tornou complicada de ser implantada. A ideia de que uma coisa causa outra e a outra coisa, uma terceira, não se prova exatamente assim na prática. Se você observar qualquer produção contemporânea, a de um artista como o indígena Jaider Esbell, por exemplo, vai constatar que ela modifica tudo o que entendíamos sobre Tarsila. Não tem como olhar de volta para sua ‘Antropofagia’, de 1929, e enxergar ali a mesma pintura que a gente viu antes.” E a ideia de separar em três edifícios a contação da arte brasileira (um para o período até o modernismo, outro para os modernos e um terceiro para a arte contemporânea) não se sustentou.
Em 2018, a direção do museu concluiu que seria mais interessante organizar o acervo sob perspectiva temática do que cronológica. “Em lugar de mostrar arte contemporânea somente na Pina Contemporânea, ficou mais interessante avaliar quais tipos de espaço a produção contemporânea demanda”, diz Volz. “É preciso entender a versatilidade de espaços. A produção de arte é outra. A escala também.”
Na Pina Contemporânea, os espaços se ampliaram. O depósito para a reserva técnica tem grandes dimensões. Mas não só a escala das obras se modificou, constata o diretor. “Os artistas mudaram. Artistas e instituições procuram outro tipo de contato entre arte e público. Querem acolhimento”, diz. “A Pina Luz é maravilhosa, um museu clássico de tradição europeia, com escadaria na frente para acessar os andares. Hoje, contudo, a maioria das pessoas já teme a escadaria, o foyer, a recepção, o detector de metal e a bilheteria, por entender que um espaço com todas essas etapas, imponente e monumental, não foi feito para elas. Mas nossa missão neste novo museu é ser para todos e todas.”
O diretor incumbiu uma curadoria de programação de realizar na praça (ou vão) do museu eventos que atraiam visitantes ao espaço. “Ainda estamos em um momento de experimentação, analisando os fluxos, volumes e permanência dos públicos em resposta às programações”, diz a curadora Clarissa Ximenes. Desde a abertura da Pina Contemporânea até o momento, as programações musicais e de dança foram um atrativo importante, como o show do Melanina Jazz com o Iké Afro na abertura da exposição de Antônio Obá, em junho, e a programação do Pina Dança.
Desde sua abertura, o museu atraiu cerca de 145 mil visitantes. Durante a semana, os principais foram alunos dos ensinos Fundamental e Médio, integrantes de associações e do terceiro setor. Nos fins de semana vêm famílias, jovens e adultos. Para todos eles, a Pina quer estruturar uma frequência mensal de apresentações musicais nos formatos de pocket shows, audições ou shows. Espera-se realizar uma programação mensal de artes do corpo não apenas centrada em performance, mas em coletivos e grupos que mesclem dança, música e visualidades.
Por fim, a relação com a vizinhança constitui um ponto caro à instituição, diz a curadora. “A questão da Luz como território histórico a abrigar pessoas em vulnerabilidade social, usuários de drogas e prostituição intensificou-se na pandemia. Projetos de longa data já atuam na região, como o Ação Educativa, em conjunto especialmente com ONGs. Meu trabalho como curadora de programação, neste sentido, é compreender o histórico destas ações e modos de intensificar o contato com tais agentes do território, propondo programações casadas. Possibilitar o acesso à cultura é o nosso papel transformador como instituição cultural.”

Certa vez, quando o entrevistei em São Paulo, o Nobel de Literatura V.S. Naipaul me disse ver uma única vantagem no jornalismo: as viagens que um jornalista faz.
Que azar eu dei. O jornalismo, literalmente, jamais me levou longe. Pelo menos, não a belas distâncias territoriais. Viajei em minha imaginação mesmo e, principalmente, me aventurei pela criação alheia, pelo pensamento do outro, de modo a traduzi-lo em mim.
Eis que nos últimos tempos tenho prosseguido nas viagens longas-curtas, em reportagens avulsas. Esta foi boa de fazer. Me rendi ao fato de que a Pina Contemporânea se tornou imprescindível à cidade. Ela nos devolveu o passeio no Jardim da Luz.
Considere visitá-la sábado, quando a entrada é gratuita. E pense em mim!