São Francisco segundo Le Goff

“É esse o contexto quando Francisco de Assis tem 20 anos, em 1201 ou 1202. Seu sucesso ocorre porque ele responde ao que espera uma grande parte de seus contemporâneos, tanto em relação ao que aceitam quanto em relação ao que recusam.

Francisco é um menino da cidade, um filho de comerciante, sua primeira área de apostolado é a área urbana, mas à cidade ele quer levar o sentido da pobreza em face do dinheiro e dos ricos, a paz em vez daquelas lutas intestinas que conheceu em Assis, entre Assis e Perúsia.

Retomando, em um novo contexto, o espírito de São Martinho, que ia se reabastecer na solidão do mosteiro de Marmoutier abandonando provisoriamente sua sede episcopal de Tours, Francisco busca a alternância entre a ação urbana e o retiro eremítico, a grande respiração entre o apostolado no meio dos homens e a regeneração na e pela solidão. A essa sociedade que se imobiliza, que se instala, ele propõe a estrada, a peregrinação.

Leigo num tempo que viu a canonização (1199) pelo novo papa Inocêncio de um comerciante, Hombão de Cremona, Francisco quis mostrar que os leigos são dignos e capazes de levar, como os clérigos, com os clérigos, uma vida verdadeiramente apostólica. E se, apesar das dilacerações e dos choques, permanece fiel à Igreja, por humildade, por veneração aos sacramentos cuja administração reclama um corpo de ministros diferentes e respeitados, recusa significativamente, na sua fraternidade e tanto quanto possível na sua ordem nascente, a hierarquia e a prelazia. Nesse mundo em que aparece a família conjugal e agnática restrita, mas na qual o antifeminismo continua fundamental e em que reina uma grande indiferença à criança, ele manifesta, por suas ligações com algumas mulheres próximas e em primeiro lugar Santa Clara, por sua exaltação do Menino Jesus na manjedoura de Grécio, sua atenção fraternal à mulher e à criança.

A todos, longe das hierarquias, das categorias, das compartimentações, propõe um único modelo, o Cristo, um único programa, “seguir nu o Cristo nu”.

Nesse mundo que se torna o da exclusão — marcado pela legislação dos concílios, dos decretos, do direito canônico — e exclusão de judeus, leprosos, hereges, homossexuais, em que a escolástica exalta a natureza abstrata e, salvo exceções, nesse ponto ignora mais ainda o universo concreto, Francisco proclama, sem qualquer panteísmo, nem o mais longínquo, a presença divina em todas as criaturas. Entre o mundo monástico banhado de lágrimas e a massa dos despreocupados mergulhados numa ilusória alacridade, propõe a imagem alegre, sorridente, daquele que sabe que Deus é alegria.

É o contemporâneo dos sorrisos góticos. É também de seu tempo, juntamente com suas aberturas e suas recusas, por suas hesitações e suas ambiguidades.

Uma hesitação maior: em que reside o melhor ideal da vida humilde, no trabalho ou na mendicância? Como se situa a pobreza voluntária em relação à pobreza sofrida? Qual das duas é a pobreza “real”? Como deve viver o apóstolo, o penitente, na sociedade? Qual o valor do trabalho?

Uma ambiguidade essencial: qual a relação entre a pobreza e o saber? O saber não é uma riqueza, uma fonte de dominação e de desigualdade? Os livros não são um desses bens temporais que devem ser recusados? Diante do avanço intelectual, do movimento universitário que logo conquistará os leaders franciscanos, Francisco hesita. Mas, de um modo geral, pode-se perguntar se, quando morre, Francisco pensa ter fundado a última comunidade monástica ou a primeira fraternidade moderna.”

JACQUES LE GOFF
em “São Francisco de Assis”, ed Record, trad Marcos de Castro

Ilustração “São Francisco rezando para os pássaros”, Giotto, c. 1298.