Na residência-ateliê em 2016, dois meses após o golpe consumado contra a presidenta Dilma Rousseff, a artista Rosana Paulino me disse em entrevista não ter dúvidas de que a sombra do País, então conduzido por Michel Temer, é a escravidão: “Ou se aprende a conviver com essa sombra ou ela engole você. O Brasil tem empurrado essa questão para baixo do tapete. O resultado é uma das sociedades mais díspares, desiguais, perversas, racistas e classistas do mundo”

O ateliê em Vila Iara estende-se pelo andar de cima da casa onde Rosana Paulino nasceu, em 1967, filha de uma empregada doméstica e de um carregador de sacos de açúcar. É noite quando a entrevisto, em outubro de 2016. Os carros são poucos e as crianças ainda percorrem sem medo as ruas no subdistrito do bairro paulistano da Freguesia do Ó onde a artista trabalha até tarde, por funcionar, como ela diz, apenas quando a lua sai. Sob o testemunho das árvores ainda a cobrir o terreno e das alegrias ecoadas à distância pelos passantes, ela constrói madrugadas adentro sua síntese visual sobre a terrível história do Brasil, que tanto, e ainda, oprime aos seus.
O ofício de Rosana Paulino é de estudo, de quem jamais cedeu à pobreza legada. Seus computadores, a impressora, uma prensa e os livros sinalizam o perfil de uma pensadora sem rodeios. “O artista é um intelectual e tem de se posicionar”, acredita. “Este país ainda não foi pensado devidamente por nós.” Cerca-se de volumes que os artistas às vezes se esquecem de consultar, como os de sociologia, história, psicologia e ciências naturais. E não se perde em leituras excessivas sobre crítica de arte, que ela estudou ao adentrar a Universidade de São Paulo, em 1989, depois de se empregar como bancária por quase três anos e pagar um cursinho à vista.
“Aos 19 anos estava em mesa de negociação de greve. Não entrei ingênua no curso de Artes Plásticas e isto foi uma sorte.” Aprendeu bem porque não aprendeu depressa. Ou talvez tenha iniciado o aprendizado sem se dar conta de que aprendia. Jamais assistiu a telenovelas, que sua mãe, leitora ávida, detestava. Na mesma casa onde hoje está o ateliê, nem tão distante de sua residência atual, no Jardim Regina, em Pirituba, dona Lurdes, que bordava à noite, ensinou-lhe outros fazeres. Ela e as três irmãs passavam tardes inteiras a revolver a terra, cavar buracos e enchê-los com água.
A manualidade era sua herança negra. “Atrás desta casa há um pequeno braço do Tietê. E na proximidade dos rios o barro tem uma plasticidade excelente. No quintal fazíamos tartaruga, boizinho, mesas, cadeiras, bonecos, cenários. Não podíamos comprar brinquedos. Púnhamos o barro branco para secar e pintávamos no dia seguinte, com o resto da tinta que meu pai usava para colorir paredes.” Ela acredita ter herdado de seu Luiz a intuição para a cor.

Quis ser cientista, depois caminhou para as artes plásticas. Almejava ganhar a vida na publicidade ou pelo ofício da ilustração. Mas Tadeu Chiarelli, Annateresa Fabris, Regina Silveira e Evandro Carlos Jardim, seus professores, pegaram pesado com ela. “Uma vez, toda feliz, desenrolei no chão uns desenhos grandes e perguntei ao Jardim o que achava. Ele olhou: ‘Para um aluno normal, eu diria que está muito bom. Pra você, não. Sente-se e refaça’.” O artista seria o seu orientador no doutorado, que ela concluiu em 2011, depois de se especializar em gravura pelo London Print Studio, de Londres.
Embora fosse reconhecida pelo talento e a força de trabalho, sentia-se deslocada na universidade, onde jamais aprendera sobre arte africana, latino-americana ou asiática. No primeiro ano deu-se conta de que seria uma artista, mas em que produção negra se espelharia? Seu primeiro grande trabalho, adquirido pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, considerava as memórias familiares. Paulino amava a caixa de fotos de seus pais. Os personagens tornavam-se pequenas múmias de papel pela fotografia, conforme ensinara André Bazin. Sobre as imagens, ela colocou pedaços de microfibra transparente. E as figuras pareciam saídas dos patuás que a mãe pendurava acima da porta. Ela então transferiu as fotografias para pequenos pedaços de microfibra e os costurou. Estendidos na parede, os patuás formavam um gigantesco jogo de fixação do passado, que ela intitulou Parede da Memória.
A série Bastidores prosseguiu a pesquisa. As imagens familiares eram transferidas para um tecido que, preso pelo bastidor, recebia linhas de costura. O bordado cerrava as bocas, as gargantas e os olhos dos anônimos de sua família, a indicar a impossibilidade de aqueles personagens reconhecerem sua condição no mundo. “A violência, no Brasil, recai sobre as mulheres negras, base da pirâmide social. Elas são as mais abandonadas pelos companheiros, as que recebem menos anestesia na hora do parto. Isto é racismo estrutural.” A artista nunca sofreu violência por parte de pai, namorado ou marido, mas sua irmã mais nova, especialista em atendimento a vítimas de agressão doméstica, informou-lhe sobre um terrível quadro social. No Brasil, a tortura familiar era praticada com os objetos do cotidiano, a agulha, o saltinho de sapato e o cigarro, transformados em instrumentos de manutenção do poder. Uma situação a evocar as brutalidades contra os escravizados.

Em uma série seguinte, Assentamentos, a artista trabalhou sobre as fotos que Augusto Stahl compôs no século XIX, rumo a traçar uma suposta inferioridade negra diante do europeu. As imagens lhe falavam de perto. Aqueles personagens um dia tiveram infância, nadaram nos rios. Ela cortou seus retratos e costurou os pedaços com uma linha densa. “Mais do que uma linha de costura, trata-se de uma sutura. Quis mostrar o drama pessoal da escravidão. O negro sequestrado dos seus e levado a outra terra ainda consegue se refazer. Mas não se refaz por completo. Um trauma fica. A costura não fecha.” Em sua instalação, colocou as fotos ao lado de gravetos que simbolizavam o povo negro, lenha para queimar. E os tablets mostravam o mar aberto.
Em dezembro de 2016, o Senac Lapa, em São Paulo, planejou uma retrospectiva da obra de Paulino, que caminhou por várias outras vertentes. Concluído naquele ano, seu livro de artista, História Natural?, investiga a pseudociência eugênica. E seu refinamento gráfico pode ser observado nos desenhos evocadores da arte de Egon Schiele, como na série em que mulheres-inseto se fazem proteger por fluidos.

“A sombra do País é a escravidão. Ou se aprende a conviver com essa sombra ou ela engole você. O Brasil tem empurrado essa questão para baixo do tapete. O resultado é uma das sociedades mais díspares, desiguais, perversas, racistas e classistas do mundo.” Uma das principais economias mundiais se arrasta, como ela vê. “Este período tenebroso que vivemos nasce de não termos compreendido a dimensão pública. A classe dominante prefere dar um tiro no pé, colapsar todo um país, para não perder quem limpe o chão. Quando você vai à casa de um inglês, se tem barata subindo pela parede, problema do inglês. Mas ele não joga papel na rua porque é um lugar público. No Brasil, despeja-se tudo na rua, mas a casa tem de estar brilhando, porque antes havia alguém para fazer a limpeza. O Brasil é uma fazenda asfaltada.”
A artista procura acalmar quem se horroriza com o bueiro aberto na política. “Em ciência, as novas ideias triunfam não porque quem discordava delas passa a concordar, mas porque quem discordava morreu. A ciência avança a cada enterro.” Ela vê nos jovens das periferias uma frente de combate à onda conservadora. “O irmão mais velho foi o primeiro a entrar na faculdade, a menina do meio também cursou e para o terceiro irmão você diz que vai ser frentista porque a festa acabou? Vai dizer para a Liniker que agora não pode porque vovô não quer? Imagine. O menino reforça o batom e vai pra rua. Vão fazer um estrago lascado, a gente vai demorar a recuperar tudo isso, mas essa maré muda, gente. Aquele gabinete horroroso do Michel Temer, aquela gerontocracia, uma hora vai morrer também.”


