Minha entrevista com Jean-Claude Carrière

Em novembro de 2009 tive o prazer de entrevistar o grande escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, numa reportagem publicada em revista brasileira da qual não digo o nome.

Eu havia tentado encontrá-lo no telefone de sua residência, a mim fornecido pela editora que publicava um de seus livros, mas me foi impossível encontrá-lo. Ele nunca se lembrava que precisava ser entrevistado por uma pobre jornalista brasileira, e portanto jamais estava em casa na hora combinada.

Joguei então a toalha, como se diz, mas lancei uma última mensagem pela garrafa, enviando-lhe as perguntas por e-mail.

E não é que ele as respondeu?

Às dúvidas que eventualmente tive, ele acrescentou mais respostas.

Tratou-se então de uma conversa, no fim das contas…

Aqui vai o texto que escrevi e que publico nesta tristíssima ocasião da morte deste grande artista enquanto dormia, aos 89 anos.

Grande Carrière, pelo muito que nos deu, obrigada!

Jean-Claude Carrière em 2016,
na estreia da sua peça ‘As Palavras e a Coisa’ em Madri.
Foto de CLAUDIO ÁLVAREZ,
para o El País

FÉ NA PALAVRA

Jean-Claude Carrière fala de sua colaboração com Luis Buñuel, de seus romances e das lições aprendidas com o Oriente

POR ROSANE PAVAM

Aos 78 anos, o roteirista francês Jean-Claude Carrière não perdeu a fé na palavra, nem nas imagens que façam ampliar seu sentido. Mais exatamente, ele não declina de escrever, nem que para isso sirva ao cinema, a si mesmo ou à literatura no senso estrito. E Carrière é um grande escritor, paulatinamente transferido ao terreno de um novo romance visual, como este que a Cosacnaify lança em janeiro do ano que vem, depois de agora ter colocado nas livrarias uma reedição de sua co-autoria para a espetacular autobiografia do diretor Luis Buñuel, Meu Último Suspiro, de 1982. O prodígio recente de Carrière foi ter novelizado o filme-ícone de humor poético Meu Tio, que o diretor Jacques Tati concebeu há cinco décadas, curiosamente vazio de palavras.

“Para mim, reescrever um filme é sempre uma maneira de experimentar modos diferentes de escrita. Espero acrescentar alguma coisa a ele, como se lhe oferecesse um bônus”, ele diz em entrevista no dia 6 de novembro de 2009, véspera de sua viagem à Índia, onde o mexicano Juan-Carlos Rulfo filmará uma etapa da vida do célebre roteirista. “Foi uma decisão estranha a de Rulfo, esta de fazer minha biografia. De qualquer modo, um filme com este tema não poderia prescindir daquele país, para onde vou duas vezes ao ano, desde que roteirizei em 1989 o Mahabharata e me senti fascinado com a experiência. É algo sobre que ainda me debruço, em conferências, em toda parte.”

Na sua Índia imprescindível, ele estará acompanhado por “um bando de mexicanos loucos” que jamais esteve no país. “Promissor”, diz, bem-humorado e atencioso ao extremo, animado a dizer que já tem engatilhado um novo livro visual, com lançamento francês também em janeiro, e de título Mon Chèque. Será a história de um produtor de filmes com um cheque nas mãos, e que encontra muitas maneiras para não pagá-lo. 

Promissor? É o que ele espera, depois do enigma que cerca Os Fantasmas de Goya, filme nascido de um de seus romances, sobre o drama de uma musa do pintor injustamente acusada de heresia. Dirigido pelo experiente Milos Forman (Amadeus, Estranho no Ninho) e protagonizado por Natalie Portman, o filme fracassou em 2006, fato com que Carrière não se conforma, para não dizer que se enfurece ao encarar as objeções críticas à qualidade cinematográfica da obra.

“Milos e eu nunca entendemos o que aconteceu com o filme”, ele começa. “Ambos gostamos muito dele, outras pessoas também gostaram. E vemos que aos poucos se transforma em um filme cult.” Onde residiu o problema, eles não sabem dizer, já que entendem esta como parte de um grande mistério. “Alguns críticos disseram que concebemos um melodrama, como se não estivéssemos conscientes disso, como se fôssemos estúpidos, cegos e ignorantes”, ele se exalta. “Mas justamente durante a Revolução Francesa o melodrama foi inventado!”

Ele escreveu o livro ao mesmo tempo que Milos Forman o filmava. A ideia era desenvolver o drama no cinema e no romance a partir de um mesmo argumento inicial. “Há muitas diferenças entre os dois objetos, por exemplo em relação ao que acontece com o personagem Lorenzo [o inquisidor vivido por Javier Bardem] em Paris, e que não aparece no filme. Chegamos a uma certa amargura ao fim, mas não pudemos evitá-la.”

Nem sempre a dor acompanha o que ele escreve para tantos diretores. Em 1963 iniciou, aos 42 anos, uma parceria com o espanhol Luis Buñuel (1900-1983) que se estenderia até o final de sua vida no cinema, em 1979. “Eu não sou capaz de lhe dizer quais dos roteiros que fiz a ele me deu mais prazer”, diz, antecipando-se à questão universal proposta por seus entrevistadores. “Mas tenho um sentimento secreto por Esse Obscuro Objeto do Desejo, provavelmente por ter sido o último filme em que trabalhamos.”

Às vezes, ele diz, parece-lhe ainda ouvir a voz do amigo espanhol, que nunca escreveu uma só linha, nem tentou, e até detestava a própria letra sobre o papel. “O que teria sido dele em um outro tempo, antes da invenção do cinema?”, pergunta-se. Foi de Carrière a ideia de que escrevessem a autobiografia, já que, desde o início de sua cooperação, ele tomara várias notas sobre a vida de um dos maiores cineastas de todos os tempos e suas opiniões. 

De início o diretor recusou a proposta. Mas enquanto estavam no México Carrière decidiu redigir à revelia um dos capítulos, sobre os prazeres terrenos do diretor. Buñuel amou o que leu e lhe disse que era como se ele próprio tivesse proferido tais coisas. Os dois iniciaram a narrativa na casa mexicana do diretor. Conversavam pela manhã e Carrière escrevia sozinho, à tarde, coisas como esta: “Sou feito de meus erros e de minhas dúvidas, assim como de minhas certezas. Não sendo historiador, não recorri a nenhuma nota, a nenhum livro, e o retrato que proponho é, em todo caso, o meu, com minhas afirmações, hesitações, repetições e brancos, com minhas verdades e minhas mentiras; para resumir: minha memória.”

Parecia muito fácil trabalhar com Buñuel, que não era uma pessoa má, antes seu exato oposto, “generoso, tolerante e engraçado”. Ao mesmo tempo, tudo se revelava muito difícil de ser feito, justamente por se tratar de Buñuel. “Quando se está diante de alguém desse nível, é como se chegássemos à final dos Jogos Olímpicos. Não há nada acima, então é melhor estar na melhor forma para lidar com ele, dia e noite. Se você não estiver, ele notará imediatamente.” Carrière guarda a imagem de um homem solitário, meditativo, andando na floresta e contemplando os insetos. “E, claro, seus olhos olhando diretamente em minha direção por horas e horas todos os dias.”

As idas e vindas às terras dos budistas não alteraram um sentimento que o escritor compartilhou com o diretor espanhol. Jean-Claude Carrière se diz, como ele, um completo ateu. E acha que somente os apegados a esta básica descrença podem escrever de maneira confiável sobre os misticismos. “O que as religiões nos dizem sobre deuses, anjos ou demônios é pura fantasia. Isto tudo só interessa quando metaforicamente trata de nós mesmos, de nosso medos, esperanças, fracassos, fraquezas, daquilo que nos falta. A crença é sempre maior do que o conhecimento. É preciso saber disso ao escrever sobre religiões.” 

E o que os ensinamentos orientais lhe trouxeram, eis um outro mistério que ele não pretende definir. Sabe somente que seu poder de descrever as coisas por meio das palavras cresceu. “Encontrei um outro vocabulário, um novo modo de fazer as mesmas perguntas, às vezes encontrando, para elas, respostas diferentes.” No caso do budismo, aprendeu de que maneira se pode ser mais ecológico na relação com o mundo. Nada mais, e nada melhor.

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