O que aconteceu com as irmãs Curi

Minhas tias-avós Maria e Vitória eram tão desiguais que talvez tenha sido exatamente isso a mantê-las inseparáveis

Maria e Vitória, as irmãs Curi

Minhas tias-avós maternas da familia Curi, Maria e Vitória, tinham a vaidade compulsória da juventude. Nasceram no Maranhão, filhas de migrantes árabes, fãs ardorosas de bijuterias e tecidos, ou “cortes”.

Tia Maria era uma espécie de vulcão. Lá pelos 20 anos, nos anos 1920 desta foto, de tanto amar Hollywood, e desagradada dos próprios dentes em relação ao das estrelas, convenceu o dentista da família a arrancar todos eles. Em seu lugar, eternizou-se em sua boca uma dentadura reta e alva, trocada de tempos em tempos. “Fiquei linda!” – me contava sempre, como quem declamasse no palco grego.

Nunca se casou, mas até os 80 anos imaginou que isto aconteceria a ela inevitavelmente. Lembro-me de vê-la, aos 60, num vestido de tule verde à saída da missa de domingo no Tatuapé – e ela a me explicar que o vestido era para Jesus primeiramente, mas, em segundo lugar, para o homem indefinido que apareceria, se apaixonaria por ela e a levaria ao altar.

Nós a visitávamos aos domingos naquele bairro paulistano, para onde íamos de ônibus elétrico desde o centro, numa viagem demoradíssima. Lá Maria morava com as duas irmãs e os três irmãos, todos solteiros.

Dois dos homens eram feirantes. O mais velho deles, Fuad, muito próximo de nós, crianças, nos enchia de balas de mel vencidas, é verdade, mas dadas com tanto carinho que nem ligávamos pro sabor. O outro, Alfredo, vendia meias de náilon e, enquanto eu cresci, não parou de presenteá-las nos meus aniversários. O terceiro irmão, Dudu, era incapacitado desde os 9, quando, conta-se, ouviu um grito na noite e nunca mais falou.

No sobrado do Tatuapé, os seis irmãos dormiam em quartos separados – os três homens em um, as três mulheres, em outro. Quase não entrávamos no quarto dos homens, mas no das mulheres eu me sentia numa festa eterna, ao ouvir, durante as sestas, as histórias das irmãs sobre a família.

Maria ia além. Não só falava sobre o passado (e foi ela a me contar que, quando nasci, minha mãe inconformada salpicou um “que feia essa minha filha!”, para me encher de uma tristeza divertida desde sempre), como nos repassava as conversas que tivera com Jesus nas noites anteriores, até mesmo quando já nos tornáramos adultos. Tínhamos de ouvir e seguir o que o filho de deus nos mandara fazer… só que não, né?

Depois de Vitória e Maria, havia Helena, a mais nova, orgulho dos irmãos. Ela não apenas sobrevivera às doenças que mataram na infância sua irmã imediata Hilda e o gozador Luís (este que, no álbum de fotografia, surgia com uma cabeleira encaracolada até a cintura, tipo Luís XIV, em função da promessa materna por sua saúde, algo que infelizmente não impediu a morte da criança aos 7). Helena também tivera a sorte não dispensada ao caçula João, loiro de cabelos cacheados, atropelado aos 6 anos por um dos primeiros carros de São Luís, cidade para onde um casal de amigos de seus pais o levara a passeio. (“Como o senhor pega o meu filho vivo e o traz morto?”, disse minha bisavó ao compadre infeliz).

Vitória, eu e Helena diante do prédio em que morávamos, no Bixiga, em foto tirada por meu pai

Além de passar a perna na morte como por milagre, Helena representava grande orgulho familiar porque, tornada funcionária pública, praticamente sustentaria os outros cinco irmãos até que se aposentassem. Do nada ela apareceu um dia no sobrado com um piano para receber aulas – e eu, que não o tinha em casa, aproveitava os domingos na casa das tias (raramente dizíamos que aquela casa era dos “tios”) para repassar as lições da semana.

Vitória, à direita na primeira foto, era a minha querida, aquela me presenteava com um mussaká só dela, toda vez. Na sua infância, houve abundância familiar, visto que ela fora a segunda entre doze ou treze irmãos e os pais ainda tinham podido esbanjar com sua formação. Deram-lhe um piano para estudar, mas música não parecia ser coisa em que Vitória se aplicasse. Ela gostava mesmo era de ler romances, e para fazê-lo escondia-se atrás do instrumento à noite com uma lamparina, algo que seus pais não aprovavam nem um pouco, castigando-a por seu mau comportamento quando percebiam a ousadia.

Vitória foi crescendo e acumulando pretendentes de que não gostava em absoluto. Enrolava-os todos, negando seus pedidos de casamento, até que nenhum mais aparecesse e ela se visse, sem qualquer problema, como a irmã que cuidaria dos pais e irmãos pela vida toda, visto que minha avó, a primogênita, saíra de casa para se casar ainda adolescente.

Meus irmãos e eu na casa das tias (Maria e Vitória no canto à esquerda), diante do piano de Helena
e do Jesus de Maria

Essa dama brilhante, que nem ligava para sua beleza juvenil – ao contrário de minha tia Maria, que se imaginava bonita sem o ser -, foi minha luz na infância inteira. Muito inteligente, segura, perspicaz, bem-humorada, Vitória suportou as esquisitices de Maria, seus sonhos com Jesus, seu pudim que sempre solava, o tabaco mascado em grande quantidade e um louvor sem fim às garrafas de cerveja, até que Helena morresse algo precocemente. Todos sabiam que Vitória não aguentaria Maria sozinha por muito tempo. Eu ia visitá-la quando soube de sua morte, ocorrida menos de um mês depois que a caçula se foi.

Tia Maria foi a última dos irmãos a partir. Salvou-a, acredito, essa falta de noção em alto nível que a tirava da miséria cotidiana aqui embaixo. Até o fim, tia Maria viveu o céu que lhe coube. E a proximidade com o filho do dono – este ser que sobrecarregava com pedidos e de quem arrancava confidências – deu-lhe, bem antes que à maioria dos seres humanos, a sensação do paraíso.

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