
Itamar Vieira Júnior
no Museu das Favelas,
em São Paulo, a nos olhar
a partir de cima:
“A USP, coitada, não me
fez mal nenhum”
Novo escritor brasileiro com maior número de leitores, o baiano Itamar Vieira Júnior fala aqui, com suavidade, sobre a porção recusada do Brasil que descortina em seus best sellers premiados. Com suavidade, baianidade, igualmente com certeza, a nossa foi uma entrevista muito batalhada. Eu a havia sugerido à editora-chefe da revista Robb Report, a incansável amiga Gisele Vitória, e ela topou. Mas não consegui que ele me atendesse. A Todavia, casa publicadora de seus livros no Brasil, descartou-me essa possibilidade de cara, alegando que o autor estaria inteiramente ocupado com outras coisas (mais importantes, eu sei) no período. Mas Gisele não é jornalista de aceitar um não desses. Soube de sua presença em São Paulo, para uma edição da Flipelô, a Feira Literária do Pelourinho, e acionou os promotores do evento. No dia 14 de julho de 2023, então, igualdade, fraternidade e liberdade à lembrança, que nos virássemos em meia hora para entrevistar o escritor, excetuados os minutos gastos nos trâmites de apresentação: a escolha difícil de uma sala do museu para conversar (“Vamos entrar no prédio, senão esse povo todo vai nos cercar”, aconselhou-nos ele no pátio de entrada) e a sessão das fotos de Marcelo Navarro para a revista, imagens que não coloco aqui porque fiz as minhas próprias pelo celular. No fim, com o açúcar da vontade derramado sobre o amargor das interferências, conseguimos uma boa conversa. Ele falou de algo que eu aguardava muito conhecer, a sua formação para alcançar a literatura. Me surpreendi em descobrir que este escritor ainda não sabe, de fato, se continuará sendo um… Itamar tem a compleição física forte e os pés no chão. Com eles, na adolescência, andou até a casa de Jorge Amado para receber seu autógrafo e acabou brindado com um conselho de Zélia Gattai. O menino não dispunha de livros em casa, mas tinha sede. E uma porção importante de sua musicalidade com as palavras veio das vozes do rádio, dos grandes compositores amados pelo pai. Viu muito seriado na tevê, o que faz sentido quando pensamos nos seus dois romances, espécies de roteiros indicativos de espaços, personagens, diálogos e ganchos para o próximo capítulo. Li “Torto Arado” e “Salvar o Fogo” apenas para fazer esta entrevista. Posso afirmar que não entendo o autor como uma espécie de Paulo Coelho destes tempos, como se tem sugerido, visto que os assim ditos romances do mago brasileiro de letras são desprovidos da organização literária que Itamar tem de sobra. Como eu a vejo, a estrutura emotiva de seus livros evoca aquela da britânica J K Rowling: em sua saga baiana de formação, espécies negras de Harry Potters desfilam pela Hogwarts do Jarê para colocar à prova a intensa mentalidade infantil contra o mundo adulto ruim. De resto, adorei ter-lhe perguntado qual seu problema com a USP, uma vez que no passado se disse desinteressado da opinião da universidade paulista sobre o que escrevia, e ele ter respondido: “A USP, coitada, não me fez mal nenhum”. Este baiano nos olha de cima de um pedestal. E como é bom que um baiano nos olhe assim.
POR ROSANE PAVAM E GISELE VITÓRIA
(Fotos de Rosane Pavam)
Aos 44 anos, o baiano Itamar Vieira Júnior tem a consciência afiada feito a faca que sangra os destinos em “Torto Arado”, o primeiro romance de sua trilogia da terra. Com 700 mil leitores em todo o mundo (e a cada minuto que passa, desde a realização desta entrevista, em 14 julho último, quem sabe eles sejam bem mais), o livro traduzido para 23 línguas e protagonizado por uma família semi-escravizada, sem direitos sobre o chão em que trabalha, nasceu do contato do autor, geógrafo, com os quilombolas da Chapada Diamantina. Neste ano, a trilogia ganhou o segundo volume, “Salvar o fogo”, que se passa no Recôncavo Baiano, e logo o terceiro volume prosseguirá o mágico percurso do rio até a Bahia de Todos os Santos, segundo insinua o autor.
Suave para dizer as asperezas de um Brasil recusado, Itamar Vieira recebeu-nos em meio à edição paulistana da feira literária Flipelô, ocorrida em julho último no Museu das Favelas. Recordou com doce baianidade sua infância em batalha pelos livros, a poesia sorvida por meio da música popular e o encontro com o escritor Jorge Amado. Explicou por que considera realismo o que faz e garantiu, apesar de vencedor dos prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos, não estar de todo certo sobre seu futuro como escritor. Antes de tudo um forte, ele tem uma certeza, contudo. O Brasil precisa abrir-se à sua cultura múltipla para ser o Brasil de todos.
Quando a literatura começou para você?
Aprendi a ler com 5 anos e meio em Salvador, onde nasci, e já nessa idade lia e escrevia, sem saber muito bem o que estava escrevendo. A literatura não era objeto de interesse na minha família. Venho de uma geração de trabalhadores da cidade, mas meu pai foi criado até os 15 anos na área rural, no Recôncavo Baiano, que fazia parte de suas memórias. E o lado materno estava na cidade havia muitas gerações. Minha família, creio, era igual a muitas outras que adoravam contar histórias. Cresci nesse ambiente de muita memória. Embora a família jamais houvesse cultivado o hábito da leitura, por não ter escolaridade suficiente ou porque sua vida exigisse atenção para coisas mais urgentes, tive contato com a arte desde sempre, principalmente com a música. Meu pai era um grande apreciador de música popular brasileira, e por meio dela tive o primeiro contato com a poesia, as palavras, a melodia, a harmonia, com as coisas que terminam por refletir naquilo que eu escrevo. Eu ouvia o cancioneiro popular brasileiro, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento. O rádio vivia ligado, principalmente de manhã.

Se não havia livros em casa, onde você fazia suas leituras?
Minha escola não tinha biblioteca, mas meu vizinho Raimundo estudava em um lugar melhor, onde havia uma. Ele me emprestava os livros de lá. Eu pegava um volume e no outro dia já tinha de devolver. Lembro-me especialmente da Coleção Vagalume, uma série de literatura infanto-juvenil editada pela Ática. Um desses volumes, creio, foi o primeiro livro que li, ou o primeiro que me impactou, “O Caso da Borboleta Atíria”, uma história fabulosa da Lúcia Machado de Almeida. Os personagens eram os mesmos insetos que eu via à minha volta, nas brincadeiras de rua. Como podiam ter uma vida tão rica? Era só no que eu pensava depois de ler a história.
A literatura é essa varinha de condão que torna tudo mágico. Quando li esse livro eu disse: “Quero fazer a mesma coisa.” Eu deveria ter de 7 para 8 anos. E foi um encanto essa história em particular, porque enriqueceu o universo dos animais que eu conhecia pelas brincadeiras de rua, o besouro, a borboleta, as formigas. A Lúcia fez todos esses seres viverem uma história de mistério com tanta qualidade que fiquei impactado. Logo que terminei a leitura, comecei a escrever uma história, também com animais, com insetos. Eu me senti muito inspirado por ela.
Você guardava o que escrevia?
Eu escrevia e ia para o guarda-roupa, porque uma vez minha mãe, dona Teresa, achou meus papéis e se sentiu preocupada. Lembro de sua decepção ao descobrir que eu escrevia. Ela era dona de casa, achava isso uma bobagem. “Você deveria estar estudando, mas está escrevendo essas coisas!” E essas coisas não eram exatamente narrativas. Era tudo muito teatral, às vezes. Tinha muito diálogo, imagem, representação, talvez como influência dos seriados de televisão aos quais a gente assistia quando criança, como “O Sítio do Picapau Amarelo” e outros dos Estados Unidos, como “A Ilha da Fantasia” “MacGyver – Profissão Perigo”, “O Incrível Hulk”.
Você lia Monteiro Lobato?
Só tive contato com Monteiro Lobato mais tarde e não me capturou, talvez por eu já ter acompanhado a série de televisão.
Seus livros parecem ter sido feitos para a encenação. Sua narrativa é direta, ativa, dialogada. E os personagens têm universos incríveis para mostrar, como o do jarê em “Torto Arado”, que mistura ritos católicos e afroindígenas. Você experimentou essa religiosidade na infância?
Cresci em Salvador, onde a religião está impregnada em todos os cantos. O catolicismo, o neopentecostalismo e a maneira profunda do candomblé estão por lá. Se são 365 igrejas em Salvador, os terreiros existem em número três vezes maior. Morei 20 anos em uma casa no bairro de Mussurunga onde, nos fundos, havia um terreiro de candomblé, então eu escutava todas as cerimônias. Minha família é cristã, mas, claro, na Bahia a religiosidade nunca é absolutamente pura. Se as rezas e as ladainhas não dessem certo, todos iriam procurar outro tipo de ajuda. Meu contato com essa religiosidade veio do cotidiano, mas o jarê em particular eu conheci mesmo por conta do trabalho, viajando pelo campo, pela Chapada Diamantina, trabalhando com comunidades negras rurais.
Quando você começou a trabalhar no Incra?
Há 17 anos, no Maranhão, onde passei três anos. Voltei para trabalhar na Bahia e depois de um ano, mais ou menos, comecei a atuar em comunidades quilombolas. Passei um bom tempo na Chapada Diamantina, onde tive contato com o jarê, que só existe lá, típica prática religiosa sincrética na qual se encontram referências das regiões brasileiras, de práticas xamânicas de matriz africana, mas também do catolicismo rural.

Ali você também começou a pensar em desenvolver sua literatura?
Eu não venho da literatura, sou geógrafo de formação. Fiz pós-graduação no programa de Estudos Étnicos da Universidade Federal da Bahia, quando comecei a estudar Antropologia, que ensina a se colocar no lugar de escuta das pessoas, sem emitir julgamentos sobre aquilo que a gente escuta. Aprendemos a ver como as pessoas olham a vida a partir de suas cosmovisões. Exercitei isso com o tempo, o que me levou para mais perto da literatura, onde se faz o mesmo. A gente se envolve, se apaixona pelos personagens, mas não emite julgamento sobre eles. Deixa que vivam livres para praticar o bem e o mal, vamos dizer assim.
Esse contato com a antropologia chegou à pele, tanto que às vezes as pessoas veem em “Torto Arado” referências ao realismo mágico praticado por escritores como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Eu não gosto muito dessa ideia, porque no caso de minha literatura represento aquilo em que as pessoas de fato acreditam, sua maneira muito própria de ver o mundo. E quando a gente chama algo de “mágico” a gente fala a partir da nossa própria perspectiva, razão pela qual usa esse adjetivo.
A magia parece ser sentida, vivida por seus personagens. E talvez nem os realistas mágicos gostassem da expressão “realismo mágico”…
O García Márquez dizia: “Eu escrevo só realismo!” E embora ele não tenha me impulsionado a escrever de imediato, tornou-se uma grande referência. Creio que foi o García Márquez quem disse: “O Caribe começa na Bahia”.
Minha editora em Portugal recentemente mencionou a proximidade que sente entre minha literatura e a do Vargas Llosa. E aí eu digo que gosto da literatura dele – não dele em si, porque se tornou uma pessoa difícil politicamente para mim -, mas me sinto mais próximo do García Márquez, talvez por morar em um lugar onde essa experiência religiosa é vivida em profundidade.
Ler García Márquez a partir de “Cem Anos de Solidão”, por volta dos 19 anos, fez todo o sentido para mim. Suas possibilidades literárias não são exatamente aquelas racionais, eurocêntricas, ocidentais, que sacramentamos como verdadeiras. Ele pensa nas referências múltiplas de quem se viu afastado dos grandes centros e não foi escolarizado no tempo certo, mas que guarda essa experiência, essa profundidade de vida e sentidos. Depois, ao estudar também etnografias principalmente indígenas, deparei com sua cosmovisão, que guarda relação profunda com crenças populares tanto no interior do Brasil quanto em outras partes da América Latina. É impressionante. A gente nem se dá conta de haver relação entre uma coisa e outra, mas há sim, e profunda.
Seu contato com a obra de Jorge Amado veio depois?
Veio antes. E não por meio da escola. Eu morei um tempo em Pernambuco e lá, em uma biblioteca, encontrei uma não-ficção do Jorge intitulada “Bahia de Todos os Santos”. Levei para ler e fiquei pensando: “Nossa, é sobre Salvador, sobre a Bahia onde nasci, mas não conheço esse lugar em profundidade como ele está mostrando aqui, que coisa maravilhosa!” E aí comecei a ler a obra do Jorge Amado pelas bibliotecas.
Eu cheguei a encontrar o Jorge uns anos antes de ele morrer, em 1996. Adquiri uma edição popular de “Capitães da Areia” em uma banca de revistas, por cinco reais, e pensei: “Vou à casa do Jorge Amado pedir para ele autografar.” Mas eu tinha tanta vergonha! Queria que alguém pegasse o livro na porta da casa, desse para ele assinar e o devolvesse, porque eu não queria incomodar. E quando eu estive lá uma pessoa atendeu a porta: “Eu vou ver se ele pode assinar.” E um pouquinho depois: “Dona Zélia está lhe chamando.” Foi quando eu entrei e o conheci.
Ele já não enxergava direito, estava idoso. Mas quando lhe dei o livro para assinar ele viu que tinham grafado o título errado na capa, “Capitães de Areia” em lugar de “da Areia”. Ficou chateado, não comigo, com a editora, mas assinou o livro. Dona Zélia Gattai, sua esposa, foi quem conversou mais. Ela perguntou: “Você já leu algum livro meu?” E eu disse: “Não.” Então ela tirou da estante “Anarquistas, graças a Deus” e me deu. A gente começou a conversar: “Você gosta de ler?”, ela perguntou. E eu disse: “Gosto, e gosto de escrever também. Quero ser escritor!” Ao que ela retrucou: “Não tenha pressa, escreva no seu tempo, continue lendo bastante.” Estes foram seus conselhos.
Àquela época, o Jorge já estava um pouco deprimido, segundo me contou sua filha, a Paloma Amado. Ele mais escutou que conversou, acenando com a cabeça. Não existia celular, senão a gente tinha feito uma selfie. Não fiquei com nenhuma foto, porque nem sabia que iria à casa dele naquele dia. Eu brinco que foi meu batismo. Os dois me batizaram naquele momento. E depois desse dia fui ler tudo da Zélia também, porque ela tem uma obra memorialística muito importante sobre sua vida com Jorge, relata o exílio dele depois de seu mandato de deputado ter sido cassado, e suas viagens pelo mundo.
Você seguiu o conselho da Zélia? Esperou quanto tempo para começar a escrever?
Muito tempo. Eu nem sei se me considero pronto. A cada livro que escrevo vou aprendendo coisas novas, aprimorando. Mas eu demorei muito tempo para publicar. Primeiro eu fui estudar, trabalhar, cuidar das coisas urgentes da vida. Eu fiz uma publicação antes que nem considero, de próprio punho. Só publiquei de fato em 2012, o livro de contos “Dias”, que venceu o XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura da Bahia. Cinco anos depois eu publiquei outro livro, “A oração do carrasco”, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Conto, depois editado como “Doramar ou a Odisseia”. Em 2018 saiu “Torto Arado” em Portugal.
Por que Portugal?
Eu não tinha uma editora no Brasil. Havia publicado os dois primeiros trabalhos por editoras pequenas da Bahia, numa situação em que o livro não circulava, não chegava às livrarias. Quando terminei o romance, decidi: “Vou publicar”. Mas eu não mandei para nenhuma editora porque eu sabia que o livro iria parar na gaveta. Então resolvi mandar para um concurso literário. Procurei o prêmio Sesc, mas ele havia encerrado as inscrições um mês antes. Então descobri um edital do prêmio LeYa em Portugal destinado para literatura em língua portuguesa de qualquer parte do mundo. Seis meses depois soube que o livro tinha vencido o prêmio LeYa e o publiquei em Portugal.
Eu sou muito cético, tenho os pés no chão e fiz um envio protocolar, para tirar o manuscrito da minha gaveta. Mas depois pensei: “Será que Portugal vai ler?” Embora houvesse um brasileiro no júri, eu não tinha muita esperança que lesse. Mas quando o livro venceu, comecei a ser convidado para eventos, veio a publicação no Brasil e outros prêmios importantes chegaram. Isto foi me tornando um autor profissional nesse sentido de ser convidado para o espaço de eventos. Neste ano já me licenciei do serviço público e tenho vivido de literatura. Em verdade, tenho experimentado para ver se me agrada mesmo viver disso.
“Torto Arado” já nasceu como o primeiro volume de uma trilogia?
Antes de começar, não, mas durante a escrita me veio a certeza de haver mais a ser escrito. É um tema tão vital. Durante muitos anos eu percorri lugares e encontrei pessoas ameaçadas de perder aquilo que talvez seja a coisa mais elementar, depois do nosso corpo, que é o primeiro território para a gente existir, um chão para pisar, trabalhar. E isto não vale só para as pessoas do campo, vale para nós da cidade também. A gente tem a nossa casa, o chão que a gente pisa, a rua em que a gente trafega. E essas pessoas estavam ameaçadas, muitas ainda estão, em diversas partes do mundo, de perder isso. Este foi o ponto de partida de “Torto Arado”. Achei que ia me resolver com aquela história, mas no meio da escrita do livro eu já sabia que ela se prolongaria. E foi assim que eu cheguei ao segundo volume, é assim que eu tenho trabalhado para o próximo também, com o qual espero fechar, pelo menos em um primeiro momento, este ciclo.
Em “Torto arado” e “Salvar o fogo”, as figuras femininas são as protagonistas. Por quê?
Eu cresci em um ambiente em que as mulheres eram essas personagens fortes. Sempre digo que os homens, perto delas, eram figuras pálidas mesmo, não tinham metade da força delas. Eu fui criado em um ambiente machista. Os homens trabalhavam e as mulheres cuidavam da casa e da educação dos filhos. Eram mulheres atravessadas pela violência de gênero, em todas as suas forças, e acho que isso criou uma atenção para mim do que ocorria nesse lugar de vulnerabilidade. Elas não aceitavam isso, reagiam da maneira que podiam, mas sempre reagiam. E acho que isso criou em mim uma capacidade de observar, de compreender esse universo que depois reverberou no campo.
Ao trabalhar no campo, eu encontrei mulheres muito parecidas com elas, que enfrentavam as mesmas coisas e tinham de reagir. Testemunhei muitas mulheres em posição de liderança, dirigindo sindicatos, movimentos sociais, presidindo a associação de agricultores, o que é algo paradoxal. Se a gente pensar, no Brasil, seja nos tribunais superiores, seja no Congresso Nacional, a participação das mulheres ainda está aquém do que deveria ser. Mas, no meio do povo, isso mudou faz tempo. Nas periferias urbanas e no campo as mulheres conduzem muitas políticas. Então, essa compreensão me fez entender que era preciso contar essa história a partir de um outro olhar que não o meu, mas um olhar literário, vindo dessas personagens historicamente subalternizadas. É a mulher negra, a mulher indígena, a mulher mestiça, nesses lugares de profunda violência, mas é também onde a vida tem a capacidade de recomeçar sempre.

“É comum que o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. Mas há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Que nem era literatura. E aí no ano passado Annie Ernaux ganha o Nobel de Literatura fazendo a mesma coisa, alta ficção sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…”
Quando “Torto Arado” chegou, em fevereiro de 2019, o Brasil temia a violência contra esses grupos. E, para além das qualidades literárias do romance, sua história encantou quem se preocupava com os rumos do país. Você se tornou popular, mas a crítica literária brasileira nem sempre pareceu aceitar isso, como aconteceu em relação a seu segundo romance. Você reagiu com força, por meio de sua coluna no jornal “Folha de S. Paulo”, à crítica que condenou “Salvar o fogo”. Por quê?
Parece que historicamente esta hierarquia sobre o que é arte se origina em espaços e lugares ainda empenhados nas estruturas coloniais. É muito comum que todo o arcabouço teórico e metodológico do crítico seja eurocêntrico, venha de lugares historicamente de dominação. E há outras ontologias legítimas que merecem ser lidas atentamente. O que se dizia da literatura da Carolina Maria de Jesus? Diziam que nem era literatura. E aí no ano passado a francesa Annie Ernaux ganhou o Nobel de Literatura fazendo exatamente a mesma coisa, alta ficção escrevendo sobre si. Mas ela é uma mulher francesa, e uma francesa pode…
O Brasil vive um momento muito interessante agora. Novas vozes têm chegado a esse lugar da alta literatura. Então é importante promover esse debate com a crítica, para mover as estruturas, para que não aconteça o que aconteceu com a Carolina e grandes escritores negros, como Lima Barreto e tantos outros que vieram e tiveram sua arte diminuída. Não é falar só por mim, é falar por todos os que estão fazendo isso nesse momento, como Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, a indígena Julie Dorrico, o Ailton Krenak, que não é ficcionista mas tem escrito ensaios muito interessantes. Já passou da hora de o Brasil acolher sua sociedade, sua classe artística, a partir do parâmetro da multiplicidade. Somos muitos. E as universidades, espaços profundamente coloniais.
Você chegou a dizer que a opinião da Universidade de São Paulo não lhe interessava.
A USP, coitada, nunca me fez mal nenhum. Citei-a por ser um espaço simbólico do pensamento eurocêntrico colonial. Mas acho importante provocar o debate para que se possa desconstruir essa colonialidade muito presente.
Qual a seu ver é o ponto desse debate que precisa ser tocado com mais força?
Primeiro, reconhecer que a gente não rompeu com essas estruturas desde o passado. Este não é somente o caso do Brasil, estou pensando no continente americano, na África e na Ásia também. Criou-se uma forma predatória de habitar o mundo. A colonialidade foi a morte da autoridade, porque nesse momento as sociedades distintas desaprenderam a coexistir. O genocídio indígena foi matar quem era diferente. E a diáspora africana, subalternizar o diferente, desumanizá-lo. Criou-se um ranking de vida e valor que nunca foi desconstruído. Basta observar o mundo à nossa volta para saber quem ocupa os espaços de subalternidade, quem está vulnerável, quem sofre com preconceitos e de que maneira.
Ao compreender a história a gente vai entender o que acontece e projetar um futuro diferente. É preciso agir no presente para não reproduzir essas estruturas de nenhuma forma no futuro. Trata-se de um projeto de longo prazo que vai exigir muito investimento em educação, em cultura. E quando eu falo em cultura me refiro à extensão do projeto educacional. Não há educação desprovida de cultura, do conhecimento de nossas expressões intelectuais e artísticas. É urgente falar sobre isso para desconstruir esse estado de coisas. O Brasil só vai ser democrático se for para todos, não apenas para alguns.
Ao mesmo tempo, no Brasil, a elite não lê.
No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler.

“No Congresso Nacional, quantas pessoas serão leitoras? Acho que às vezes não sabem nem o que votam, a depender do assunto. Ninguém lê as matérias pautadas. Como alguém me disse nestes dias, não dá para esperar que a elite brasileira se ponha a ler”
Pensando em como você foi tocado por aquele livro aos 8 anos, como acha ser possível proporcionar o mesmo para uma escala maior de pessoas?
O Brasil ainda é profundamente desigual. Poucas pessoas têm acesso a livros, a bibliotecas. Então é necessário investimento, uma política pública muito abrangente que envolva as escolas, a aquisição de livros, a mediação de leitura para fortalecer as bibliotecas comunitárias, a promoção de atividades culturais. Nenhum ser humano pode prescindir da literatura, um direito, segundo escreveu o crítico Antonio Candido. Para ele, o conceito de literatura abre-se às lendas indígenas, às histórias familiares transmitidas de geração a geração. Essa dimensão subjetiva da vida existe em qualquer cultura, em qualquer meio, e a gente não pode sabotá-la. A gente precisa estimular para que elas floresçam e nos apontem para um novo caminho, um novo lugar.


