Bicho da sombra

Nesta entrevista que realizei com Lygia Fagundes Telles há 22 anos, em abril de 2000, para o caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil, a escritora reclama do pouco valor dado aos escritores, lembra de Clarice Lispector, ironiza Caetano Veloso, fala de sua relação com Paulo Emílio Salles Gomes e narra o encontro que teve com Simone de Beauvoir

A página em que a entrevista foi publicada, com foto de Juan Esteves feita na Academia Paulista de Letras

Lygia Fagundes Telles banha-se de uma certeza de Santo Agostinho, a de que o importante é a arte de viver num tempo de catástrofe, quando esta entrevista se inicia. Está impaciente, a autora de “As horas nuas”. No dia 1, Nélida Piñon e Lya Luft, conceituadas escritoras, vão homenageá-la com discursos na Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, no próximo dia 24, sai o livro “Invenção e Memória”, com 15 contos que apresentam seu imaginário admirado de crueldades, mistério e um ensejo de esperança final. Ela tem tantos compromissos, tantos, e agora mais este. Àquela que pretende entrevistá-la, lança uma consideração de arrefecer. “Não importa nada do que eu diga. Meus livros é que importam. Leia estes papéis.”

Sobre as mãos da interlocutora, ela vai depositando impressos que contêm o resumo de sua ascensão literária e as breves considerações dos críticos, todos esbanjadores de enormidade – Otto Maria Carpeaux, José Paulo Paes, Sergio Milliet – sobre sua importância livro-a-livro. O que fazer? Lygia, 76 anos incompletos, está mesmo impaciente e, supõe-se, não apenas com jornalistas. Há os homenageadores que teimam em lhe dar mais idade do que tem. Os governadores. Os corruptores que revelam suas vocações a céu aberto. Os ricos compositores de música popular. Os estudantes que um dia lhe roubaram a obra de Jorge Luis Borges, autografada, da estante de retratos.

É preciso cobrir Lygia de razão. Sua impaciência cresceu a partir de um ato assinado há três anos pelo governo do Estado de São Paulo, extinguindo a verba honorária a que ela, procuradora autárquica do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, o Ipesp, teria direito. Seus vencimentos foram reduzidos a menos da metade do que eram. Lygia Fagundes Telles, escritora máxima brasileira, 17 livros publicados, dezenas de prêmios, ficções traduzidas em oito línguas, ficou sem dinheiro.

“Quando me ligam aqui dizendo que podem me pagar uma quantia simbólica por meus textos – e por simbólico entenda 300, 500 reais – minha orelha já levanta, meu cabelo já levanta”, diz Lygia com reiteração, com drama, numa pontuação em que sempre cabem muitos travessões e alguns recursos de estilo, como os itálicos. “Você veja. Os cantores, os compositores. Eles têm, um, apartamento em Paris, outro, em Nova York. Convidam Caetano Veloso para cantar e ele vai porque é um bom perfil – não exatamente um Rodolfo Valentino, como quer ser, com aquele turbante, não é um sheik -, muito bom cantor, compositor. Mas, para um escritor, não se paga o que se paga a ele.”

Há quatro anos, quando mudou de editora, da Nova Fronteira à Rocco, Lygia imaginou que poderia viver no Rio e lá, mesmo timidamente, montar o que ela intitula “uma nova frente de trabalho”. Mas o que ela desejava como moradia – “não uma cobertura, veja bem, um apartamento no Leblon” – não lhe foi acessível. Lygia, de elegância proverbial, lenços no pescoço, cabelos cortados em eterno chanel, e mocassins, quis viver com o conforto presumido de sua condição de dama das letras. Como não conseguiu, voltou a seu apartamento paulistano da rua da Consolação, aconchegante e digno, num prédio cercado por raras palmeiras imperiais. 

“Seria preciso haver, para os escritores, as marquesas antigas, e duquesas, que convidavam e instalavam os artistas naqueles castelos, alas norte e sul, com empregados, por seis meses, para que escrevessem. Ninguém mais nos convida!” E mais travessões, e mais ênfase, porque agora a indignação quer saltar. “Eu devia – eu devia – me informar mais e falar com o Yunes [Jorge Yunes, o empresário com quem o prefeito de São Paulo, Celso Pitta, está envolvido em um escândalo de corrupção]. Parece que ele empresta.” 

É nesses instantes em que ironiza as dores de sua particularidade e de seu país que Lygia está mais distante da mulher que escreve seus livros. Porque Lygia, autora – ao contrário da mulher que está na vida, relativamente indefesa, capturada pelas malhas dos executivos e das leis -, é segura, terrível soberana de todos os destinos. Uma escritora que explora as crueldades, e as expõe, que aponta os assombros de seus personagens, endinheirados ou pobres, e os derrete nas imagens literárias mais sintéticas e poderosas de que as décadas recentes têm notícia. 

Lygia é rápida, de destreza exemplar. Neste novo livro, sua carpintaria de contista continua afiada. Em uma das histórias, um menino é acolhido por um velho, e a relação dos dois vai crescendo diariamente sob os olhos de um determinado comensal; um dia, um dos dois desaparece, por obra de seu par. Para quem a conhece, não há novidade desde o início: aquela história não acabará mesmo bem. A diferença, talvez, resida no fato de este conto não exalar, ao final, aquela ponta de crença de um desfecho feliz. Por onde a olhemos, é uma história de crueldade, num livro de crueldades e mistérios.

“Esperança, esperança, esperança, esperança”, brada Lygia, em novos itálicos, em sua residência na rua da Consolação. Sua esperança é a de ter inventado um novo gênero. O título do livro já diz: “Invenção e Memória”. Foi-lhe sugerido por uma frase anotada em algum lugar por seu marido, o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, morto há 23 anos: “Invento, mas invento sempre com a secreta esperança de estar inventando certo.” Pois Lygia quer ter inventado isto neste livro: um gênero diferente dentro de seu próprio trabalho (não usa a palavra obra, por parecer grande demais), um gênero que asseguraria à ambiguidade uma avenida por onde passear. “Muitas coisas ali são inventadas, outras são memórias. Eu lá sei, não posso separar uma coisa da outra.” 

É verdade que nunca pôde. Em seus livros, há, sim, crueldades, mas compartilhadas. Maniqueísmo e qualquer outra palavra que evoque contrastes evidentes entre o que é errado e certo não se aplicam a seus livros (ela prepara um romance, mas não adianta sobre o que tratará). “É impossível você separar, como num laboratório de física, o bem do mal”. Lygia se lembra de um padre de infância que lhe disse: “Miolo Mole – ele me chamava assim -, existe o bem e existe o mal. Quem escolhe o mal vai para o Inferno, quem escolhe o bem vai para o Céu.” E então ela via o clube da cidade, para onde se dirigiam as pessoas do bem. Mas seu pai ia lá também, jogar, e entristecia sua mãe. “Eu percebia esse lado no clube, uma porção do mal, você entende?” 

Para Lygia, Santo Agostinho teria sido perfeito se houvesse levado, à vida de santidade, sua vivência anterior do pecado. A perfeição para ela, em se tratando dessas situações, foi personificada por Jesus. Não há quem tenha compartilhado sua glória, a de aceitar o mal como viesse. Nem mesmo seus próprios homens. Houve dois na vida de Lygia, o primeiro deles, um advogado, Goffredo da Silva Telles, que lhe deu seu único filho (também Goffredo, cineasta). Ela se lembra de ouvir o grande advogado dizer: “Não se adiante no tempo, Lygia.” Seu segundo homem, Paulo Emílio Salles Gomes, a escritora admirava e observava: “Ele arrebentava em ideias. Tinha essa coisa de certeza.” Ela o via como o filósofo Sócrates, praticando a “obstetrícia intelectual” em seus alunos, arrancando os fetos de seu pensamento, tamanha a sua lucidez, tudo num sentido diverso daquele em que ela caminhava. “Eu nunca tive essa carga tamanha de vontade.”

Lygia e Paulo viveram uma existência de 15 anos compartilhados, entre 1962 e 1977, sem filhos, mas com “o jovem”, como ele carinhosamente chamava o pequeno Goffredo, tido como seu próprio filho. “Resolvemos que levaríamos uma vida tranquila, nós e nossos gatos. Já tínhamos o jovem. Resolvemos que chega de filho. Chega de atormentação.” Ela o fazia ver coisas, o obstetra. Fazia-lhe ver que um dia os roteiristas de cinema respeitariam a profundidade de seus livros imagéticos. Se Lygia ainda não conheceu esses profissionais especialíssimos, a explicação foi mesmo dada por Paulo Emílio: os textos de Lygia provocariam uma sensação de intimidade tão grande em quem se aproxima deles que a oportunidade de invadi-la estaria aberta.

Nos anos 1930, quando Lygia vivia a meninice, aceitava-se que fosse estranha. Era uma mulher e, como mulher, dada à percepção, numa intensidade, ela crê, muito maior do que a encontrada nos homens. Para ela e para sua companheira, a escritora Clarice Lispector (1925-1977), Lygia até imaginou um qualificativo: bichos da sombra. “Nós nos desenvolvemos na sombra, mudas.” Esse é um assunto delicado, sua semelhança ou diferença em relação a Clarice – “desconfiada, esperta, ótima” -, aceita como a grande escritora brasileira do século, a inventora, justamente, de uma nova linguagem de percepção. Mas Lygia vê com tranquilidade os pontos que as tocam. “Éramos confessionais, perceptivas, mas éramos diferentes. E a diferença talvez residisse nas doses de mistério. O mistério, sal da ficção, acompanha o escritor.”

Não que Lygia deseje dizer com isso que o mistério, ponto de união com Clarice, deva afastá-la do leitor. Ela e a autora de “Perto do Coração Selvagem” conversavam muito sobre a mania que tinham os professores, nos anos 1960, de tornar seus livros mais complexos do que a necessidade, e, com isso, afastar os interessados possíveis naquelas tramas. “A gente seduzia os leitores, dizíamos coisas interessantíssimas, e os professores daquele tempo – isso estava na moda – vinham e destruíam tudo.” 

Foi como bicho da sombra que Lygia, certa vez, recebeu um convite da escritora francesa Simone de Beauvoir para um chá, quando a escritora esteve aqui com o filósofo Jean-Paul Sartre, nos anos 1960. “Eu falava mal o francês, embora lesse e apreciasse muito a literatura francesa. Dizia: “Meu deus, o que vou conversar com Madame?” Simone, participativa – “a tal da revolução feminista estava começando” -, queria ler textos seus. Havia poucas traduções para o francês à época, e a escritora lhe deu a de um conto do futuro livro “Antes do Baile Verde”. Mas Simone pedia mais. E então Lygia se lembrou de outro padre, o canadense Paul-Eugene Charbonneau (1925-1987), que parecia entender suas ambiguidades e amara “Ciranda de pedra”, seu primeiro romance, a ponto de traduzi-lo.

“Era uma tradução, não sei se boa, porque na época eu não tinha condição de avaliá-la, mas feita com amor por um homem de vocação”, lembra Lygia. E então ela resolveu oferecê-la a Madame, ressaltando que o livro poderia lhe interessar por tratar da decadência da burguesia brasileira e de uma jovem desesperada, querendo fazer parte dela, e dela se libertando. Beauvoir, que partiria no dia seguinte, topou a oferta. “Deixe seu livro lá no meu hotel.” Lygia pensou: “Ela vai jogar isso no mar.” Mas, ainda assim, cumpridora de suas promessas, depositou o enorme embrulho com folhas datilografadas na recepção. “Tempos depois – veja que intelectual séria – chega uma carta dela escrita em papel quadriculado dizendo assim: ‘Gostei muito, que riqueza, pena que seu livro não veio escrito em francês parisiense, porque eu o lançaria aqui.” 

Lygia, bicho da sombra, ficou “animada e quieta” com o elogio. Na mesma carta, Simone de Beauvoir comentava seus textos dizendo que se enredavam em tristezas e desesperos muito grandes, mas que depois mostravam a esperança. Identificava um gesto desse sentimento final em “As pérolas”, conto com que Lygia lhe presenteara. Nele, o homem rejeitado joga o colar esfacelado para sua mulher, que, com a peça, ansiava encontrar um novo amor. “Depois do que ela disse, me senti coerente comigo. Sou triste, às vezes, mas há um gesto final, de esperança, no que escrevo”, diz Lygia. “E essa carta de Simone de Beauvoir, na verdade, eu vou vender.”

Otto Guerra em autorretrato

O escritor e produtor de cinema narra com especial humor sua sina no desenho brasileiro

A bela, fluida e bukowskiana autopornografia de Otto Guerra

Dos livros lindos que recebo.

Você lê esta autobiografia do desenhista e produtor de cinema Otto Guerra de uma sentada só (ops).

“Nem doeu (autopornografia)” prova o que o seu humor fluido-surreal-alucinante porno-bukowskiano pode fazer por nós num país tão desgraçado quanto este.

Podemos rir!

Mas não rimos dele só porque somos maus. Rimos porque a saga deste escritor nem difere da nossa tanto assim.

E porque podemos, estimulados pelo homem, quebrar realmente tudo.

A editora do novo livro de Otto Guerra é a Mmarte (mmarteproducoes.com) e os editores, Márcio Jr e Márcia Deretti.

O ato desmedido de Boris Schnaiderman

Na guerra, na escrita ficcional, no ensaio literário ou na tradução, este grande pensador, morto há cinco anos, negou a covardia

Boris Schnaiderman durante
entrevista que realizei com ele
em 2011, registrada pela fotógrafa
Olga Vlahou: um sorriso sempre

Neste 18 de maio de 2021, completam-se cinco anos desde a morte do crítico, escritor e tradutor Boris Schnaiderman, que hoje teria 104 anos. A seguir, reúno o obituário que escrevi em 2016 à entrevista realizada no ano anterior em torno de seu último livro, “Caderno Italiano”.

Em foto de Olga Vlahou,
o professor Schnaiderman,
sua esposa Jerusa e esta

jornalista, há dez anos

 

POR ROSANE PAVAM

O sorriso brasileiro, a alma russa, uma doçura no trato, a rara retidão. Morto em decorrência de pneumonia um dia após completar 99 anos, numa quarta-feira, dia 18 de maio de 2016, em São Paulo, Boris Schnaiderman viveu de traduzir. No título de um livro lançado em 2011, equiparou seu ofício a um “ato desmedido”, este para o qual, com modéstia peculiar, nunca se via pronto, embora o entendesse necessário, exigente de sua ousadia. Não somente verteu ao português os clássicos da literatura russa, libertando-a das más versões anteriores, como, por seu gosto e humor, preferiu exercitar a “tradução vivida”. Um ser humano, dizia, existe para traduzir aquilo que caminha em seu íntimo. E o tradutor deve ser um ético, um fiel, a quem não competirá desfazer do texto alheio, ainda que confuso. “Antes o obscuro que o óbvio, o frouxo”, proclamava, numa citação a Guimarães Rosa.

Tinha princípios e lutava por eles. Nos anos 1940, após a entrada do Brasil no grande conflito mundial, deu-se conta, sem o apoio dos pais ou dos amigos, que era preferível lançar-se à óbvia guerra, temeroso dela, do que acovardar-se na frouxidão. Não somente a terra a acolher sua família fugida dos pogroms, nos anos 1930, merecia sua batalha, como toda a humanidade. Na Itália, Schnaiderman lutou pela democracia, enquanto no Brasil havia a ditadura. E ele, que condenava todos os autoritarismos, até mesmo os atuais, vivia de inconformismo por saber que as duras batalhas da FEB eram ridicularizadas. “As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra.” No ano passado, lançou Caderno Italiano, no qual deu sua visão dos combates, desta vez intitulando os combatentes, sem mesclá-los ficcionalmente como fizera em um dos mais belos textos da literatura brasileira, Guerra em Surdina

Nos últimos tempos, revia suas traduções e esboçava as memórias da infância ucraniana, aquelas que lhe permitiriam contar a vida a partir de suas andanças em Odessa e seu testemunho, aos 8 anos, das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Alguns meses antes de morrer, ainda tomava sua cachaça, recolhia a correspondência por baixo da porta, andava acompanhado pela Higienópolis onde morava e silenciava, os olhos sorridentes, diante de tudo o que lhe dissesse, com inteligente formosura, a esposa Jerusa Pires Ferreira. 

A seguir, a íntegra da entrevista realizada com o escritor e professor em sua residência paulistana na tarde do dia 4 de setembro 2015, por ocasião do lançamento de Caderno Italiano.

Por cerca de uma hora e meia, Schnaiderman falou com calma e pausadamente, empenhado em ressaltar a participação brasileira na guerra. Sentado em uma cadeira na sala repleta de livros de seu apartamento, não se recusou a responder uma pergunta sequer.

 

Meu filho Bernardo Tagliari,
Boris Schnaiderman e eu em foto que Carol Carquejeiro realizou durante a última entrevista que o professor
me deu, em setembro de 2015

“Caderno Italiano”, seu novo relato sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra, tem o formato documental, ao contrário de “Guerra em Surdina”, de 1964. Quanto tempo de escrita o novo livro lhe tomou?

 

Pouco tempo. Cerca de um ano e meio. Quando escrevi Guerra em Surdina, havia limitações. Certas pessoas ficariam muito ofendidas, outras viriam a público desmentir o que escrevi. E coisas assim bem desagradáveis. Mas agora, passados esses anos todos, quase todo mundo já morreu, não há mais impedimento. E eu resolvi vir a público principalmente porque está tudo muito esquecido. Demais. Demais. As pessoas não se lembram de que o Brasil participou da Segunda Guerra Mundial. Os jornais noticiam quando há as datas e tal, mas o povo de modo geral esqueceu. Era uma contradição lutar pela democracia lá fora enquanto havia ditadura aqui. Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo desta participação brasileira. Os soldados não tinham motivação para lutar. No entanto, lutaram. Uma coisa estranhíssima. Desempenharam muito bem, quando parecia que tudo iria resultar num desastre. E não.

 

Foi difícil tomar a decisão de participar dessa guerra?

 

Eu quis lutar. Foi antes ainda da minha convocação, não é, a minha vontade de ir para a guerra. Eu estava completamente arrasado com as notícias que chegavam da Europa. Já se sabia daquilo que depois chamariam de holocausto, aliás um nome muito inadequado para o que houve. A palavra holocausto significa o sacrifício a uma divindade. E esse sacrifício era em prol do quê? Não tinha um objetivo. Então, o nome me parecia completamente inadequado. Aliás, na França houve todo um movimento de intelectuais contra a designação desse massacre como holocausto.

 

Como o sr. avalia a participação brasileira na Segunda Guerra?

Fiquei perplexo porque esperava um desastre completo. No entanto, os brasileiros se saíram bem, realmente bem. Agora vêm essas conversas de que afinal de contas era uma linha de frente secundária, nem Stalingrado, nem o desembarque na Normandia… Tudo bem, mas não tinha nada de secundário naquele combate! Afinal de contas, um exército alemão foi imobilizado na Itália, uma coisa importante. Aliás, o fato de existir uma frente na Itália facilitou o desembarque aliado na Normandia.

 

A FEB teve algumas derrotas. O primeiro ataque ao Monte Castello resultou num fracasso completo, mas houve poucos insucessos. Incrível o que se conseguiu. A tomada de Montese, em abril de 1945, foi uma coisa extraordinária. Quer dizer, eu só participei calculando tiro. Mas os homens da infantaria lutaram de rua em rua e de casa em casa. Não se pode diminuir isso de modo nenhum. Eu continuo perplexo, sem compreender bem como foi possível que o combate se desse. Aqueles homens falavam mal da guerra, diziam que Getúlio Vargas tinha sido enganado pelo ministro Oswaldo Aranha, que nós havíamos sido vendidos por dólares (e era verdade). Eles tinham consciência disso, no entanto lutaram. Uma surpresa para mim.

 

A grande maioria dos soldados era da camada mais pobre da população. Os estudantes foram à rua pedir guerra na avenida, tal, mas na hora do vamos ver, eram bem poucos lutando. Havia alguns estudantes, claro. Eu fiz parte da Central de Tiro. No meu grupo de artilharia, havia vários estudantes convocados. Tínhamos uma situação concreta. Eu era um pacifista convicto, mas me convenci de que era necessário lutar.

 

Os soldados de divisões diferentes eram tratados de maneira semelhante por seus superiores durante a guerra?

 

Na artilharia, a diferença entre o soldado e o oficial era muito mais sentida. Na infantaria, a relação entre soldados e oficiais era muito melhor. Na artilharia, havia assim como que uma barreira entre os oficiais e os praças. Uma coisa que vem de longe, não é? De uns se acharem superiores aos outros. Não vinha de alguma especialidade exigida de quem calculava. O cálculo de tiro era uma função como outra qualquer.

 

Em “Caderno Italiano”, o sr. menciona uma discriminação importante no exército americano. Como a percebia?

 

No exército americano, havia um racismo entranhado. E no nosso, não. Os americanos nos diziam: “Vocês é que estão certos. Brancos, amarelos, negros, mulatos, todos misturados. Vocês é que têm razão! Mas nós não podemos. Nós não conseguimos. Para nós, negro não é gente.” Uma coisa terrível. Estivemos muito em contato com a oitava divisão negra americana, mas nessa divisão negra americana os oficiais eram brancos. Isto por si acarretava uma situação deprimente para nós. Admiro muito o escritor Rubem Braga. Gosto muito das crônicas de guerra dele, porque conseguiu captar com muita sensibilidade as situações humanas. Mas ele não menciona a questão racial no exército durante a Segunda Guerra. Nunca conversei com o Rubem Braga sobre isto. Só o vi uma vez, de longe, durante os combates. Eu fui o primeiro a calcular um tiro de artilharia na minha divisão. E o Rubem Braga estava lá para ver.

 

Tem certeza de que o cálculo de artilharia era uma coisa simples de fazer?

 

Muito simples, bastante simples. Era um cálculo feito na base das curvas de nível. Eu ficava diante de uma prancheta. Nela, estava o mapa da região, com as curvas de nível. E o cálculo era feito na base dessas curvas. Não usava réguas de cálculo, calculava no papel mesmo. O exército brasileiro teve toda uma formação pela missão francesa que veio ao Brasil. Nossa organização era baseada no exército francês. Mas depois fomos incorporados ao exército americano e tudo mudou. Em tempos de paz, no Rio de Janeiro, fomos treinados para usar o canhão de 75mm, adotado pelos franceses. E nesse sistema era o capitão comandante da bateria quem fazia os cálculos. Quando fomos incorporados ao exército americano, eles passaram a ser feitos por uma central de tiro. Um grupo de sargentos e cabos, comandado por um capitão, calculava. Mas no nosso sistema, o francês, éramos nós mesmos a fazer esses cálculos. Os americanos trabalhavam sob uma organização quase empresarial. A gente foi preparado de um modo no Brasil e deparou com tudo diferente na guerra. Fomos aprender lá mesmo. Improvisando.

 

O exército brasileiro oferecia a possibilidade de leituras aos soldados nos intervalos dos combates? O sr. escreveu cadernos naquele período?

 

Nós recebíamos alguns livros, sim. A Legião Brasileira de Assistência, organização presidida pela mulher do Getúlio, oferecia livros. Poucos, geralmente. E era muito individual, isso: ela ajudava uns, não ajudava outros. Por meio desses livros pude me interessar por Alphonse Daudet, para depois me decepcionar com suas posições, que conheci mais tarde. De Knut Hamsun, eu também gostava muito, e novamente só depois soube que aderira ao nazismo. Fiquei perplexo com as posições do Daudet, com o que aconteceu com o Hamsun.

 

E eu não conseguia escrever durante a guerra. Comprei um caderno e fiquei anotando umas coisas, mas por muito pouco tempo. Não valeu de nada.

Nem desenhei. Sou muito ruim de desenhar. 

Pode não ter valido nada naquele momento, mas valeu depois, por certo.

 

Acho importante contar o que aconteceu. Acho importante lembrar. As pessoas saberem o que foi. Um livro sobre os acontecimentos não é uma coisa fácil de ser feita. Guerra em Surdina, eu levei muito tempo para colocar no papel, saiu 19 anos depois de eu ter voltado da guerra. Eu tentava e não vinha nada. A ideia era escrever assim que o conflito acabasse, mas eu não conseguia. Eu tinha lido muita literatura de guerra, mas minha experiência era completamente diferente de tudo o que eu havia lido.

 

O sr. sente falta de escrever ficção? “Guerra em Surdina” é um dos mais belos romances da literatura brasileira.

 

Uma tentativa de romance… Eu sempre quis fazer ficção. Mas não sou ficcionista. Minha autobiografia me arrasta mais.

 

Sua infância não valeria um livro?

Tenho vontade, sim, de escrever sobre a infância. Estou escrevendo agora. Eu tive esta sorte. Estou com 98 anos e continuo capaz de fazer as coisas. Então houve essa vantagem. Estou tentando contar minha vida desde a infância. Estou tentando, mas é muito difícil, porque aparece o problema, não é? Mostrar o podre das pessoas ou não mostrar?

 

O sr. deve ter muitas histórias a oferecer, como aquela em torno de seu testemunho sobre um clássico do cinema, aos 8 anos.

Acho que sou o único sobrevivente das filmagens de O Encouraçado Potemkin. Todo mundo morre. As pessoas foram morrendo e eu sobrevivendo. Talvez seja o único sobrevivente daquela cena. Isto foi em 1925. Em Odessa, onde eu vivia. Acontece que as crianças em Odessa tinham muito mais liberdade e circulavam muito mais pela cidade do que as nossas. Não havia quase trânsito. As potências ocidentais estavam bloqueando a Rússia, quase não circulavam carros na cidade. Só os veículos coletivos. Agora, automóveis particulares, não havia. Simplesmente não havia.

 

Então existia muito movimento pelas ruas. Eu andava pela cidade toda. Gostava muito daquele espaço da escadaria de Odessa, entre a parte alta e o porto. E uma vez eu estava sozinho na escadaria quando vi um movimento estranho. Era a filmagem do Encouraçado Potemkin. De repente, aqueles homens atiravam os chapéus para o alto… E apareciam aquelas mulheres com umas toaletes que não se usavam mais, muito estranhas para mim. Não me lembro bem, mas devo ter visto o próprio Eisenstein. E o cinegrafista dele, que filmava, o Tisse. Mas me recordo mesmo é das cenas. Vi os chapéus atirados para o alto, aquelas damas todas lá, saudando os marinheiros revoltados. Aquelas damas em toaletes muito estranhas, não é? 

 

 

Odessa era uma cidade diferente das outras?

 

A disposição topográfica de Odessa é semelhante à de Salvador. Fica num platô. E na parte baixa há o porto e as praias. Suas ruas são bem paralelas, planejadas pelo primeiro governador. É um pouco diferente de outras cidades russas. Digo russa porque era ucraniana, mas, para mim, era tudo Rússia… Eu só falava russo, em volta todo mundo falava russo. Quando ia à feira, ouvia a conversa dos vendedores numa língua que eu não compreendia. Era o único contato que eu tinha quando criança com a língua ucraniana. Toda a vida restante se passava em russo. Odessa é uma cidade praticamente russa. Mas quando eu chego à Rússia (até recentemente, porque agora não estou mais viajando), todo mundo me conhece como odessita, por causa do sotaque. Nasci em Úman, uma cidade relativamente perto de Kiev, capital da Ucrânia. Mas para mim era tudo Rússia.

 

Seus pais não ensinaram aos filhos a língua de família?

 

Em casa, meus pais não falavam a língua dos judeus da Europa Oriental, o iídiche. Exceto quando queriam que nós, eu e minha irmã Berta (que foi engenheira civil), deixássemos de compreender alguma coisa. Então eu fazia um esforço e acabava compreendendo, porque em casa só se falava russo. Eu me interessei pela literatura iídiche, mas sempre em tradução. Não tinha livro em iídiche em casa. Meus pais abandonaram a língua, sei lá, por inércia. Precisavam viver em um meio no qual todo mundo falava russo… Mas eu tinha uma avó, mãe de meu pai, que veio morar conosco e só falava iídiche com ele. Quase não se comunicava com a gente, só falava com meu pai.

 

E seu pai reagiu mal à sua opção por uma carreira literária.

 

Aconteceu o seguinte. Quando tinha uns 12, 13 anos, disse aos meus pais que iria estudar agronomia. Tinha uma fantasia com uma vida no campo, essas coisas. Vim para o Brasil quando tinha 8 anos, em 1926, e sentia muita saudade de Odessa. Mas depois, aos 15, passei por uma crise. Eu me abrasileirei completamente. Fiquei lendo literatura portuguesa e brasileira, romances, poesias, Machado de Assis, José de Alencar. E resolvi que não iria fazer mais agronomia, que me ocuparia de literatura. Escrevi uma carta para os meus pais, caprichei na redação o mais que pude. Disse que não queria mais ser agrônomo. E minha mãe me chamou para conversar. Disse que literatura era muito bom, mas que precisava ser feita nas horas vagas, aos sábados e domingos, de noite. E me contou que a pessoa necessitava ter uma ocupação rentável enquanto fazia literatura… Eis por que, para satisfazer a família, fui para essa coisa de agronomia.

 

O sr. só conversou sobre isso com sua mãe?

 

Não falei com meu pai, era tudo com minha mãe. Escrevi uma carta para eles, que não era a terrível carta de Kafka ao pai, pelo contrário, tinha o tom amistoso. E eu era bem mais criança… Muito recalcada, retraída… Criança imigrada era assim. Não falava com as outras. Cheguei aqui, as frutas eram diferentes, eu não conhecia banana, mamão, coco. E meus pais tinham saudade da Rússia.

 

Como a família veio parar no Brasil?

 

Acontece que meu pai era comerciante. No regime comunista, não havia muito espaço para ele, um homem hábil, com as costas quentes. Ele se dava muito bem com as autoridades. Mas se ele tivesse ficado, teria sido fuzilado. Porque aquelas pessoas que o protegiam, o favoreciam, foram todas fuziladas como trotskistas. Sua fuga não foi questão de habilidade. Aconteceu que ele tinha um primo, Pedro, que estudava na Escola Politécnica de Odessa. Estudava e trabalhava ao mesmo tempo, para ajudar a família. O pai dele faleceu e ele se tornou arrimo de família. Um dia, foi expulso da universidade por ser de família burguesa. Revoltou-se e resolveu emigrar. Emigrou sozinho até a fronteira com a Romênia, onde contrabandistas, mediante certa quantia, ajudavam a pessoa a ultrapassar a fronteira. Atravessou a fronteira com a Romênia, ficou quase sem dinheiro e conseguiu chegar a Viena. Lá, dormiu em banco de praça para não pagar hotel e foi correndo de embaixada em embaixada para obter um visto de entrada em algum país. Conseguiu um para o Brasil.

 

As pessoas saíam da Rússia com um destino em mente. E, para atingi-lo, conseguiam o que se chamava Passaporte Nansen. Diplomata norueguês, Nansen trabalhava para a Liga das Nações e providenciava passaportes para os que saíam da Rússia. Com seu Passaporte Nansen, Pedro veio para o Brasil, onde passou muitas dificuldades. Trabalhou na construção civil como pedreiro, mas conseguiu se firmar. E escreveu umas cartas entusiasmadas para nós. 

 

Meus pais então resolveram emigrar para o Rio de Janeiro. Mas de modo diferente das outras pessoas, que em geral saíram fugidas. Nós saímos com passaporte soviético, de capa vermelha, com letras douradas, a foice e o martelo dourados. Depois, no Brasil, tive problemas com isso. Imagine usar esse passaporte durante o Estado Novo! Eu consegui a naturalização brasileira após muito esforço. Não tinha recursos, portanto não podia contratar advogado nem despachante. Ia pessoalmente de repartição em repartição, mas consegui. Todos na família conseguiram. 

 

Minha naturalização saiu em 1941. Mas me formei engenheiro agrônomo em 1940. Para registrar meu diploma, precisava estar naturalizado e ter prestado serviço militar. Então tratei de me alistar. Eu podia fazer linha de tiro, que era um tipo de instrução mais suave, ou o quartel. Quis o quartel, me chamariam para lutar. Foi uma complicação. Eu morava em Copacabana e tentei me inserir nas fortalezas do litoral. Não me aceitaram. Só consegui ser aceito num quartel em Campinho, depois de Cascadura. Eu acordava às 4 horas da manhã, tomava ônibus, bonde e trem e chegava em Campinho. Fiz lá o curso de sargento e fui convocado à guerra como terceiro-sargento. Dei baixa como segundo-tenente. Fomos todos promovidos depois da guerra.

 

O sr. se considera próximo do marxismo?

 

Passei por um período marxista. O que me distanciou muito do movimento comunista foi o pacto germano-soviético, em 1939. Fiquei com muita raiva, aquilo me afastou por muitos anos, mas depois voltei.

 

O cinema em algum momento foi fidedigno em relação aos acontecimentos que o sr. presenciou na Itália durante a Segunda Guerra?

 

Tive um tio que dizia não acreditar no Roma, Cidade Aberta, do Roberto Rossellini. Uma bobagem muito grande, porque eu testemunhei o que o filme mostrou em 1945. Vi que os italianos lutaram contra o fascismo. Os partigiani realmente se empenharam a fundo, com grandes perdas humanas e tudo. Uma injustiça muito grande dizerem que não fizeram nada. Quando nós entramos no norte da Itália, ele já havia sido tomado pelos partigiani. Tenho a maior admiração pela contribuição dos italianos na luta contra o fascismo. E Roma, Cidade Aberta me pareceu fiel. Vi Paisà na época do lançamento, 1946, mas não me lembro bem dele. A população italiana estava arrasada. Uma situação de degradação completa. Quando chegamos em Nápoles, era trágico.

 

Qual é o seu sentimento, hoje, sobre a guerra?

 

A guerra, a gente não esquece. Neurose de guerra todo mundo tem. Quem passou por aquela experiência tem neurose de guerra, é inevitável.

 

Como o sr. escreveu “Caderno Italiano”? Ainda usa a máquina de escrever?

 

Escrevo a máquina, não aprendi computação, não consigo. Por quê? Qual é a vantagem? Até hoje existem oficinas para máquinas de escrever, e eu mando a minha para eles. Sabe que há muita gente escrevendo desse modo ainda? Tanto que a gente ainda compra fita de máquina. O computador mudou o tipo de correspondência, não é? É imediata. Hoje em dia quase não escrevo cartas. A Jerusa [Pires Ferreira, sua esposa] manda as mensagens pelo computador. Ela está completamente computadorizada.

 

 

O sr. ainda escreve cartas? Pensa em publicar sua correspondência?

 

Minhas correspondências nunca foram publicadas. Nem quero que sejam. Eu guardo todas as cartas que recebo, mas hoje em dia quase não escrevo cartas. Não posso me queixar. Fico trabalhando, fico escrevendo, lendo, de vez em quando saio, acompanhado de alguém. Acordo cedo. Recebo muito livro, inclusive não há espaço para tantos deles em meu apartamento. No momento, revejo traduções antigas. Traduções novas, não mais.

 

Ao lado dele, por Olga Vlahou