O engenhoso humor negro de Park Chan-wook em “No other choice”

Presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme coreano desmonta os ultracapitalistas e sua mais recente arma, a inteligência artificial 

Lee Byung-hun vive o pai de família Man-soo: o homem do papel e de todas as plantas

Dedicar o próprio filme ao cineasta de 92 anos Costa-Gavras (“Z”) deve dizer muito sobre o tipo de obra – veloz, irônica, política – almejada por um diretor. Aqui, é o cineasta coreano Park Chan-wook (“Oldboy”), de 62 anos, quem reverencia o diretor grego cujos filmes combateram ditaduras.

“No other choice” (sem outra saída) é o título deste espetacular entretenimento coreano contra o establishment, baseado no livro “O corte”, do estadunidense Donald E. Westlake (1933-2008). Com bela fotografia em cores, sem efeitos visuais excessivos, bom timing e senso de suspense – ademais apoiado pela música incidental em tom alto, comentadora do espírito narrativo de cada sequência -, Chan-wook destrói as ditas boas intenções dos empregadores ultracapitalistas.

A filha e a mulher, interpretadas pela incrível
Choi So-yul, de 9 anos,
e pela rainha do k-drama Son Ye-jin

Sua comédia social de humor negro, que ecoa a commedia all’italiana e a fisicalidade dos Irmãos Coen, mira uma das mais recentes armas tecnológicas, a inteligência artificial. É ela a responsável por reduzir de forma drástica os trabalhadores da indústria da celulose. O íntegro pai de família Man-soo (Lee Byung-hun), que imagina ter alcançado todos os seus sonhos depois de 25 anos dedicados à fabricação de papel, vê-se subitamente na rua. Ele está a um passo de perder a casa, suas plantas, os cachorros e a sanidade dos filhos (interpretados por Kim Woo-seung e por uma inacreditável Choi So-yul, de 9 anos), sem mencionar a mulher tão bonita, vivida por uma das rainhas do k-drama, a ótima Son Ye-jin (“Pousando no amor”).

Em “No other choice”, o sonho
familiar por um (irônico) fio

Depois de concluir a impossibilidade de trabalhar em áreas distantes da sua, e especialmente após a constatação do sofrimento familiar, Man-soo entende que só uma solução muito engenhosa lhe devolverá o emprego, a vida e, sem exagero, a própria história.

Man-soo em missão: o homem é
o lobo de três homens

Por que Man-soo não tem outra saída? Porque, no capitalismo, o homem é o lobo do homem – e, aqui, trata-se de um lobo de três deles. Difícil imaginar um filme desta natureza encenado nos Estados Unidos atuais. Dificil constatar que não foi este o filme eleito o melhor pelo público na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

O coreano Park Chan-wook, diretor de “No other choice”: sobre a farsa ultracapitalista

Através do fluxo

Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o diretor Hong Sang Soo borra os limites entre narrativa, autoderrisão e blague

A mesa, o vinho, a conversa, as intenções escondidas

Se você nunca assistiu a um filme do coreano Hong Sang Soo, talvez se pergunte, após a sessão de seu novo longa, “Através do fluxo”, se foi cinema exatamente o que viu. Sua dúvida talvez não seja solitária. Aos 64 anos, Hong Sang Soo pode concordar com você.

Seus princípios de elaboração da história são seus fins. E quem age assim no cinema? Esboços preparados a partir de improvisos dentro de seus sets, que sempre parecem incorporar um banco diante de uma paisagem da natureza, à qual os personagens dão as costas, ou uma mesa onde os amigos compartilham soju ou vinho (eventualmente uma enguia grelhada, como neste filme), e assim formam situações e personagens.

São filmes, este também, que teimam em copiar o tempo real. Este é o primeiro fluxo. Eles fluem bem, nos divertimos com os diálogos nos quais há autoderrisão. Frequentemente, depois de algum tempo, a câmera decide se movimentar para o lado, como se não tivesse entendido bem a cena, ou faz um zoom abrupto, amador, e nessa brincadeira, nessa gramática que parece errada, mas é uma gramática, de repente o filme acaba. Para quem acompanha seus filmes, os fins abruptos são esperados e sabidos.

Os personagens hesitam como na vida, ensaiando o que realmente querem dizer. Polidos, contudo enganadores, dispostos a esconder um trunfo, os personagens de Hong Sang Soo, interpretados com frequência pelos mesmos atores em diferentes filmes (mas sempre o mesmo filme), conversam, bebem e fumam antes de entregar a que vieram, seus pensamentos e intenções. 

O professor que pegou suas alunas, e Kim Min-hee

O segundo fluxo, no caso deste novo longa, refere-se ao córrego próximo a uma universidade feminina sul-coreana (ah, a Coreia) onde o filme se passa. O professor que preparava uma peça de teatro com suas alunas havia se relacionado amorosamente com três delas em diferentes ocasiões no espaço de um mês, causando estupor e, como decorrência, sua expulsão da instituição.

Em razão dessa falta, a professora e artista têxtil Jeo-nim (interpretada por Kim Min-hee, a esposa do diretor, muito presente em seus filmes) decide chamar o tio, dramaturgo famoso cuja carreira foi enterrada, para encenar uma peça inteira em dez dias com estudantes amadoras. Um importante festival acontecerá e a universidade precisará comparecer com uma apresentação.

O tio é interpretado por Kwon Hae-hyo, que sempre faz um tipo de alterego em seus filmes: veterano bem reputado no campo das artes, ele não se sente seguro sobre seu ofício e frequentemente se envolve amorosamente com as mulheres com quem trabalha.

À beira do córrego, um esboço

O córrego faz sentido. Pode ser entendido como uma metáfora sexual (a corredeira do amor) ou como o fluxo do inconsciente dos personagens, sempre desejoso de ser revelado.

Hong Sang Soo é um blagueur, um tirador de sarro, um artista inspirado nos filmes de Robert Bresson. Mesmo sem entender o que ele pretende, um espectador pode divertir-se ao tentar.

O diretor Hong Sang Soo

Sessões no Cinesystem Frei Caneca 2 (19h30 do dia 26) e n Instituto Moreira Salles (20h15 do dia 30)