Dan Mirvish, um diretor indie sob a bênção de Jules Feiffer

O cineasta estadunidense, que já trabalhara com o desenhista no roteiro de seu filme anterior, Bernand e Huey, agora apresenta 18 ½, uma comédia a partir da sensação do cartunista de que Trump reviveria Nixon

Dan Mirvish (de pé à esquerda) ensaia parte de seu elenco (Willa Fitzgerald, John Magaro, Vondie Curtis Hall e Catherine Curtin) no motel Silver Sands, de propriedade do produtor do filme

Dan Mirvish, de 54 anos, diretor, roteirista, produtor e autor de livros, roteiros e letras de canções (além disso montador e fotógrafo, se o filme assim pedir), resume o perfil do cineasta independente hoje nos Estados Unidos. Ele é um perfeito homem-orquestra para que seu cinema se faça, e até mesmo contribuiu para a fundação de um festival de filmes independentes, o Slamdance Film Festival, de modo a aprimorá-lo. De uma maneira ou de outra, especialmente de outras maneiras alheias à produção mainstream, ele dirigiu anteriormente os longas Omaha – The Movie (1995), Open House (2004), Entre Nós (2013) e Bernard e Huey (2017), este exibido na 41a Mostra

Neste ano, ele aparece na 45a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo com um filme resultante de crowdfunding, intitulado 18 ½, que se refere ao espaço de tempo apagado de uma gravação de fita do escândalo Watergate. No filme, que se transforma numa improvável comédia de humor negro, Mirvish imagina uma situação a ter originado o suspeito apagamento: uma funcionária responsável por transcrever fitas teria este trecho na mão e, decidida a apresentá-lo a um jornalista do Times, resolveria transcrevê-lo com o objetivo de mostrar às autoridades seu conteúdo. Mas uma série de reveses, especialmente cômicos, teria mudado seu intento.

O elenco é muito bom, a começar pela bela protagonista Willa Fitzgerald, que encara com elegância toda a picardia de Mirvish. A música é feita pelo mexicano Luis Guerra a partir de um conceito de bossa nova, para o qual ele utilizou a voz da brasileira Caro Pierotto (a cantora tem singles e seu álbum Caro Pierotto lançados no Brasil pela gravadora ybmusic). Especialmente, este filme nasceu depois que, em conversa com o máximo desenhista e escritor Jules Feiffer, de 92 anos, Mirvish se deu conta de que a eleição de Trump os colocaria em rota semelhante àquela vivida nos anos Nixon, que Feiffer acompanhou tão bem.

A seguir, a conversa que tive com Dan Mirvish sobre seu novo filme e sua carreira como diretor independente:

A locação do filme, que não passou por reforma e mantém a arquitetura dos anos 1970

Vamos começar com o motivo importante para este filme ter sido feito: suas conversas sobre as eleições de 2016 com o desenhista Jules Feiffer e sua sensação de que Trump na presidência era como reviver o pesadelo de Nixon. O que exatamente ele lhe disse sobre isso? E como se sentiu com a vitória de Trump na eleição presidencial? De que modo as sensações dele foram acabar no seu filme?

Estávamos todos em choque na época, e ele contextualizou esta derrota ao se lembrar de tudo o que os Estados Unidos haviam passado durante o mandato de Richard Nixon no poder. De alguma forma, havíamos sobrevivido à era Nixon/Watergate, então Jules achava que, de uma forma ou de outra, também sobreviveríamos à era Trump. Oh, ele certamente não estava feliz com a vitória de Trump. Muitos de nós nos Estados Unidos não. Mas ele teve tempo de vida suficiente para ver que poderíamos sobreviver ao macarthismo, poderíamos sobreviver a Nixon, Reagan, ambos de Bush, e de alguma forma superaríamos isso. 

O interessante é que fui visitar Jules em sua casa em Shelter Island, perto da ponta oriental de Long Island. Meu amigo Terry Keefe, produtor do filme, me levou até lá, porque ele mora perto, e Terry estava comigo durante toda essa conversa. Depois, passei a noite no motel de Terry, o Silver Sands. Ele me mostrou o local e disse que havia apresentado muitas sessões de fotos de moda, videoclipes e comerciais lá, mas que ninguém jamais havia filmado um longa-metragem no local. Ele herdou o motel de seus avós, que o construíram nos anos 1950 e 1960, e parou de renová-lo no início dos anos 1970. Terry vem de um background de filmes independentes como produtor, então ele foi esperto em manter a vibração vintage única do lugar. Ele me contou que fechavam o motel durante o inverno e me contou se eu gostaria de rodar um longa lá. Bem, no novo contexto de conversar com Feiffer sobre Nixon e Watergate, e olhando em volta, me ocorreu que seria o local perfeito para um filme de Watergate! 

Um dos muitos cartuns de Jules Feiffer nos anos 1970 a ridicularizar Richard Nixon, o Dick

Você é próximo de Jules Feiffer para além da colaboração que ele fez no roteiro do seu longa precedente, Bernard e Huey, de 2017? Como você vê a importância dele para a cultura dos EUA? Pretende um dia fazer uma biografia cinematográfica dele ou um documentário sobre sua trajetória?

Definitivamente me consideraria um amigo, ou pelo menos um protegido inoportuno. Mas não tenho mantido contato com ele desde o início da pandemia, no ano passado. Originalmente, o plano era convidá-lo para a nossa sessão de fotos e talvez até mesmo tê-lo como o homem que anda pela lanchonete no filme… Quase podíamos ver sua casa de onde filmávamos! Mas no início de março de 2020 estávamos próximos demais da pandemia para arriscarmos vê-lo. Ele permanecia bem situado em sua quarentena numa ilha, então eu não queria estragar isso. 

Richard Kind também é amigo dele, mas igualmente não o viu. Também sou amiga de duas filhas de Feiffer e tenho estado em contato com elas. Eu sei que outra pessoa estava planejando fazer um longo documentário sobre Jules, mas eu não ouço falar sobre isso há algum tempo. Eu fiz algumas filmagens com ele quase todas as vezes que nos encontramos, mas não acho que tenha sido o suficiente para mais do que peças como meu curta Feiffer sobre Nixon ou para nossa campanha de crowdfunding para Bernard e Huey. Eu sei que alguém estava fazendo um livro sobre Jules no ano passado. Ele entrevistou David Koechner (uma das estrelas de Bernard e Huey) e a mim, extensivamente. Não tenho certeza em que estágio o livro está agora.

Jules Feiffer à época em que produzia cartuns sobre Nixon e tinha, entre seus admiradores, Federico Fellini

A maneira como você lida com esse lapso de tempo, os 18 ½ minutos perdidos nas gravações de fitas sobre o caso Watergate, é super criativa e divertida no filme, como se esse período pudesse conter muitas possibilidades. Em 18 ½ minutos decisivos pode-se fazer amor com alguém e também ser morto a tiros… E há uma espécie de evocação do filme do Fellini, 8 ½, não há? Você acha que o tempo é um tema do seu filme? O título veio antes do filme?

Essa é uma interpretação muito interessante dos 18 minutos e meio e das coisas que você pode fazer nesse período. E, sim, até certo ponto eu pensei assim. É sobre a duração de um lado de um álbum, então sim, o comprimento perfeito para uma cena de amor, ou uma cena de jantar ou um assassinato. E também é sobre a duração que a maioria dos filmes tem para seu terceiro ato, então funciona bem no contexto de um longa-metragem. Pensei no título bem cedo e, estranhamente, não fui muito influenciado por Fellini. Acho que isso trai minhas raízes na história política mais do que no cinema… Para mim, o termo “18½” sempre significou uma referência às fitas do Watergate e à lacuna que faltava. Eu simplesmente cresci com isso em meu vernáculo. Ma,s é claro, eu também conhecia o 8½ de Fellini. Na verdade, Feiffer era amigo de Feilini! Felini era um grande fã de Jules – para a agradável surpresa de Feiffer! – e eles se encontraram na Itália. Felini também estava muito à frente de seu tempo, escolhendo um título que apareceria tão cedo em todas as listas alfabéticas de filmes. Um movimento genial! Algumas pessoas fizeram a comparação de que 8½ também está em um hotel à beira-mar, mas não acho que as pessoas devam traçar muitos paralelos com isso.

Foi difícil para você transformar um assunto político americano muito sério em uma comédia?

É quase impossível ouvir as fitas reais de Nixon e não encontrar humor nelas e em todas as circunstâncias que cercam Watergate. Foi uma série de erros após a outra. Mesmo na época, nos anos 1970, as pessoas encontravam humor nisso todos os dias. Acho que o humor também é a melhor maneira de processar esses eventos terríveis. Dito isso, até ver o filme com um público em nossa estreia mundial em Woodstock, no mês passado, não sabia até que ponto as pessoas achariam o filme engraçado em algumas partes. A desvantagem de trabalhar em um filme durante uma pandemia é que nunca tivemos nenhuma exibição comunitária até que o isolamento fosse concluído. Por isso, foi uma surpresa muito agradável ouvir essas risadas na estreia.

Você estava pensando em fazer uma comédia sobre o assunto desde o início?

Antes de fazermos o filme, eu sempre o considerei como Quem Tem Medo de Virginia Woolf e Três Dias do Condor… mas um pouco mais engraçado do que qualquer um desses. Claro, nenhum desses filmes é particularmente engraçado. Então, sim, eu sempre encontrei pelo menos o humor negro em toda a história. 

O que você acha do humor no cinema? Você pensa nele como uma arma contra o sistema?

Sim, definitivamente o humor é uma arma contra o sistema. Todas os sistemas – sejam eles políticos, religiosos, burocráticos, industriais ou qualquer outra forma de status quo – precisam ser ridicularizados. O sério e grave filósofo alemão Theodor Adorno disse certa vez que o riso de uma platéia o lembrava das piores formas de tortura burguesa. Mas eu realmente não acho que ele era um fã dos Irmãos Marx. A sátira política no cinema existe há mais de 100 anos e tenho a honra de fazer um pequeno filme que segue essa tradição.

O gravador de rolo, central em 18 ½

Conte-me sobre a trilha sonora de “18 ½”. Parece-me perfeito que a bossa nova funcione como “muzak”, música de elevador, na maioria das vezes… e que seja usada como banda sonora para quem quer relaxar nos anos 1970… Esta ideia teria vindo de Luís Guerra ou de você? Como trabalhou nas canções incluídas na trilha?

Quando estava trabalhando no roteiro com meu parceiro de composição/produção Daniel Moya, fiquei pensando no tom do filme. Como vamos unificar os tons díspares de comédia, suspense de espionagem, sensualidade e intriga política? Para mim, em todos os meus filmes, sei que a música é o grande unificador para marcar o tom que se quer expressar. Também tenho outras regras para mim: não gosto de usar músicas pré-existentes. Seus direitos são caros e complicados de obter, em primeiro lugar. Mas também sinto que se um cineasta usa letras que estão na mesma linguagem do diálogo, isso sempre vai dividir a atenção do público. Então, se vou usar letras em vez de diálogos, elas realmente precisam estar em um idioma diferente, ou pelo menos misturadas tão baixo que se tornam incompreensíveis [é possível atestar um exemplo disso em Bernard e Huey, onde eu canto uma música!]. Também sinto que, especialmente com os filmes de época ambientados nos anos 1970, houve um uso excessivo de um pequeno grupo de canções muito populares, que se tornou clichê. 

Isso foi pouco depois de eu ter voltado da Mostra em 2017, então eu tinha a música brasileira muito presente na cabeça. Enquanto ainda estávamos na fase de roteiro, percebi que a bossa nova funcionaria tanto no tom do filme como um todo, mas também no contexto como um estilo de música favorito para o chamado casal cosmopolita do filme (interpretado por Catherine Curtin e Vondie Curtis Hall). Para um casal de meia-idade no início dos anos 1970, cujos gostos musicais nasceram nos anos 1960, a bossa nova brasileira era o mais selvagem e mundano que poderia haver. Mas também se encaixava na história, uma vez que os personagens relatavam ter estado no Brasil e em outros pontos de interesse internacionais, supostamente para que o personagem de Vondie trabalhasse para a empresa McCormick Spice, com sede em Baltimore. Lembre-se, de meados para o final dos anos 1970, a bossa nova havia se tornado o muzak definitivo, mas se o casal comprasse o álbum nos anos 1960, ainda teria sido cool na época.

Felizmente, Luis Guerra é bastante versado em música brasileira e muitos de seus colaboradores musicais do Brasil residem em Los Angeles. Por acaso, nós dois moramos em uma área de Los Angeles onde vivem muitos brasileiros. Então, a bossa nova e outras músicas brasileiras vieram naturalmente para Luis. Especificamente, também precisávamos de uma música-tema recorrente, que eu descrevi para Luis como sendo pelo menos liricamente evocativa de Garota de Ipanema e a música tema da série Mary Tyler Moore. Luis veio com a música e eu inventei a letra em inglês de Brasília Bella

Nos anos de meu crescimento, Brasília sempre foi essa incrível história internacional de uma capital nova e reluzente de um país construída a partir do zero. E ao usar Brasília eu encontrava um substituto para Washington, evocando o idealismo ingênuo que alguém como a protagonista do filme, Connie, pudesse ter tido ao se dirigir para Washington pela primeira vez, na década de 1960. Mas, ao contrário de Garota de Ipanema, eu precisava incluir o feminismo mais florescente da personagem de Mary Tyler Moore. 

Queríamos também que a letra sugerisse a natureza de espionagem/suspense do filme (“uma lagarta espiã, uma borboleta mortal”) e, finalmente, falasse com o arco da personagem de Connie e sugerisse o próximo capítulo de sua própria vida. Nossa tradutora Emilia Wolfrum, de Uberlândia, ajudou muito nesse processo. Quis mostrar que Brasília Bella era tão radical que comia pão de queijo com Nutella (minha filha é uma grande fã de Nutella, então aquela frase era para ela). 

Por causa dos meus sentimentos sobre as letras, isso significava que quando ouvíamos a música durante a cena de dança, a letra precisava ser em português e quando ouvíamos a música no final do filme, precisava ser em inglês. Isso funcionaria bem para espectadores de língua inglesa. Mas eu também sabia que os ouvintes de língua portuguesa iriam captar o significado das letras mais cedo, e isso lhes daria algumas dicas iniciais do final. (Gosto de ver filmes em que públicos diferentes percebem coisas diferentes em momentos diferentes – isso acontece em Bernard e Huey, onde o público alemão entende o diálogo no vídeo no museu muito antes de o público de língua inglesa perceber.) 

Então, mais tarde, quando estávamos pensando sobre que música os hippies do filme estariam ouvindo, Luis sugeriu a Tropicália como o estilo psicodélico brasileiro, com Os Mutantes e outras bandas da época. Nós até inventamos a história de que o mesmo estúdio no Brasil seria tão barato que eles gravariam um álbum de bossa nova num dia e usariam a mesma sessão de músicos e a cantora (Caro) no dia seguinte para um álbum da Tropicália! Seria mera coincidência (ou não) que os hippies então escutassem uma faixa 8 do mesmo estúdio de bossa nova que o casal estava escutando. Depois que envolvemos Caro, ela naturalmente trouxe muito de si mesma para o processo e foi uma alegria completa trabalhar com ela! Então, quando o ator Sullivan Jones (que interpreta Barry) me disse que tocava guitarra, apenas alguns dias antes de filmarmos suas cenas, Luis e eu escrevemos Deadly Butterfly para ele, baseados em parte da letra de Brasília Bella. Honestamente, se não tivéssemos tido todo esse tempo durante a pandemia, provavelmente não teríamos criado todas essas camadas na trilha sonora!

Você disse que amou São Paulo quando esteve aqui, há quatro anos. O que viu de adorável em nós, brasileiros?

Havia tido uma experiência realmente maravilhosa na Mostra de 2017! O staff do festival nos levou para ver bandas incríveis, e então uma noite assistimos a um ensaio de bairro para o carnaval (no final da noite, todos os cineastas estavam cantando e dançando junto com os habitantes da região). A diretora do festival, Renata Almeida, deu uma festa em sua casa, onde o DJ tocava principalmente músicas antigas, o que fazia São Paulo parecer Nova York no final dos anos 1960 ou início dos anos 1970. A arquitetura, as bancas de jornal, a música, o bairro da moda, toda a vibração. E, claro, todo mundo foi tão legal comigo enquanto eu estava lá! Tenho certeza que este foi um instantâneo único de São Paulo, mas a impressão ficou.

Como você se sente sobre nossa situação política, ou sobre nós, vivendo este pesadelo sob Bolsonaro?

Acho que mais de um brasileiro o descreveu para mim como “Trump com anabolizante”. Então, eu só posso imaginar o pesadelo que vocês estejam passando agora, particularmente sua resposta a Covid e todo o prejuízo para a comunidade artística e criativa. Foi devastador quando nos Estados Unidos ouvimos falar do incêndio no depósito da Cinemateca. E ainda mais triste saber que remontava à falta de apoio de Bolsonaro às artes. Se existe alguma esperança, pense que sobrevivemos a quatro anos de Trump (bem mal) e que houve uma luz no fim do túnel. 

Você é diretor, escreve roteiros e letras de música, é fotógrafo, trabalha com sua família, comanda um festival de cinema independente… Há uma infinidade de talentos em você. Acha que, como diretor independente, é mais fácil canalizar todos eles em um filme?

Sim, como um diretor independente, é muito mais fácil tirar proveito de minhas habilidades completas – desde escrever letras até fazer pão com fermento natural. Por exemplo, quando tivemos de parar de filmar depois de 11 dias por causa da pandemia (tínhamos quatro dias restantes para filmar), eu simplesmente empacotei o disco rígido com todas as nossas filmagens, voei de volta para Los Angeles e comecei a editar o material eu mesmo. Se eu não soubesse editar, demoraria meses para encontrar um editor. Dessa forma, eu sabia que material tínhamos e a melhor forma de cortá-lo. Acho que se eu fosse contratado estritamente para “dirigir” para a TV ou para um serviço de streaming, não me divertiria tanto. Felizmente, ninguém nunca me contratou para dirigir nada.

Como um diretor independente sobrevive hoje nos EUA?

É muito difícil. Por um lado, há uma enorme quantidade de filmes sendo feita agora por todos os streamers responsáveis por conteúdos em episódios. Mas eu não faço parte de nada disso. Ainda é muito difícil entrar nesse mundo e, quando você chega lá, perde muita liberdade criativa. Mas esses empregos pagam bem se você puder consegui-los, claro. E muitos cineastas independentes vão e voltam entre trabalhar em projetos de TV e fazer seus próprios filmes. Honestamente, esses episódios em série concentram toda a emoção e o dinheiro hoje no universo do cinema. O mundo dos recursos independentes é bastante sombrio se seu objetivo for ganhar dinheiro. Mas se esse não for o objetivo, então pode ser bastante criativo. Felizmente, tenho uma esposa adorável e solidária que mantém um teto sobre nossas cabeças. Eu também ganho algum dinheiro escrevendo livros (meu último, a segunda edição do The Cheerful Subversive’s Guide to Independent Filmmaking, foi lançado no verão pela Focal Press/Routledge), e também passo muito tempo dando palestras em escolas de cinema ao redor o mundo. Se houver alguma no Brasil que gostaria que eu as visitasse, por favor me avise! 

Quais foram as maiores influências sobre seu estilo como diretor?

Para mim, definitivamente Robert Altman. Antes mesmo de conhecê-lo (seu neto é um dos meus parceiros de produção) e de tê-lo como mentor do nosso primeiro filme, sempre fui fã. Mas houve outros, especialmente aqueles que conheci de uma forma ou de outra, de John Carpenter a Harold Ramis. Também tive sorte de, através do Slamdance, o festival independente que fundei, conhecer muitos diretores contemporâneos incríveis, cujos primeiros filmes mostramos – de Chris Nolan, Bong Joon Ho, Irmãos Russo, o falecido Lynn Shelton, Andrew Patterson, Sean Baker, a Rian Johnson (que na verdade foi assistente de produção no meu primeiro filme). E também cineastas dos quais você talvez não tenha ouvido falar, como Heidie Van Lier, Debra Eisenstadt e a falecida Sarah Jacobson. Além disso, Alex Cox, particularmente com Repo Man, me influenciou muito.

Além do cinema estadunidense, de quais outros você gosta?

Eu mencionei Bong Joon Ho, que conheci quando mostramos seu primeiro filme, Barking Dogs Never Bite, no Slamdance. Essa foi sua primeira viagem aos Estados Unidos. Foi no mesmo ano que Henrik Handloegten, da Alemanha, apareceu com seu primeiro filme (e eu o encontrei novamente na Mostra!). O diretor francês Frédéric Forestier é um amigo muito próximo e colaborador (ele é o produtor deste filme). Os cineastas alemães Veit Helmer, RP Kahl e o produtor Torsten Neumann são ótimos. (Torsten e eu fizemos um filme juntos.) Amo o diretor equatoriano Javier Andrade e o cubano Carlos Lechuga, que conheci ao longo dos anos em diferentes festivais. A diretora e escritora de Barbados Shakirah Bourne é uma amiga próxima e ainda não sabe disso, mas podemos colaborar em algo em breve… Passei muito tempo em festivais no Caribe, então conheci muitos cineastas de lá, como Maria Govan, das Bahamas, e de Trinidad.

Você aprecia algum diretor ou filmes brasileiros?

Shhhh! Estranha e embaraçosamente, na verdade não estou familiarizado com muitos cineastas brasileiros (embora eu tenha conhecido alguns apenas esta semana e estou ansioso para saber mais deles e compartilhar com eles nosso trabalho). Quando estive na Mostra em 2017, acabei vendo tantos grandes filmes da Estônia, China, Noruega e Alemanha, mas não tantos filmes brasileiros. Mas, agora, acho que preciso compensar isso!!

Você pode me falar sobre seus próximos projetos?

Honestamente, não tenho ideia do que vem a seguir! Eu sei que 18½ ainda vai ocupar a maior parte do próximo ano. Não tenho certeza se você percebeu, mas não temos um distribuidor ainda – nos Estados Unidos ou internacionalmente. Mesmo assim, sei que vou fazer uma longa turnê com o filme por festivais nos próximos meses (incluindo talvez um retorno ao Brasil – acabamos de ser convidados para algo no Rio!). O próximo verão é o 50º aniversário da invasão do Watergate, então eu suspeito que faremos algum tipo de distribuição planejada para isso. Também houve algum interesse em transformar o filme em uma série episódica, uma peça ou, definitivamente, o lançamento de uma trilha sonora.

Dan Mirvish, que lamenta o pesadelo Bolsonaro, um “Trump com anabolizante”, os mortos por sua irresponsabilidade e a destruição da Cinemateca

18 1/2

Direção: Dan Mirvish

EUA

2021 cor 88 min.

Ficção


TRAILER: https://vimeo.com/360043053

Um festival de mulheres em “As Bruxas do Oriente”

Julien Faraut conta como dirigiu este filme espetacular, em cartaz na 45ª Mostra Internacional de Cinema, a partir da arte de uma documentarista e de uma desenhista de anime dos anos 1960, junto ao depoimento das ex-atletas

As Bruxas do Oriente, time nacional de vôlei do Japão, partem para vencer as soviéticas em 1964, na Olimpíada de Tóquio

O francês Julien Faraut, de 43 anos, é um eterno satisfeito com o cinema. Dentro dele, ao contrário do que ocorreu com a maioria de seus antecessores e contemporâneos, pode fazer o que quiser, no tempo que desejar. Para chegar a este ponto, contudo, ele teve antes de subir degraus no Instituto Francês de Esportes, o Insep, a “fábrica” de campeões olímpicos situada no coração da Floresta de Vincennes, na região sudeste de Paris, onde numa gigantesca área de 28 hectares a entidade acolhe e prepara diversas gerações de esportistas de alto nível. Ali, Faraut cuidou de coleções de filmes e recuperou filmagens antigas. Desse trabalho de quinze anos, o mestre em história pela Universidade Paris-Nanterre extraiu uma possibilidade: construir filmes a partir de outros.

As Bruxas do Oriente é, como tudo em sua carreira, um filme a partir de outras filmagens do esporte. Especialmente de um desses documentários, O preço da vitória, dirigido em 1964 pela cineasta e atriz japonesa nascida na China Nobuko Shibuya (1932-2016). O filme fez Faraut literalmente pirar. Nesta obra-prima de luz e angulação, exibida no Festival de Cannes de 1964, Shibuya apresentava o time de voleibol feminino de uma fábrica de tecelagem. Treinada por Hirofumi “Demon” Daimatsu, que instruía as jogadoras com rigor, especialmente na arte de rolar na quadra, a equipe foi a escolhida, em 1960, a representar o país no campeonato mundial do Rio. E apenas perdeu para as soviéticas na final. Depois disso, o time seguiu em turnê pela Europa e em 1964 vingou-se do time da URSS, levando a medalha de ouro sobre ele na Olimpíada de Tóquio.

O filme de Faraut foi feito a partir da montagem dessas filmagens e do anime Ataque número 1, da artista japonesa de 75 anos Chikako Urano, que acompanhou o sucesso das chamadas bruxas nos anos 1960. Duas mulheres, portanto, a servir como inspiração a este criador… Além das filmagens de época, Faraut conseguiu reunir as próprias jogadoras seis décadas depois do sucesso. Foi a primeira vez que tiveram a chance de expor em filme as histórias que circundaram seu feito.

A diretora Nobuko Shibuya (esq.) e a autora de mangá Chikako Urano, cujo trabalho foi reaproveitado por Julien Faraut em seu filme sobre a trajetória das Bruxas

Segundo Faraut, a história do treinador, por seu lado, foi suficientemente contada no Japão, e para além do voleibol de fábrica. Convocado pelo exército japonês durante a Segunda Guerra, Daimatsu se viu no meio da desastrosa campanha na Birmânia. Um dos poucos sobreviventes, fez o seu caminho ao longo da “estrada dos ossos brancos” de volta à Tailândia e à vida no pós-guerra. Apesar do rigor que impunha aos treinamentos das jogadoras de voleibol, ele falava com suavidade e era calmo. Fumante inveterado, morreu 14 anos após a vitória em Tóquio.

Tudo em As Bruxas do Oriente caminha bem. A edição é especialíssima, interessada no crescendo emotivo. E assim segue o padrão visual do longa, cuja direção de arte acerta o tempo todo ao nivelar as diferenças entre animação e filme, e provocando incessante diálogo entre elas. Isto sem mencionar que o assunto sugere na medida paralelismos e metáforas de conquista pessoal a partir dos depoimentos das ex-jogadoras.

A seguir, a entrevista que fiz com o diretor Julien Faraut.

O diretor francês Julien Faraut, também autor de “John McEnroe no reino da perfeição”, de 2018

Gostaria de entender seu trabalho há 15 anos no Instituto Desportivo Francês, o Insep. Sempre atuou para eles como cineasta? Ou era pesquisador, roteirista, diretor de fotografia, editor? Os filmes para o instituto são destinados ao cinema, à televisão ou a ambos?

Quando jovem adulto, eu era um cinéfilo, mas jamais imaginei que um dia dirigiria filmes! Descobri o documentário e, sobretudo, encontrei rolos de filme na universidade (Paris X Nanterre) que me despertaram para as possibilidades de fazer meu próprio cinema. Em 2001, tive a oportunidade de estagiar no Insep, onde cuidei das coleções de filmes. A partir deste período, comecei a editar e reutilizar as filmagens dessa pequena biblioteca e mostrar seus itens desconhecidos.

Sou responsável pela cinemateca do Insep desde 2003. Os primeiros filmes foram feitos para uso interno, apenas dentro do instituto. Depois comecei a dirigir para museus, eventos especiais ou festivais. Com o tempo, esse trabalho foi se tornando mais importante, mais “profissional”. Comecei a atuar junto a uma produtora e dessa colaboração nasceu Um novo olhar para Olympia 52, transmitido pela TV francesa em 2013. Os dois filmes seguintes (John McEnroe no reino da perfeição, de 2018, presente na 42 Mostra, e As bruxas do Oriente) foram produzidos pela UFO Production e lançados nos cinemas. Ainda é uma forma de mostrar a biblioteca de filmes, e ainda os uso para palestras ministradas dentro do instituto.

Toda a atenção do Japão para o que uma mulher era capaz de fazer

Como nasceu “As Bruxas do Oriente”? Você já conhecia esse assunto e decidiu dirigir um filme sobre ele? Ou o trabalho começou quando encontrou os documentários japoneses que descreviam a história dos atletas? Quantos anos você passou fazendo este filme?

Como em qualquer um dos meus filmes anteriores, descobri a história das Bruxas por meio de uma filmagem. Há dez anos, uma treinadora francesa de vôlei (que comandava a seleção nacional de vôlei feminino na década de 1980) me procurou com um filme de 16mm produzido pelos japoneses e destinado a ensinar técnica às jogadoras. Essa filmagem do treinamento das Bruxas me deixou maravilhado. Me fez lembrar de um anime japonês a que assistia quando criança! Comecei a pesquisar e minha vontade de fazer um filme sobre a história se confirmou. É difícil dizer quanto tempo levei para fazer o longa. Eu diria dois anos. E mais alguns anos para conceber o projeto.

O material histórico deste filme tem uma fotografia impressionante. Foi preciso restaurá-lo? Você conseguiu entrar em contato com as equipes de filmagem originais?

Trabalhar numa cinemateca me deu alguns conhecimentos sobre os diferentes materiais, suporte e formato dos filmes. Dou o melhor de mim para procurar as impressões dos negativos originais e peço uma digitalização 4K. Fizemos algumas gradações de cor, mas nenhuma restauração foi necessária. Nobuko Shibuya, que dirigiu o maravilhoso filme O preço da vitória (com a sessão de treinos das Bruxas na fábrica), infelizmente faleceu. Pensei em entrar em contato com Chikako Urano, a autora do mangá Ataque nº 1, mas finalmente não o fiz. É preciso fazer algumas escolhas!

Seu filme não nos mostra o jogo em que o time japonês perdeu para a URSS durante o campeonato mundial sediado no Rio de Janeiro, em 1960. Existem imagens dessa partida? 

Não encontrei nenhuma filmagem deste evento. Solicitei aos arquivos nacionais do Brasil algum noticiário ou filmagem, mas eles não encontraram nada.

Foi difícil reunir as jogadoras para falar sobre esse passado? Elas fizeram alguma exigência preliminar para dar seu depoimento?

Demoramos quase um ano para conseguir encontrá-las. Comecei do zero, pois não tinha vínculo qualquer com os japoneses. Então nós (eu e meu produtor) mandamos garrafas no mar… Uma pessoa na UniFrance finalmente nos deu o contato de alguém que, envolvido nas Olimpíadas de Tóquio 2020, comunicava-se com elas. Meu tradutor foi muito útil e convincente. Também éramos cautelosos, com a preocupação constante em sermos educados e respeitosos. Elas aceitaram falar assim que entenderam nosso pedido.

A montagem deste filme é primorosa, assim como a direção de arte. Quais foram as principais dificuldades que você enfrentou para criar este padrão visual? Sua maneira de fazer a edição atinge o espectador em cheio, ele passa a torcer por elas. A identificação do espectador é uma busca importante em seu trabalho?

Eu tenho de ser o primeiro a me satisfazer com a edição. Como primeiro espectador do meu filme, quero gostar dele. Posso gastar o tempo que for preciso para editar. Nunca trabalho com prazo curto ou comando. Amo editar e fazer filmes. Estou feliz que você tenha sentido prazer em ver o filme.

Os documentaristas japoneses alguma vez entrevistaram essas jogadoras? Ou seu discurso foi simplesmente ignorado pelos filmes da época?

O técnico Daimatsu e a capitã Kasai eram as duas vozes a falar em nome da equipe. Algumas jogadoras só deram entrevistas muito breves depois que os dois faleceram. Encontrei uma verdadeira ausência de testemunhos.

Você construiu um excelente perfil psicológico do Demon Daimatsu. Mostrou-o como um inovador muito exigente, mas também atencioso com suas jogadoras, que por sua vez pareciam adorá-lo. Ou alguma delas rompeu relações com ele em determinado momento?

Todos as jogadoras que conheci me disseram quão sinceramente se sentiam gratas a ele. Foram realmente muito próximas a Daimatsu. Suas conquistas e trajetória comum criaram laços muito fortes.

Sentimos a ausência da voz do técnico no filme. Não houve entrevistas filmadas que você poderia ter usado neste filme? 

Eu não encontrei esse tipo de filmagem de Daimatsu. Talvez não tenha procurado muito. Ele não era meu alvo. Eu estava focado nas jogadoras, aquelas de quem não tínhamos notícias. Era a elas que eu queria dedicar todo o meu filme.

O técnico “Demon” Daimatsu, sem perder a ternura jamais, e suas jogadoras

Não teve vontade de alongar um pouco mais a trajetória do treinador no seu filme? Você acha que isso desviaria o espectador do objetivo principal? Senti uma curiosidade insatisfeita sobre o que ele fazia antes de trabalhar para a equipe de fábrica e depois que suas jogadoras venceram a Olimpíada.

Eu posso entender sua curiosidade. Daimatsu escreveu vários livros sobre sua história, método e carreira. Sua vida e ponto de vista foram bem documentados. Meu objetivo neste filme foi focar nas jogadoras apenas porque elas não tiveram a oportunidade de falar por si próprias. Daimatsu, Kasai, jornalistas e observadores falavam em nome delas. Desta vez, quis lhes dar a oportunidade de expor seus pontos de vista e sentimentos.

Quanto lhe encanta o cinema japonês? Algum dos cineastas do país influenciou sua carreira como diretor?

Gosto de cinema japonês e de anime com certeza. Mas esse cinema não me influenciou direta ou conscientemente. O cineasta francês Chris Marker (1921-2012), que desempenhou um papel importante na maneira como comecei a fazer filmes, era um amante do Japão. Seu filme Sunless (1983), parcialmente localizado no país, é muito importante para mim. Mas ainda não exerceu nenhuma influência direta na maneira como dirigi As Bruxas do Oriente. Segui o caminho das filmagens de origem, o testemunho das jogadoras e resolvi problemas técnicos. O estilo do filme não seguiu nenhuma ideia anterior ou fixa. Gosto de fazer filmes que encontrem estilo no processo de fazer. “Naturalmente”, se você quiser assim. A forma tem de servir e se adequar ao assunto, em minha opinião.

Quais são as suas principais influências cinematográficas, principalmente no campo do cinema esportivo? Como você vê o trabalho de Leni Riefenstahl em Olympia?

Mencionei o Marker como uma grande influência. O trabalho de Riefenstahl era visualmente muito sofisticado e inovador. Ela teve muitos apoios e fundos para fazer seu filme. Eu pertenço ao mundo indie do cinema. Não sinto nenhuma conexão pessoal com ela, na verdade.

Você acredita que sempre será um diretor de temas esportivos? Ou pretende fazer documentários sobre outros temas ou mesmo ficção?

Nossas vidas são feitas de oportunidades. Quando comecei a dirigir a cinemateca do Insep, encontrei lá a oportunidade de fazer filmes de fundo. Não vejo o “tema esportivo” como uma limitação. Não me sinto frustrado com isso. O tema de um filme não faz todo o filme, o cinema sim é importante. A forma e a narração de um filme importam. Temas esportivos me deram boas oportunidades até agora. Eu me diverti muito. É também um território totalmente desconhecido, uma chance para qualquer cineasta que queira criar sua própria obra. Se lhe dão a oportunidade de fazer uma ficção… por que não?

Você pode nos dizer qual será o seu próximo projeto de filme?

Estou começando a pensar em um novo assunto, mas ainda não sei se conseguiria fazer um filme com ele. Preciso trabalhar nisso ainda, desculpe! Seria sobre um tópico de esporte também, mas um tópico muito incomum.

AS BRUXAS DO ORIENTE

França

Direção Julien Faraut

Documentário

2021 cor & pb 100 min.



TRAILER: https://www.youtube.com/watch?v=np232nnEmvQ

“Madeira e Água”, um filme que se faz sobre duas pernas

O primeiro longa do alemão Jonas Bak, de 36 anos, é um deslumbre fotográfico em 16mm sobre a solidão existencial

A protagonista Anke Bak
vislumbra Hong Kong

Dirigido pelo alemão Jonas Bak, Madeira e Água é um primeiro e poderoso filme, presente agora na 45ª Mostra Internacional de Cinema e anteriormente exibido na seção Perspectivas do Cinema Alemão do Festival de Berlim. Embora a trilha de Brian Eno seja importantíssima para imprimir a sensação de viagem solitária que a obra exige, sua atração mais forte repousa na fotografia do filme em 16mm, a cargo de Alex Grigoras. Protagoniza o longa-metragem a mãe do ator, uma não-atriz, Anke Bak, e outros integrantes da família também compõem o elenco.

Como ficção de estreia, esta não evita o tom autobiográfico enviesado. A Hong Kong que Bak vê durante os conflitos de rua de 2019, iniciados em repúdio a um projeto de lei que permitiria a extradição de suspeitos de crimes para a China continental, é igualmente a cidade onde viveu, e que, já saudoso, deve abandonar. Ele não discute o conflito das ruas, mas não deixa de visualizar, à distância, sua existência constante, como a romper o equilíbrio de um mundo antigo.

O diretor Jonas Bak

Jonas Bak nasceu em Konstanz, Alemanha, em 1985. Estudou direção no Edinburgh College of Art, na Escócia, e trabalhou como diretor de cinema e fotografia em Londres e Hong Kong. Dirigiu dois curtas, Wanderdrachen (2016) e One and Many (2017), antes que Madeira e Água surgisse.

É bastante viva a imensidão da paisagem em relação ao homem na sua ficção, tão devedora da arte fotográfica de Wim Wenders, cineasta que na entrevista a seguir Bak diz admirar. “Wenders foi um daqueles diretores a me ensinar novas maneiras de ver e admirar filmes, entendê-los mais como uma experiência sensorial do que intelectual.”

Na igreja alemã onde Anke reza
para ter força contra os problemas,
não para pedir por seu fim

A protagonista se aposenta do trabalho, adquirido após a morte do marido, na igreja de sua cidadezinha na Floresta Negra. Anke é religiosa a seu modo. Reza para ter forças de lidar com problemas, não para não ter problemas. Ela está ansiosa para rever a família durante as férias de verão no mar Báltico, mas à última hora, Max, um de seus filhos, não consegue se juntar a seus familiares por causa dos protestos em Hong Kong, onde vive. Sem vê-lo há muitos anos, e depois de um verão passado com as filhas na casa que lhe traz tantas lembranças, Anke decide visitá-lo. O filme ganha sua dimensão simbólica nesta passagem que ela faz, solitária, pelo território estrangeiro, à espera de que o filho, vítima de depressão, volte de uma viagem de negócios. Ela passa os primeiros dias sozinha no exterior, e lá se relaciona com os amigos de Max. A visita a um deles rende-lhe uma leitura filosófica, feita por uma espécie de xamã local. A personalidade de Anke, diz-lhe o chinês, é composta pela mistura de dois elementos, a madeira, relacionada à criatividade e à imaginação, e a água, que busca a filosofia e o conhecimento.

O filme, que busca inspiração na fotografia e na pintura, é profundo ao descortinar paisagens, especialmente do alto, de onde o casario e os prédios parecem ordenar o mundo dos homens. É um filme que vagueia, que se faz com as pernas, como sugere o autor, estas que batem em busca de outras camadas da vida, as profundas e escondidas.

As muitas camadas de paisagem

A seguir, a entrevista que fiz com o diretor.

Este é seu primeiro longa-metragem depois de ter realizado dois curtas. Quais são as principais diferenças entre esses dois formatos para expressar suas ideias?

A principal diferença é que tenho mais tempo e posso realmente moldar o filme com esse tempo que tenho. Talvez tivesse sido possível montar “Madeira e Água” como um curta, mas então estaria perdido tudo o que ficou escondido sob a trama. Os temas mais profundos do filme aparecem quando se passa tempo com a personagem e em sua jornada. Também é possível contemplar mais de um tema em um filme mais longo. Nossas vidas são muito complexas. Podemos atingir um espectro amplo e ir fundo no que significa ser humano a partir dessa duração ampliada.

Hong Kong, o mundo ordenado
a partir de cima

Como nasceu “Madeira e Água”? O tema do filme corresponde de alguma forma à trajetória de sua família?

Nasceu enquanto eu morava em Hong Kong. Eram minha própria alienação cultural, a situação de minha mãe em casa e as mudanças políticas em Hong Kong que eu queria transformar em filme. Usamos muito de nossa própria formação e emoções para contar a história. Senti uma certa saudade de casa. Na vida real, minha mãe passou a morar sozinha e se aposentou um ano depois que terminamos as filmagens, então houve muitos paralelos entre o filme e minha realidade.

O projeto de escrita do seu filme foi modificado durante as filmagens? Ou todo o seu planejamento seguiu o roteiro inicial?

Escrevi um roteiro para a primeira parte do filme na Alemanha e na Dinamarca. E fiz isto principalmente para aprimorar os ensaios com minha mãe. Ela nunca havia atuado antes e precisávamos de algo para trabalhar. Ensaiamos por cerca de um mês e o que você vê no filme está muito próximo do roteiro. Foi um pouco diferente quando filmamos Hong Kong. Escrevi esta parte logo depois de rodarmos a primeira e ensaiamos apenas por alguns dias com os outros atores. Depois, meio que abandonamos o roteiro e abordamos as coisas com mais liberdade. Minha mãe teve confiança para improvisar e se adaptar às mudanças a que a situação em Hong Kong nos lançou. Seguir nossa intuição, mais do que um roteiro, também teve o belo efeito de transformar tudo numa jornada para nós em nossa pequena equipe. Todos nos tornamos parte da história e isso criou uma atração, vivemos nela.

Protestos em Hong Kong,
menção à distância

Você estava em Hong Kong durante os protestos de 2019 para fazer seu filme? Por que escolheu Hong Kong como parte das locações?

Sim, nós filmamos durante os protestos, mas não foi planejado dessa forma. Eu não queria fazer um filme político quando o escrevi pela primeira vez. Os protestos aconteceram e não pudemos evitá-los, eles tomaram conta de toda a cidade naquele período. Escolhi Hong Kong principalmente porque havia morado lá por três anos e sabia que retornaria à Europa. Foi minha despedida de Hong Kong, no sentido positivo. Sinto-me muito nostálgico olhando para aquela época e para a Hong Kong que conheci.

Você gosta de trabalhar com não-atores? Acha que eles possam ser mais naturais, como pensava o neorrealismo italiano?

Alguns dos personagens de Hong Kong são interpretados por atores, mas eu prefiro trabalhar com não-atores. Gosto quando as pessoas interpretam uma versão de si mesmas. Isso me dá autenticidade e a chance de usar sua confiança em quem elas são. Mas depende do projeto. Em um filme tão pessoal, silencioso e contemplativo, vou preferir sempre trabalhar com não-atores. Contudo, em um filme que se baseie no diálogo ou queira se aprofundar na psicologia de um personagem ou relacionamento, eu preferirei atores profissionais.

À volta de um quarto
compartilhado em Hong Kong

Por que você filmou “Madeira e Água” em película?

Nossa abordagem visual foi muito diligente e cuidadosa: posições de câmera fixas e composições fixas, como se estivéssemos tirando fotos. Tirar fotos tem algo de nostálgico, você quer congelar um momento antes que passe. Na primeira parte estão as fotos antigas, são memórias. Depois, há Hong Kong, que muda drasticamente e nunca mais será a mesma, e eu queria preservá-la de alguma forma. O cuidado que você precisa ter ao trabalhar com 16mm enfatiza essa abordagem. E tem uma presença forte na tela grande, parece muito tangível. Em um nível mais prático, dava a tudo uma sensação de ação dentro da vida. Não fomos capazes de filmar 30 tomadas por cena sendo minha mãe uma não-atriz, então tivemos de ser muito cuidadosos ao rodar a câmera. Precisávamos estar certos de que sabíamos o que estávamos fazendo. O digital oferece muitas opções, às vezes.

A fotografia é um espetáculo à parte neste trabalho, em que as cores também ilustram a psicologia dos personagens. Você parece de alguma forma reviver o que os grandes diretores-fotógrafos fizeram, como Wim Wenders ou Michelangelo Antonioni. Qual a importância desses diretores para a sua formação como cineasta? E quais cineastas foram decisivos?

Obrigado por comparar a fotografia do filme àquela de heróis como Wenders e Antonioni. Eu pessoalmente fui fortemente influenciado por Wenders quando estava na escola de cinema e quando fiz meus primeiros curtas-metragens. Ele foi um daqueles diretores a me ensinar novas maneiras de ver e admirar filmes, entendê-los mais como uma experiência sensorial do que intelectual. Eu não tento copiar nenhum outro cineasta, mas pessoas como Chantal Akermann, Angela Schanelec, Tsai Ming Liang, Apitchtpong Weerasetakul, Sharunas Bartas (seu trabalho inicial), Bela Tarr, etc. certamente deixaram uma marca inconsciente em minha forma de abordar os filmes.

Como você e seu diretor de fotografia trabalham? Ele escolhe as locações, por exemplo, ou este é um trabalho que vocês fazem juntos?

Em “Madeira e Água” eu escolhi as locações, porque morava nelas ou em sua proximidade. Passo muito tempo a encontrá-las, é uma das tarefas que mais gosto empreender. Para mim, fazer filmes está em minhas pernas, em sair, ver lugares e conhecer pessoas. Não fizemos um storyboard de antemão e trabalhamos de forma muito colaborativa e intuitiva. 

Na maioria das vezes, tenho algum tipo de ideia de enquadramento que corresponde ao que Alex propõe. Em relação à iluminação, dou carta branca para ele, é muito técnico para mim. Tanto quanto podemos, usamos iluminação artificial mínima e trabalhamos preferencialmente com luz natural. Somos amigos próximos, temos um entendimento mútuo de filmes e estética e trabalharemos juntos no futuro.

Você já trabalhou como fotógrafo? Gosta de investigar o trabalho de grandes nomes neste campo? Por que usou fotos para representar o passado familiar do seu protagonista?

Nunca trabalhei como fotógrafo, mas sempre gostei de tirar fotos analógicas. Meu pai era um fotógrafo afiado e talentoso e sua câmera antiga é uma das coisas que ainda guardo e uso muito. Mas as pinturas sempre me inspiraram mais do que as fotografias. Hopper, Caravaggio, Rembrandt, Hicks, Schikaneder, Ilsted, Schiele, Kiefer etc. têm uma presença tão forte que nos atraem.

Seu filme contribui para a discussão de questões importantes, como depressão, o papel da religião e da família. Ele sugere que o crescimento da depressão no mundo possa estar relacionado à ausência de um sentimento pessoal sobre o sagrado. Em sua opinião, o ser humano está destinado à solidão na sociedade contemporânea?

Muitos fatores contribuem para o aumento das taxas de depressão. Um deles certamente pode ser a perda da crença em algo maior do que nós mesmos e da fé religiosa, em uma vida após a morte. Isso cria um medo do nada, questões sem resposta. Colocamos nós mesmos e o progresso no centro de nossa existência, e isso é perigoso. 

Devemos abraçar nossa solidão e não ter medo dela. Pelo menos, aprender a enfrentá-la e conviver com ela. A solidão é uma parte inevitável do ser humano. A solidão que as estruturas sociais, a pressão social e, por exemplo, a vida na cidade ou a covid impõem sobre nós é de um tipo diferente, contudo. É realmente assustadora, e outro fator importante para o aumento dos problemas de saúde mental.

Sabor local, a sabedoria

MADEIRA E ÁGUA

Diretor: Jonas Bak

Alemanha, França, Hong Kong

2021 cor 79 min. Ficção 

TRAILER: https://vimeo.com/510630323

“Tempo Ruy”, a resistência vital do diretor Ruy Guerra

O primeiro, belo e poético longa-metragem de Adilson Mendes é obra madura sobre um dos mais importantes diretores do Brasil

Ruy Guerra, olhar direto



Cinema sobre cinema. Assim se pode resumir Tempo Ruy, o filme do diretor Adilson Mendes sobre o diretor Ruy Guerra, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com montagem de Fábio Costa Menezes e fotografia de Saulo Nicolai e Kae Rodrigues, Adilson Mendes voa como um pássaro poético sobre a trajetória de um relegado da historiografia, o moçambicano tornado brasileiro pelo cinema Ruy Guerra. É seu primeiro longa-metragem, mas nem parece.

O diretor de “Tempo Ruy”,
Adilson Mendes

Historiador formado na Unesp, com habilitação em cinema pela USP, Mendes aprofundou-se em curadoria e história, com ênfase em história do cinema e patrimônio audiovisual. Foi pesquisador da Cinemateca Brasileira, onde trabalhou em curadorias, edições e restaurações. Organizou o livro Ruy Guerra – Arte e Revolução e na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no ano passado, ministrou, ao lado de Ruy Guerra, o curso on-line “O Trabalho de Ruy Guerra”. Sua única obra anterior como cineasta foi o curta Eu Posso Ir.

Mendes conheceu Ruy Guerra quando participou da equipe da Cinemateca responsável pela restauração de Os Fuzis, uma obra-prima brasileira possivelmente sem pares. A crise de 2013, que atingiu a instituição, impediu a finalização do restauro. E Mendes foi a pessoa encarregada de viajar até o Rio para contar isso a Ruy Guerra. “Dei sorte e nosso santo bateu. E na pandemia estreitamos os laços”, ele conta.

O filme foi rodado durante a pandemia naquele pedaço de mundo onde Guerra vive ao lado de seu enfermeiro, Gerônimo Quirino, um personagem apresentado em sequência memorável. É como se, por meio dela, estivesse ilustrada a própria trajetória atlântica de Guerra rumo à pasárgada brasileira, onde, misturado à paisagem e seus desígnios, o moçambicano escolheu aplicar as lições de cinema que primeiro aprendeu com os franceses.

Em seu recolhimento, com humor

Ruy Guerra fala e pontua bem o que diz, como se o tempo realmente lhe pertencesse. Autor de livros, poemas e canção popular, ele lê por todo o filme. Tem o mau humor divertido e no seu coração não parece haver rancor nem mesmo por Glauber Rocha, que rompeu com ele por imaginá-lo espião da ditadura portuguesa, ou algo nesta linha sem sentido. Mas Guerra, como bem recorda, despediu-se dele em funeral.

O filme persiste em imagens litorâneas estendidas, em reflexos e sombras do cinema mudo, e todo o tempo parece encenar um sereno adeus. 

Um cineasta reconhece outro e, aos 90 anos de idade, Guerra diz a Mendes que demora a morrer. Isto, como é de supor, o faz presenciar a perda um a um de todos os grandes amigos, como Gabriel García Márquez, de quem diz se lembrar todos os dias. Ele suspeita que esta seja a maneira que a vida encontrou de lhe dizer que talvez seja possível perdê-la sem lamentar. Mas Guerra, indiferente ao que o tempo rui, sempre preferirá viver um pouco mais. 

A seguir, as respostas que Adilson Mendes deu às minhas perguntas:

Como se deram as conversas para a realização deste filme?

O convívio diário com Ruy Guerra durante a pandemia fez com que ficássemos amigos e a ideia do filme surgiu como forma de ajudá-lo a existir durante esse período difícil. A amizade forte permitiu a liberdade criativa.

Sentiu necessidade de procurar outros personagens envolvidos em sua história? Ou ele lhe pediu que se concentrasse apenas em seus depoimentos e cartas?

Achei que seria apropriado fazer um filme huis clos com ele em sua casa. Um caso isolado com possibilidade de generalização. Uma estrela solitária capaz de iluminar uma constelação inteira: a cultura brasileira, que agora está sendo tragada por uma nebulosa. E o brilho de Ruy é a resistência vital.

Me fale um pouco sobre a escolha da trilha musical, que me parece tão acertada, ao intensificar as passagens, os belos travellings.

A trilha é fruto do enorme talento de Dino Vicente. O trabalho dele foi fundamental para a estruturação do filme. O título do filme traz a palavra “tempo” no sentido musical. Por isso, a música deu ossatura à massa gelatinosa das imagens e da voz de Ruy.

Esse seu estilo de documentário, que explica sem se detalhar ou identificar (como acontece numa emocionante sequência em câmera lenta em torno do enfermeiro de Guerra, e pode indicar, além da fragilidade física do diretor, sua trajetória afro-atlântica), foi desenvolvido a partir do interesse em documentários específicos? Quem são os documentaristas que mais lhe influenciam?

Durante a década e meia em que trabalhei na Cinemateca mergulhei na história do cinema. E certamente a tradição documental me marcou, especialmente a de Georges Franju, que também marcou demais a sensibilidade de Ruy.

Manancial inesgotável

Como você vê Ruy Guerra no panorama do cinema brasileiro? Crê que ele não foi suficientemente visto ou valorizado? Quais são os filmes essenciais da cinematografia dele, a seu ver, e por quê?

Ruy é manancial inesgotável. Sua coragem de se renovar a cada filme é inspiradora para qualquer cineasta que queira fazer um cinema de combate. Para mim, Ruy é o autor do único filme brasileiro: Os Fuzis. Quando observamos a fortuna crítica de Ruy, notamos que sua obra repercutiu mais na França do que no Brasil. Os clássicos da historiografia do cinema moderno o ignoram ou passam rápido por ele, sempre reproduzindo o belíssimo texto de Roberto Schwarz sobre Os Fuzis, “O cinema e Os fuzis”, de 1966.

Tem um próximo projeto cinematográfico do qual possa me falar?

No momento desenvolvo alguns outros filmes, ficção e documentário. O mais avançado, que sairá no começo de 2022, trata da entrada do MST no mercado financeiro.

Adilson Mendes, com o MST
para o próximo filme

TEMPO RUY

Diretor: Adilson Mendes

Brasil

2021   cor   72 min.   

Documentário

Eu entendo a juventude transviada

Só faltou Luiz Melodia para tornar “Sem Arrependimentos”, na competição de novos da Mostra Internacional, mais ainda do que ele já é, o filme mais bonito de gênero desprezado a que pude assistir neste festival

Parvis (Benjamin Radijaipour): Sailor Moon, por justiça e por amor

“Sonhei que morríamos juntos”, diz o jovem Parvis a seu amor, Amon.

Você já ouviu alguém falar isto num filme? Ou mesmo sonhou isto? Eu não. Ou não me lembro.

“Sem Ressentimentos” (“No Hard Feelings”, ou “sem duros, pesados sentimentos”, no original, para que se entenda que o sexo é uma alusão direta presente na narrativa) diz esta e tantas outras coisas.

Transforma-se o filme num poema de despedida a cada frame inusual, raciocinado, mágico como o pensamento do iniciante diretor alemão Faraz Shariat, que sente ao imaginar o cinema, coisa em desuso franco.

Parvis, Banafshe (Banafshe Hourmazdi) e Amon (Eidin Jalali), em paraíso alemão

Um dos mais belos, senão o mais belo filme a que pude assistir entre as cabines virtuais concedidas gratuitamente a jornalistas cadastrados nesta 44 Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

A história do filme é em parte a dele, diretor alemão de origem iraniana, incerto sobre se sua origem determina o que é. Parvis (Benjamin Radijaipour), protagonista com tanto de seu, exerce a liberdade como adolescente o quanto possível. Seus pais, migrantes iranianos de três décadas, construíram uma vida sólida em pais alheio, ali gerindo um supermercado, mas agora querem voltar ao Irã teocrático, onde aguardam Parvis a humilhação e a perseguição. Ele tem uma irmã mais velha, de quase trinta anos, alemã também.

Quando companhia é solidão

Todos na família sabem que Parvis é gay, queer, com os gestos sinuosos, a excitação nos braços e no mover da cabeça pintada de loiro no alto. Todos o amam sabidos disso, reverentes a isso, enfim.

Sua espécie de orixá é a deusa Sailor Moon, que na animação japonesa, ele diz, representa a justiça e o amor. Numa festa sem ânimo, ele veste este cosplay para que ao fim, em plena pista de automóveis no alvorecer, bêbado, desfaça sua fantasia, em quase alusão ao personagem de Alberto Sordi em “I Vitelloni”, filme em que Fellini analisa as dores de uma adolescência prolongada.

O fato é que Parvis fala um persa estranho, que ninguém no Irã ou do Irã entende, algo (mais um) que o desobriga a se sentir ligado ao país. Um dia, contudo, após cometer uma contravenção, ele passa a cumprir serviços comunitários num abrigo da Cruz Vermelha para migrantes de sua origem. Precisa dar assistência aos temporários em busca de residência fixa na Alemanha, precisa brincar com as crianças, recolocar uma rede de futebol sem entender o que é futebol, até mesmo traduzir o apelo de uma iraniana por permanecer no país, mas incapaz de compreender o que ela diz.

Não compreende e não é compreendido igualmente por todos no abrigo, exceto por Banafshe (Banafshe Hourmazdi), irmã de Amon (Eidin Jalali), que pouco a pouco o levará a seu amor. Os iranianos temporários são em vasta maioria homofóbicos por formação e pela violência.

Tudo isto vai se passando com a bela leitura visual dos corpos, gestos e rostos movidos num espaço particularizado mas alongado, enquanto as coisas do mundo, e o mundo, se tornam paisagem secundária.

É um filme sobre adolescência. Que coisa tão comum, não?

Pois… não.

O diretor alemão Faraz Shariat:
“Sem Ressentimentos” é seu primeiro longa

A fotografia de Simon Vu é extremada, cores e luminosidade se alteram para dar nitidez, passo a passo, à caracterização dos belos personagens. Novamente, quase: é quase como assistir ao caminho de Fritz Lang por Hollywood, quando a inventividade na composição se renovava quadro a quadro com o objetivo de contar uma história policial.

É o que Shariat, de 29 anos, consegue aqui, narrar uma trama de gênero adolescente desprezado. Mas uma história que de banal, nada tem. 

Amor, esse algo que a fotografia de Simon Vu capta tão bem

SEM RESSENTIMENTOS

Dir.: Faraz Shariat

Alemanha

2020   

92 min.   

https://mostraplay.mostra.org/film/sem-ressentimentos/

Quixote e Sancho contra o imperador Ming

“Caminhando contra o Vento”, na competição Novos Diretores da Mostra Internacional, mostra uma China corrupta, incapaz de apontar um bom futuro para sua juventude

Trapaça que resulta em prisão, favorecida por um sistema que admite propinas

Se o impedimento a toda e qualquer liberdade de expressão estivesse em vigência na China, a produção deste filme dificilmente teria se dado. “Caminhando contra o vento”, o primeiro longa-metragem de Wei Shujun, é tudo menos o elogio a um horizonte de excelência para a juventude do país. Naturalmente, seu final se aproxima de conciliar as coisas, mas o que importa está no meio da narrativa. No desajuste constante, acelerado, implacável, que parece o único possível a dois estudantes de sonoplastia cinematográfica.

Meu reino por uma SUV

A faculdade de cinema chinesa de nada serve a nossos protagonistas quixotecos às avessas, que atuam como em uma dupla cômica, fadada a seguidos tropeços. O menino magro tem um nome, Kun Zuo, que o liga à palavra “universo”, aqui em desencontro. Kun (interpretado por You Zhou) tem uma namorada adequada ao sistema, mas o jovem se julga em condição de vencê-lo pela trapaça aberta, sem o mínimo cálculo dos riscos. Ele compra até mesmo uma SUV de filtro quebrado, e por este erro se enreda. Seu amigo gordo, A Ming (Wang Xiaomu), tem-lhe toda a fidelidade, jocosa e sem noção. E o sistema rodoviário chinês não é uma maravilha: seus fiscais são facilmente corrompidos, como aqui.

Wei Shujun, diretor de “Caminhando contra o vento”

É a faculdade deles, sendo paga, o maior roubo das expectativas dos seus pais. Os alunos não a querem, e só aprendem enquanto trabalham por si, mesmo que atabalhoadamente. Em meio ao trabalho, aprontam tolices como dirigir bêbados, quando isto na China dá suspensão imediata de carteira e detenção de dez dias, ou roubam provas para revendê-las aos alunos em exame.

Contudo, as trapalhadas expostas não transformam este filme em comédia – por vezes, infelizmente, nem mesmo em bom filme. O diretor Wei Shujun, de 29 anos, insiste nas ondas de fracasso da dupla sem um alívio dramático, sem narrativa coesa, sem um ritmo que possa satisfazer até mesmo o espectador benevolente. A fotografia funciona, os atores não são ruins e a música que eles ouvem nos fornece informação sobre a vida na China. Principalmente, é útil para um ocidental saber que driblar um sistema corrupto dá em nada em qualquer lugar.

Uma dupla que talvez apontasse para a ação cômica

CAMINHANDO CONTRA O VENTO 

Dir.: Wei Shujun 

China

2020   

130 min.   

https://mostraplay.mostra.org/film/caminhando-contra-o-vento/

Na Mongólia, o ouro que cava desertos

“As Veias do Mundo”, na seleção da Mostra Internacional, apresenta as contradições da resistência ao garimpo predador em um país que perdeu 300 lagos e 300 de seus rios

O resistente Erdene (Yalalt Namsrai) e seu filho Amra (Bat-Ireedui Batmunkh)

A mais ativa usina de ouro do mundo está situada na Mongólia, onde cerca de trezentos lagos e trezentos rios secaram por conta da mineração sem controle dos últimos anos. Neste país em que a densidade populacional é tão baixa, menos de dois habitantes por quilômetro quadrado, as esperanças são igualmente desérticas sobre o que vive, incluídos nesta última categoria, os seres humanos.

Um desejo resistente de conservar o que restou

Expulsos pela ação do garimpo, os mongóis se dirigem cada vez mais às áreas urbanas, especialmente à capital Ulan Bator, não só para sobreviver, mas também para realizar seus sonhos como artistas, às vezes expressos por ilusões globais como a franquia do programa de calouros “Mongolia’s got talent”. 

A venda de queijo no caminho para a escola

Assim é que Amra (interpretado por Bat-Ireedui Batmunkh), menino de 11 anos filho de um camponês resistente à cessão da terra aos especuladores, e cuja família vive do pastoreio na estepe, vendendo queijo nos arredores, é levado pelo próprio pai a se candidatar ao sucesso como cantor neste “As veias do mundo”. Um fato grave se interpõe a seu objetivo e ele de repente o menino estará mudado, experimentando precocemente o lado que o oprime. 

A mãe de Amra, Zaya (Enerel Tumen), e a filha Altaa (Algirchamin Baatarsuren) no pastoreio

O filme da diretora Byambasuren Davaa, nascida em Ulan Bator em 1971, esquematiza a desesperança. Seus planos de paisagem natural e humana são exuberantes, e os atores, especialmente os infantis, veem-se conduzidos de modo a intensificar o encanto da história. Tudo neles é expresso pelo rosto ardente e gentil, a dor, o riso, a determinação, a inocência e sua perda. Talvez as sequências fossem mais fortes se se demorassem um pouco em suas qualidades, mas esta cineasta é ágil para o corte, porque se move pelo princípio da ação.

A diretora de “As Veias do Mundo”, Byambasuren Davaa

“As Veias do Mundo” é a obra essencial desta artista que atuou como assistente de direção na televisão pública mongol e estudou na Escola de Cinema de Munique (HFF). Seu primeiro longa-metragem, “Camelos Também Choram” (2003), foi exibido na 28ª Mostra Internacional, indicado ao Oscar de melhor documentário daquele ano. A cineasta também dirigiu “The Cave of the Yellow Dog” (2005) e o documentário “The Two Horses of Genghis Khan” (2009).

Na revolta de Amra, a expressão da resistência

AS VEIAS DO MUNDO

Dir.: Byambasuren Davaa

Alemanha, Mongólia

2020   

96 min

https://mostraplay.mostra.org/film/as-veias-do-mundo/

Ser escritor na China, ou como transpor o mar

Em documentário na Mostra Internacional, Jia Zhangke ouve três escritores chineses sobre a arte no país a partir dos anos 1950

Jia Pingwa: “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”

Nadando até o mar se tornar azul é mais que um título de filme, antes um verso concreto, dito com alguma naturalidade pelo escritor Yu Hua ao final deste belo documentário de Jia Zhangke. O autor conta ao cineasta que realmente, em sua vida, nadou em um mar amarelo até que o enxergasse azul… 

Adepto de uma fotografia que traduz a reflexão do artista entrevistado, focalizando seu rosto enquanto todo o entorno parece borrar-se, o cineasta caminha com calma para desvendar esse tão bem falado horizonte chinês. Os depoimentos parecem ter sido muito desejados pelos depoentes. Há intensidade, risos e lágrimas em tudo o que dizem ao diretor.

A escritora Liang Hong: as emoções pesam

Existiria um modo melhor que usar a literatura das últimas décadas, desde aquela imediatamente posterior à revolução, nos anos 1950, para esclarecer esse horizonte? Talvez sim, mas talvez, igualmente, ninguém tenha pensado nisso antes de Jia Zhangke.

O cineasta vale-se tanto do depoimento intenso e bem-humorado de Hua como da memória do célebre autor morto Ma Feng e dos depoimentos de Jia Pingwa e da escritora Liang Hong, tão emotiva, para recompor a história do fazer literário no país. É como se, durante as conversas com o cineasta, os escritores nos ensinassem coisa demais sobre ser chinês. O valor da solidariedade. A intensidade de desejar a literatura, mesmo que ela lhe tenha sido vetada pelas circunstâncias do trabalho braçal. Tentar reescrever o final e o início de um belo livro cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural. Tornar-se escritor na China! O equivalente a transpor o mar.

Jia Zhangke: boa conversa e inusual fotografia para traduzir quem escreve

Ainda assim, não será tudo. Tornar-se um poeta estará longe de dar um salto verdadeiro na existência. “Escrever poesia não significa viver uma vida poética”, lembra-nos Jia Pingwa. E o que ele aconselha para que isto se dê? Ele não diz. Mas podemos ler um de seus versos. “Lance um olhar frio sobre o mundo”, escreve Jia Pingwa sobre as pedras. 

Tentar imaginar o final e o início de livros cujas páginas foram arrancadas pela revolução cultural tornou-se um exercício para Yu Hua

Nadando até o mar se tornar azul
Dir.: Jia Zhangke
China

112 minutos

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/nadando-ate-o-mar-se-tornar-azul/

Um lago onde os sonhos param

“Walden”, da diretora tcheca Bojena Horackova, presente na Mostra Internacional, revisita a burocracia distópia da Lituânia nos anos 1980 por meio do desenvolvimento de um amor adolescente

Uma dificuldade de entender o presente

Tanto a história não se destaca excessivamente neste filme que seu final é antecipado em inserções sobre a vida de um dos personagens, vindo da França para a Lituânia trinta anos depois. Parece interessar à cineasta tcheca Bojena Horackova que recuperemos junto a esse protagonista o que ele sentiu, a simplicidade vivida na adolescência, e entendamos por que ela ainda o atrai. “Walden” vai e vem na cronologia, incerto sobre se os dois protagonistas viveram um enlaçamento por amor ou pelo desejo de fugir do stalinismo.

A diretora tcheca Bojena Horackova

Adolescentes de Ensino Médio, Jana e Paulius se encontram pela primeira vez na pista de patins de Vilnia, na Lituânia dominada por burocratas nos anos 1980. Ele joga hóquei, ela nada na piscina. Ele é um outsider destituído de utopias que faz câmbio ilegal com alemães para adquirir os objetos de consumo que julga importantes, uma bicicleta e um carro, e ela, filha de médico, uma das primeiras da classe, começa a trilhar seu caminho. Paulius já escolheu que vai transigir, Jana acompanha-o com seus olhos grandes. Um dia entram num lago dentro da floresta, que o tio de Paulius apelidou de Walden, e pensam se esconder do mundo.

É uma trama nada intrincada. E faz desse “Walden”, que jamais cita diretamente a obra homônima de 1854, escrita por Henry David Thoreau em recusa à industrialização e à urbanização, uma gargalhada triste e distópica. A fotografia, que tem a participação de Agnès Godard, a fotógrafa de Wim Wenders, propõe algum brilho em meio à aridez que a juventude desse tempo precisa enfrentar. 

Fabienne Babe (Paulius) e Jana (Ina Marija Bartaité) em “Walden”: é amor ou desejo de fugir?

Walden

Dir.: Bojena Horackova

França, Lituânia

85 min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/walden/

O discreto charme da aristocracia do czar

“Malmkrog”, filme de quase quatro horas do romeno Cristi Puiu, presente na Mostra Internacional de Cinema, é um falar constante sobre deus, o diabo e o cristianismo na Rússia que logo irá perdê-los. Quem está em quarentena, gosta de filosofia, aprecia o sarcasmo e a atuação de bons atores enfrentará as longas horas com algum prazer.

Uma cena inicial de “Malmkrog” a evocar a geometria clássica da pintura

Este filme existe como se o russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) tivesse se unido ao espanhol Luis Buñuel (1900-1983) para comporem juntos uma obra de cunho filosófico com o objetivo elevado de cutucar deus, o diabo e o cristianismo. Seria um longa-metragem de fato, com quase quatro horas de duração, como este “Malmkrog”, em que os personagens discutiriam a quase seriedade de sua decadência de classe, entre a sala de estar e a de jantar, servidos por homens e mulheres a quem jamais cumprimentariam ou agradeceriam. E isto, evidentemente, não poderia dar-se em um ambiente excessivamente sério, daí a presença jocosa de um surrealista anticlerical (fantasma de Buñuel) para esquentar o argumento, às vezes com uma briga de criança e sua babá no fundo da cena, ou quem sabe tiros. 

O diretor de “Malmkrog”, o romeno Cristi Puiu

“Malmkrog” realiza-se assim, como uma atualização inventiva a ecoar a obra dos dois grandes diretores. O cineasta romeno Cristi Puiu, de 53 anos, é também, e obviamente pelo que se vê neste longa, um encenador dos palcos que estudou pintura e cinema. Seu filme, baseado em roteiro próprio para o livro “Três conversações”, do filósofo místico russo Vladimir Solovyov (1853-1900), é constituído por estranhos movimentos. Muitos dirão que não há movimento algum por três horas e vinte minutos de filme, mas isto será um exagero, é evidente.

Há movimento na geometria rígida e clássica dos enquadramentos. Os atores, muito bons, mexem-se com mínimos volteios entre as portas, colunas, mesa, cadeiras, poltronas. Em tomadas exteriores à distância, na neve, tornam-se pontos a caminhar. Suas expressões faciais se prolongam ou se congelam, ao bel-prazer do que suas palavras dizem, com sarcasmo, mormente. Sorrisos, um levantar de longas taças, um vestido que gira dali para cá, e o filme se faz.

Estamos na Rússia czarista e o que esta nobreza discute em francês (um proprietário de terras e seus amigos influentes) é se faz sentido ter paz. E o que é a paz. E a quem serve um mundo pacificado. A deus? Quem ele é? Pode ser bom por natureza ou apenas um pregador da bondade, que não convence ninguém sobre o íntimo de suas intenções. A guerra deve ser glorificada ou a não-violência é divina? Por que não somos todos europeus? A Europa, este continente também reivindicado pelos russos, seria um objetivo de todos os seres. Seria deus. Ou a cultura. E todos discutem sobre se a ressurreição será a prova dos nove para a religião cristã.

É um filme que nada nos facilita, e em que as palavras são jogadas em tal velocidade que podemos perdê-las ocasionalmente e ainda assim estaremos diante do cerne. De um mundo que vai findar-se, mas que ainda será discutido hipnoticamente, para que todos se convençam de sua seriedade e eternidade. 

Alguém por favor apresente Cristi Puiu à reunião do ministério de Bolsonaro vazada por Moro. Nós também chegamos a imaginar que seria a última.

Fantasmas da liberdade: a gente filósofa do czar e seus serviçais de pé

Malmkrog

Dir. Cristi Puiu 

Romênia, Sérvia, Suíça, Suécia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia do Norte

200 min

2020

https://mostraplay.mostra.org/film/malmkrog/