Eustáquio Neves, maestria ancestral

O fotógrafo mineiro Eustáquio Neves, presente na 35ª Bienal de São Paulo, sobrepõe imagens cotidianas às da tradição negra de modo a construir narrativas memoriais 

Sobre o rei, a Coca-Cola e a flor: a mescla de sagrado e profano no quilombo dos Arturos

Eustáquio Neves é um mestre da ancestralidade negra. Cada fotografia deste brasileiro representa um conjunto de memórias simbólicas sobrepostas em negativos. Aos 68 anos, o artista aporta pela primeira vez na Bienal de São Paulo com cinco imagens de duas séries elaboradas a partir dos anos 1990 nos quilombos Arturos e Ausente. “Construo pensando no cinema, acumulando narrativas”, ele conta diante do prédio da Fundação Bienal, numa tarde abafada de setembro, dizendo-se mais afeiçoado à luz lateral do pintor Diego Velázquez e às paisagens dos cineastas Wim Wenders e Andrei Tarkovski do que à obra dos grandes fotógrafos.

De porte elegante, vestido com uma camisa Versace estampada em branco, ele não desfaz, contudo, dos mestres. “Os fotógrafos europeus não eram minha escola. Admiro o Henri Cartier-Bresson, mas eu usava uma 28mm”, diz sobre sua lente de predileção, apta a capturar detalhes, enquanto o francês, com a 50mm, buscava rapidamente cenas de rua. “Além disso, eu fazia todos os recortes possíveis na foto, enquanto ele era cartesiano com a imagem. Até me inspirava no cara, mas fazia tudo ao contrário dele”. 

Nascido em Juatuba, a oeste de Belo Horizonte, o artista aprendeu a exercer a criação livre, como fazem as crianças. E, quando menino, era determinado à moda de gente que cresceu. Filho de Tereza, dona de casa e trabalhadora de uma família estruturada, ele se recusou, com 7 anos, a conhecer o pai que o abandonara. “Me vestiram com o terninho branco de festa e disseram que meu pai estava na cidade: ‘Quer conhecer ele?’ E eu respondi: ‘Não!’ Ganhei um docinho, meu pai ficou me olhando de longe e não o encontrei nunca mais.”

Determinação nunca lhe faltou. Mesmo desejoso pelas artes, o jovem que desenhava tão bem, e que nunca parou de fazê-lo, cursou Química na faculdade. “Não tive a fotografia como projeto desde o início. Pensava em teatro, até em cinema, mas fui estudar violão clássico por dois anos enquanto cursava a graduação. Eu queria muito ser químico.” Nos anos 1980, formado, estagiou no Ministério da Agricultura, elaborando testes de insumos. Depois de seis meses, como só lhe pagavam a passagem, teve de repensar. Fez exame para Belas Artes e não passou, o que o levou a trabalhar no interior de Goiás, como químico. Não se apaixonou pela indústria impessoal do grupo Votorantim e investiu na curiosidade pela fotografia. Comprou uma câmera Yashica FXD Quartz que virou caderno de notas: “Fotografar era como fazer anotações sobre meu percurso.” Mapeava a fauna, a flora e a indústria de Niquelândia (onde o níquel era abundante), e revelava o filme colorido em Goiânia. 

Uma de suas fotopinturas: o talento para desenhar o precede

“Tirava fotos no tempo vago e as pessoas me descobriam. Nesse momento eu já tinha mais uma câmera, a Minolta. Os colegas compravam minhas fotos de paisagem para usá-las como cartões postais.” Um mercado se abriu. Ele clicava os casamentos dos amigos, seus filhos recém-nascidos e até os “recém-mortos” do lugarejo, onde havia a tradição de fotografar os falecidos. Demitiu-se e montou estúdio na cidade. Assim que sentiu ter evoluído, partiu para Belo Horizonte, em 1986. Submeteu três fotos de Ouro Preto em concurso, recebeu menção honrosa por duas delas e a terceira foi a vencedora (seria contra o regulamento levar sozinho os três primeiros lugares). O prêmio foi cursar aperfeiçoamento com Eduardo Castanho, que viu nas suas imagens, “fotos de autor”. 

Eustáquio Neves sabia o que queria desde 1982, quando uma exposição do artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) no Museu da Pampulha, em Belo Horizonte, o impactara pela sobreposição dos elementos. “Minha organização é outra, sabe? Eu preciso tropeçar em um troço meu que está ali no chão para lembrar o que tenho de fazer. O Bispo tinha essa ordenação nas coisas que eu também pratico, embora mentalmente. Ele me libertou para a fotografia que eu faço hoje.” O fotógrafo informou à esposa, a pesquisadora Lilian Oliveira, que seus dias juntos seriam financeiramente difíceis a partir dali, porque ele se entregaria às sobreposições. Mas tirou tudo de letra: “Não olho para trás, não vejo sofrimento. Minha carreira é tão prazerosa, faço o que preciso fazer.”

A rainha, personagem central entre os Arturos, comunidade que Eustáquio fotografou entre 1993 e 1997

No início dos anos 1990, conheceu o quilombo dos Arturos, em Domingos Pereira, Minas Gerais. Descendentes de Arturo Camilio, filho de escravizados falecido em 1956, os Arturos dão continuidade às práticas culturais da comunidade, entre elas as festas religiosas. Após diversas visitas, Neves fotografou integrantes e seus instrumentos, compondo doze imagens para a série, entre 1993 e 1997. Na sua imagem do rei da comunidade, Neves justapõe renda e moeda colonial no topo da foto com garrafa de vidro de Coca-Cola e flor à direita. Tais inserções simbólicas mesclam o sagrado e o profano no cotidiano, algo que ele experimentara por breves momentos na família católica. “Junto com a minha ferramenta fotográfica, os Arturos me levaram a falar das fronteiras cotidianas que uma pessoa negra vive no Brasil.”

A música, elemento central dos festejos no quilombo dos Arturos

Na sua família, a mãe era o mundo. Dona Tereza sonhava com a casa própria onde pudessem morar, mas nunca havia trabalhado no mercado formal, que talvez lhe possibilitasse a aquisição de um imóvel. A situação financeira de todos ao seu redor, contudo, parecia melhor. Os vizinhos com quem Eustáquio brincava e trocava porrada eram os filhos dos fazendeiros, mas ele não se dava conta de sua riqueza. Só adulto descobriu que um desses moleques vinha da família do rei do frango, que fornecia alimento para o Ceasa. “Quando minha mãe foi para Belo Horizonte, encontrou um menino da vizinhança crescido, dono de uma empresa de engenharia. Ele a empregou por lá, mas, como a empresa iria fechar, sugeriu-lhe trabalho em uma Cobal. Depois de um ano fazendo cestas básicas, minha mãe já tinha um cargo de chefia e conseguiu comprar um apartamento.”

“Última comunhão”, um retrato
de fé substituída

O candomblé não entrava em sua casa. Dona Tereza era católica e pôs o filho para fazer a primeira comunhão. Recentemente Eustáquio trabalhou sobre o retrato desse importante dia de fé e intitulou o resultado “Última Comunhão”. Na imagem original, o menino traz a vela e o livrinho tradicionais. Mas agora, por meio de sua arte de sobreposições, esses elementos se viram acrescidos de uma espada de São Jorge e um skate, além das coisas que ele enxergou cabíveis à criança de 7 anos que foi, comungando pela primeira vez.

Trabalhar sobre os retratos familiares é seu modo de reencenar a história, e também de questionar a invisibilidade de seus personagens. O sofrimento do homem preto, dentro de uma sociedade na qual o racismo é estrutural, não tem fim. E Eustáquio o encena por meio das máscaras que vai revelando. Um dia, pegou uma foto da mãe aos 18 anos. Ela havia saído da cidade natal, Pará de Minas, para ser fotografada em um estúdio de Belo Horizonte. E no retrato que compôs, ele sublinhou as marcas de seu sofrimento.  

A ausência, presente no retrato reelaborado de sua mãe, Dona Tereza, aos 18 anos

“Trabalho com quem está no meu entorno. Em Diamantina, onde minha mulher nasceu e hoje moro, conheci o Crispim, o Comendador do quilombo Ausente.” Eustáquio foi até ele em 1996. E sofreu para chegar, talvez porque um quilombo seja exatamente isto, um lugar preservado, de alcance difícil, proposital. “A gente foi com uma senhora e duas mocinhas até duas cidadezinhas próximas. Dormimos em uma pousada. E no dia seguinte esperamos ser orientados pela mata. O interessante é que, enquanto caminhávamos, reconhecíamos a figura do mineiro. Perguntávamos a quem nos orientava quando enfim chegaríamos, e a resposta era a mesma sempre: ‘Vinte minutos.’ Mas esses vinte minutos significavam horas andando com caixas onde iam a bagagem, os mantimentos, as roupas e o equipamento fotográfico.”

No díptico produzido a partir de imagens obtidas no quilombo Ausente, em 1996, a figura emblemática de Crispim e sua espada

Quando enfim chegaram, Eustáquio deparou com Crispim, o Embaixador dentro das celebrações de Nossa Senhora do Rosário. “E o que significa o Embaixador nesse cortejo da Nossa Senhora? O Embaixador sai à frente do cortejo com uma espada”, explica. “Fiz a imagem dele em um díptico. Cada dia é uma representação. Com a espada, ele incorpora o Embaixador. Crispim saía na frente do cortejo muito bem vestido, com sua coroa. Limpava o caminho com aquela espada para a Santa vir. E a outra função dele era a de Comendador. Quando morre uma pessoa na comunidade, é preciso que esse integrante mais velho, detentor de certos saberes, como o dos cantos para a morte, entoe-os para fazer a passagem do morto para o outro plano.”

Uma particularidade no seu jogo de imagens sobrepostas, também aplicado a Crispim, é que elas não devem ser necessariamente visíveis. “Para construir uma ideia, às vezes sobreponho dez negativos, mas só eu sei onde estão esses dez na imagem. Ninguém mais precisa saber. Só sentir”, diz ele, ainda hoje a utilizar a fotografia analógica. “No caso do Crispim, um díptico mostra a casa, uma forma de habitação que não é mais essa, substituída por alvenaria. Fiz este ensaio a pedido de uma revista inglesa, a C Magazine, parecida com um livro, de tão grossa (a editora, Helena Uchoa, não a chama de livro, quer que seja uma revista, mesmo…). E a coincidência que eu observo nessas horas é que um tempo depois de fazer meu trabalho para eles, vejo que a revista publica, na mesma edição, um ensaio do diretor Wim Wenders, cuja fotografia sempre me inspirou bastante.”

No seu processo muito particular de sobreposições, é inevitável evocar a revivescência de uma outra escola fotográfica, a pictorialista, que entre o final do século XIX e o início do século XX buscava dar às imagens a atmosfera impressionista da pintura. As fotografias de Eustáquio parecem citar de modo sofisticado essa ambientação, embora ele não a procure. A rigor, nem mesmo a fotografia o orienta. Depois que julgou ter entendido seus mecanismos, ela não lhe pareceu tão motivadora assim, “uma coisa meio sem graça”, até. O que este eterno apaixonado pelo desenho faz ainda não tem nome, embora esbanje sina, um tanto de ciência, tradição e beleza.

“Retrato”, marca do desenho jamais abandonado de Eustáquio Neves
O artista na rampa do prédio da Bienal em um setembro quente, vestido com a camisa estampada em branco da Versace

Casa arrumada

O presidente da Fundação Bienal comemora legado e se emociona ao falar sobre a morte do artista indígena Jaider Esbell, estrela da edição anterior do evento, também sob sua direção

José Olympio da Veiga Pereira, neto do livreiro carioca José Olympio, banqueiro, colecionador de arte e presidente da Fundação Bienal de São Paulo até dezembro de 2023, em foto de Giovanna Querido

Foi um desses episódios que eu nem imaginaria presenciar, que dizer de provocar, como acabei fazendo…

Durante a pré-abertura da 35ª Bienal de São Paulo, minha editora na revista Robb Report, Gisele Vitória, sugeriu que entrevistássemos o presidente da Fundação Bienal, que se encontrava algo disponível diante das rampas do prédio. Fomos até lá, então, para conversar sobre o evento que ele, na coletiva anterior, dissera considerar histórico. A entrevista andava quando decidi lhe perguntar algo que muito me intrigava: como havia encarado a morte do artista indígena Jaider Esbell, em plena bienal anterior, que ele também dirigia? Insisti para que me falasse de sua relação com o artista e me surpreendi ao ver seus olhos se encherem de lágrimas ao mencionar a convivência com ele. Trata-se de um banqueiro, mas também de um colecionador de arte, neto daquele José Olympio que fundou a editora de mesmo nome, no Rio. Isto talvez lhe tenha proporcionado uma sensibilidade que não parece caber no terno e gravata dos que tanto possuem, sem o dividir.

O artista Jaider Esbell, em registro fotográfico da Agência Ophelia/Itaú Cultural

Colecionador de arte contemporânea brasileira e presidente do J. Safra Investment Bank, José Olympio da Veiga Pereira deixa a presidência da Fundação Bienal de São Paulo em dezembro, após o segundo mandato. Nascido em 1962, ele foi batizado em homenagem ao avô, o livreiro carioca fundador da editora José Olympio, atualmente integrada ao Grupo Editorial Record. Seu pai, Geraldo Jordão Pereira, fundou as editoras Salamandra e Sextante hoje administradas por seus irmãos, Marcos e Tomás Pereira.

Abaixo, em entrevista concedida na pré-abertura do evento, em 4 de setembro, Veiga Pereira se emocionou quando lhe perguntei sobre a morte em 2021 do artista indígena Jaider Esbell, estrela da 34ª edição. De olhos marejados e voz embargada, o banqueiro disse ter prezado demais a convivência com este artista de elevada auto-estima, que não mostrava qualquer reverência às instâncias do poder branco. “Eu estou sempre com ele”, disse o presidente.

Por que esta é uma bienal histórica?

Porque parte de um movimento radical e altamente arriscado, que foi a escolha desse grupo curatorial né? Pedimos propostas, recebemos… O grupo se formou a partir das propostas que a gente pediu. Apresentou-se como um grupo, mas como os curadores mesmo disseram, eram quatro pessoas que nunca tinham trabalhado juntas, que não se conheciam. Apostar que isso iria dar certo, eu acho que foi o primeiro movimento, digamos radical. Claro que em última instância, embora a diretoria tivesse participado disto, a responsabilidade é minha como presidente. Fico muito feliz que isso tenha dado tão certo, porque, embora sendo profissionais de confiança, juntar quatro deles sem liderança, sem chefe, num grupo horizontal, e fazer com que esse trabalho resultasse em uma bienal tão especial, foi realmente uma grande realização.

A ideia de não haver um chefe partiu de quem?

Deles. Então demos um crédito de confiança a essa proposta e esse grupo enorme, enorme. Ao longo do percurso tive frios na barriga, como é normal, mas hoje estou comemorando que tudo tenha saído tão bem. É uma bienal histórica por ter um aspecto de inclusão e de dar oportunidade a um número grande de artistas que nunca sonharam em estar numa bienal de São Paulo, tanto no Brasil, quanto no exterior. 

Ela também cumpre o papel, que é sempre da bienal, de resgatar artistas históricos não tão divulgados ou conhecidos, como o Heitor dos Prazeres ou a Carmézia Emiliano, cuja produção fantástica nunca tinha sido mostrada numa bienal. A meu ver esta é uma bienal que suscita questões, mais perguntas do que apresenta respostas. Vale ser visitada várias vezes. É importante que se diga, em nosso time do educativo há mediadores para auxiliar o espectador a entrar no espírito da Bienal, para se relacionar com as obras.

O sr. mencionou a dificuldade particular em ser a última palavra em questões complicadas. Uma questão complicada pode ter sido o fechamento do vão. Seria uma maneira de romper um pouco o entendimento modernista do projeto original?

Desde o projeto original de expografia eu o achei muito interessante, por subverter o trajeto normal do percurso. Mas ao mesmo tempo ele transforma as curvas lineares em volumes de curvas, e as curvas estão presentes na expografia inteira. Se você olhar todas as salas se apresentam em sístole, diástole, elas estão no andar pra fora e no outro andar pra dentro, mas também acompanham todas as curvas. Então, toda a organicidade da arquitetura do Oscar Niemeyer, a meu ver, está exacerbada com essa intervenção que foi feita no prédio.

Não houve dificuldades de ordens funcionais para executar isso. Trata-se de uma intervenção temporária no prédio, e cada edição da bienal apresenta a sua. Em algumas as janelas são fechadas, as salas são colocadas contra as janelas, você não vê os vidros.

A expografia atual ficou muito interessante, instigante, esses volumes que nós estamos vendo aqui no vão deixou tudo lindo, o que casa muito bem com o resto, com a arquitetura das salas. Existe uma complementaridade, uma valorização da ideia modernista, uma exacerbação, porque se você olhar esses volumes, eles ficaram muito poderosos, essas curvas todas com esses volumes e com a rampa ao fundo. Ficou linda a conversa dos volumes com as rampas. 

Como avalia o seu legado como presidente da Bienal?

Olha, eu termino o meu segundo mandato com forte sensação de dever cumprido. Estamos realizando uma segunda bienal, enfrentamos uma pandemia, realizamos uma bienal espetacular, a 34ª, ainda num contexto de pandemia. Tomamos o risco de fazer uma coisa muito diferente na 35ª que deu certo, então é sempre uma coisa maravilhosa tomar risco, e o risco valer ter valido a pena.

Do ponto de vista institucional a Bienal está muito, muito bem. Do ponto de vista financeiro, do ponto de vista de sua equipe de gestão, da equipe de gestão do dia a dia, da Superintendência Geral, das equipes de produção, de comunicação, temos gente da melhor categoria trabalhando. Então, fico muito feliz de entregar ao meu sucessor uma Fundação Bienal de São Paulo absolutamente arrumada.

Especialmente eu fico pensando que o sr. teve de superar algo ocorrido durante a bienal anterior, que foi o suicídio do artista indígena Jaider Esbell. Gostaria de saber como conseguiu realizar seu trabalho após esse episódio tão difícil.

Olha, o suicídio do Jaider foi uma coisa… muito difícil pra mim, entendeu? Era uma pessoa com quem eu estabelecia uma relação pessoal e perdê-lo foi uma dor imensa que eu sinto até hoje. Então, enfim, mas a gente tem de tocar a vida. Mas não foi nada, nada fácil. Eu estou sempre com ele. E feliz de ver que aquilo que ele começou, a bienal dos indígenas, como ele chamava a 34ª, e toda a importância que a arte indígena contemporânea tomou a partir dele tenham sobrevivido. Acho que de onde ele estiver vai estar muito feliz com o que está acontecendo, o Denilson Baniwa e o grupo Mahku tão bem representados nesta edição, e o legado dele estar tão presente, o ativismo e a questão indígena colocados através da arte.

O sr. conversava muito com ele?

Eu tive muito contato com ele.

E alguma coisa que ele tenha dito lhe marcou especialmente?

O Jaider era uma pessoa extraordinária, porque ele era de uma coragem, apesar de ser um indígena, apesar de ser… Ele não tinha nenhuma intimidação com qualquer fonte do poder, ele conversava assim de igual pra igual, fazia críticas, colocava questões e eu achava aquilo lindo, entendeu? Porque ele se colocava de uma forma como deve ser, como tem de ser, mas que infelizmente nem sempre é. Mas o Jaider tinha essa autoestima, esse  senso de missão maravilhoso.

Que trabalhos da bienal o sr. aconselharia o espectador a ver nesta bienal?

Citaria o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes do boliviano Melchor María Mercado, feito no século XIX e exibido pela primeira vez fora de seu país. 

Acima, obras do século XIX contidas no “Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes”, de Melchor María Mercado, exibidas pela primeira vez fora da Bolívia

A bienal histórica

Com 121 artistas, a 35ª edição do evento celebra a imaginação radical, especialmente assinalada nas obras afroindígenas

“Peixe”, grafite, acrílica e pigmento natural sobre tela, da série “Mangue”, de Rosana Paulino, 2023

As portas da 35ª Bienal de São Paulo abriram em setembro para um mundo raramente visto, em especial para um Brasil múltiplo, expandido no tempo e vibrante em suas manifestações artísticas. O presidente da Fundação Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira, classifica-a como “histórica”. Intitulada “Coreografias do Impossível”, em cartaz até 10 de dezembro, ela busca as origens da arte, acrescidas das conquistas do tempo.

Tais “coreografias” vêm representadas por 95 artistas e 26 duos ou coletivos, a maioria da América do Sul. Mais de 50% são negros e 12,4%,  indígenas. As mulheres formam 47%, 2,5% delas, mulheres trans. Uma quase impossibilidade foi a presença inédita do quarteto de curadores, que jamais trabalhara junto e atuou sem hierarquias internas. A escritora Diane Lima e o antropólogo Hélio Menezes vieram da Bahia. Grada Kilomba, artista e escritora, é portuguesa, e o antropólogo Manuel Borja-Villel, pesquisador espanhol. 

Os quatro desenvolveram a ideia de “coreografar o possível dentro do impossível”, que resultou em um convite às imaginações radicais para mergulhar no desconhecido. O termo coreografia, segundo eles, realça o desenho de movimentos que atravessam o tempo e o espaço, criando novas formas e imagens. Interessaram aos curadores ritmos, estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos que os saberes extradisciplinares transformam em exercícios poéticos.

A expografia, desenho segundo o qual a exposição vem apresentada, resultou em mais um desafio nessa direção. No pavilhão Ciccillo Matarazzo, ao subir a rampa para o mezanino, o espectador nota os vãos entre os vários pavimentos fechados por superfícies curvas. Em idêntica cor branca do prédio, eles seguem a sinuosidade dos guarda-corpos modernistas. Para o escritório de arquitetura Vão, responsável pela mudança temporária, tratou-se apenas de manipular o desenho de Oscar Niemeyer já existente. Mas, com a modificação, a maneira de percorrer a bienal mudou. Do primeiro pavimento, o público segue para o último andar, e então volta ao segundo. A descida ocorre pela rampa externa, e nessas idas e vindas o espectador pratica a própria coreografia.

O contraste entre a racionalidade modernista do prédio e as novas estruturas de tempo e espaço propostas pelo grupo curatorial talvez não passe despercebido ao espectador. “O projeto do Vão me parece dialogar contra e a favor da ideia modernista”, acredita o curador Hélio Menezes. “Este prédio consiste basicamente de três avenidas, uma em cima da outra, quilômetros que se percorrem horizontalmente, do início ao fim. Com a perspectiva mudada, trabalha-se contra a ideia inicial, mas também a favor, já que se acrescenta a circularidade à linearidade e é possível percorrer o mesmo lugar de forma inesperada.”

O curador vê como extraordinário o fato de a Bienal de São Paulo diferir de suas irmãs no mundo. “Além de gratuita, ela tem grande apelo popular, o que muda bastante o trabalho curatorial, pois nos dirigimos a todos os públicos, não a um nicho especializado. Esperamos que os visitantes se abram a aprender coisas novas. Contudo, mesmo se portarem ideias preconcebidas, que aceitem rever suas posições e se sensibilizem para novas vivências.”

As obras indígenas deslumbram, especialmente quando se sabe que o dinheiro obtido com a venda desses trabalhos serve para comprar mata virgem e protegê-la do desmatamento. Destaca-se o Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin), fundado há dez anos como um coletivo baseado na Terra Indígena Kaxinawá (Huni Kuin) do rio Jordão, no Acre. Seu início remonta o final da década de 2000, quando lideranças Huni Kuin, especialmente Ibã e três de seus filhos, Acelino, Bane e Maná, começaram a realizar oficinas para registrar em desenhos os cantos, mitos e práticas de seu povo. 

Muitas obras do Mahku são traduções visuais dos cantos huni meka, conhecimento tradicional que acompanha os rituais de nixi pae com a ayahuasca – uma espécie de chá com potencial alucinógeno preparado com plantas amazônicas e utilizado há séculos na América do Sul. As experiências visuais provocadas pela bebida, denominadas mirações, fornecem matéria-prima para os trabalhos. As pinturas e os desenhos também figuram narrativas míticas e histórias ancestrais sobre o surgimento do mundo e a divisão entre as espécies.

A aparição de mãe Stella de Oxóssi na instalação “Floresta de Infinitos”, dos artistas Ayrson Heráclito e Tiganá Santana

São várias as obras nesta bienal a evocar encantamentos afroindígenas. É o caso da instalação “Floresta de Infinitos”, que o artista plástico Ayrson Heráclito, integrante do pavilhão brasileiro vencedor do Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, idealizou junto ao músico e historiador Tiganá Santana, autor de “Maçalê”, o primeiro álbum a conter, em 2009, canções em línguas africanas no Brasil. Os dois celebram as forças da natureza em uma sala com projeções de imagens múltiplas, sonorizada e decorada por bambus de reflorestamento. As imagens de ancestrais originários, de mãe Stella de Oxóssi e dos ativistas Chico Mendes, Bruno Pereira e Dom Philips surgem entre as evocações de rios, pássaros, folhas, flores, insetos, biomas extintos.

“A gente brinca com a ideia de abismo, de mistério, de aparições”, conta Santana, que compõe, canta e arranja a trilha da incursão. “Aparecem seres biomórficos ou antropomórficos, pessoas que mantinham conexão com a religiosidade afrobrasileira ou indígena. Algumas dessas aparições são sons da natureza, com minha voz a evocar inquices [divindades], atabaques a compor as forças protetoras e o som de instrumentistas como a clarinetista e saxofonista Joana Queiroz.” Enquanto o público passeia, os sensores acionam as aparições. “Se você permanece no local na hora em que ela surge, irá vê-la. Aparição é aparecer para quem aparece.”

Que a 35ª Bienal de São Paulo nos mostre o trabalho resplandecente da veterana brasileira Rosana Paulino, doutora em artes visuais especializada em gravura pelo London Print Studio, já terá funcionado como um grande presente. Sua série “Mulheres-Mangue”, trípticos em acrílica sobre tela aos quais dedicou os últimos cinco anos, ensejam firme defesa da natureza esmagada, defendida, contudo, pelas comunidades locais em luta por seu santuário enraizado. O trabalho é coerente com a formação da artista. Durante a infância paulistana em Pirituba, sua mãe, que bordava à noite, ensinava-lhe e às três irmãs a revolver a terra, cavar buracos e enchê-los com água do rio Tietê. A plasticidade desse material permitia-lhes construir os únicos brinquedos que poderiam ter, pequenas esculturas de tartarugas, boizinhos, mesas, cadeiras, bonecos, cenários. A terra é a matéria desta artista desde sempre. E, por toda a sua obra, ela dá centralidade à mulher negra, sem a hipersexualização de que é vítima na sociedade brasileira.


“Nahene Wakame”, acrílica sobre tela de Acelino Sales Tuin, do coletivo Mahku, 2022