Um sol invencível


O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas. Aqui, a entrevista que fiz com ele em dezembro de 2022, a pedido da revista Robb Report.

Walter Firmo, fotografado por mim
com as cores de sua alegria, em um restaurante do centro paulistano

POR ROSANE PAVAM

Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelas intangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.


Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em “No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito”, a melhor exposição fotográfica a ter início em 2022.

Pixinguinha em plenitude,
na foto de 1967


Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1o de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino. Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter.

Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.

Na festa de São Benedito,
Espírito Santo, 1989


Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?” Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim.

Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia
lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete. Daí para o cabelo black power, de
protesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a “Life” na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista “O Cruzeiro”, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos,
que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.

O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares


Em “O Cruzeiro”, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal “Última Hora”, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como “Realidade”, “Manchete”, “Veja” e “IstoÉ”, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares. Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens “100 Dias na Amazônia de Ninguém”, que pautou, escreveu e fotografou para o “Jornal do Brasil”, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”

Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980

Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista “Manchete”. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.

Integrante da festa de São João,
em Cachoeira, no Recôncavo
Baiano, em 1975

De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser duro como foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!” João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado. Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.

A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001

Uma foto é uma foto

Uma foto é o retrato de um momento, isto parece certo.
Mas um momento de quem?
Da realidade ou de quem fotografa?
Fotografia, escrita da luz em grego.
Isto quer dizer que existe um “escritor” por trás.
E a imagem não é, nem precisa ser, o retrato da realidade como ela foi.
Trata-se de um instante para o qual o fotógrafo determina tudo.
Ângulo, desenho, movimento, expressão, intenção.
Simples e pura capacidade de ver.
A imagem é fruto de sua decisão momentânea, de sua cultura, de seu modo rápido de perceber as coisas.
Sim, o fotógrafo é um autor.
Quando vcs analisam a foto de Richarlison abraçando calorosamente um Neymar imóvel, sabem mesmo o que está acontecendo enquanto a imagem se dá?
Se se trata do momento da comemoração do gol, significa necessariamente que Richarlison foi caloroso e Neymar, não?
Me lembro de prestar atenção quando Richarlison faz o voleio para a bola entrar no gol, a partir da imagem do drone. Vi o menino Sonega se mexer, dando um primeiro passo para a corrida até o gol, uma vez que contribuiu para que ele acontecesse. Mas não sei se correu de fato, porque o filme não continua a partir desse ponto.
Então, a foto, que aliás Richarlison postou no seu Instagram, sob a legenda “Ídolo”, com o comentário de emoticons e corações de Neymar, pode querer dizer apenas que Sonega estivesse já dolorido e Richie tenha ido até ele, para acolhê-lo. Pode querer dizer que Richie, como a gente espera, foi um ser humano incrível, abraçando seu ídolo num ato de compaixão, surpreendendo-o na sua dor, razão pela qual Sonega se mantém imóvel.
Sim, porque moeram o tornozelo de Sonega realmente, certo? E eu nem sei como, depois disso, ele ainda permaneceu de pé.
Interpretações são ótimas, principalmente quando acompanhadas de contexto. Porque, sim, uma foto não substitui mil palavras. Porque, como dizia Millôr, tente substituir essa frase por uma foto.
Foto é foto, palavra é palavra.
Vamos usá-las sabiamente.
Aguardo informações.

Tenho fome de quê? Ou por que amo a fotografia de rua

Fiz esta foto hoje de manhã por trás da vidraça de um café na praça Dom José Gaspar, no centro de São Paulo, onde moro.

Eu contemplava a estátua de Dante Alighieri à distância quando o sem-teto se aproximou do lixo, para vasculhá-lo, em sua fome.

Coloquei-o no enquadramento apenas porque fazia sentido a presença desse personagem forte, a expressar a miséria brasileira, diante da representação do escritor que nos relatou a perambulação da alma humana pelas profundezas, pela culpa.

Mas só depois de fotografar e de publicar a imagem no Instagram, sob a legenda “Dante vê”, fui capaz de entender (sempre em parte) o que fotografei.

Ao rever a foto horas depois de tirá-la, enxerguei nessas espadas de são jorge em primeiro plano as chamas do inferno.

Alguém olha desde o inferno para este ser!

Quem?

Talvez todos saibamos. Talvez todos tenhamos contribuído para que nosso semelhante chegasse a esse lugar.

O mais interessante para mim, contudo, não é exatamente essa constatação.

A foto me diz mais.

Ela fala de mim, igualmente, sob outra perspectiva.

Fala de minha procura, feita à luz do dia, diante do mundo e da minha consciência.

Eu estou do lado de lá, como num sonho.

Sou eu o miserável que procura saciar a fome, à semelhança elegante do meu personagem sem-teto.

Mas que fome é a minha?

O que procuro entre os vestígios deixados por outros seres humanos?

E que inferno me localiza, me observa?

É incomparável o que a gente encontra depois de olhar o que fotografamos.

As escolhas de composição e enquadramento, fazemos por instinto, num instante.

Mas esse instinto que formata a imagem, na verdade, nasce antes, de um acúmulo.

De uma meditação contínua sobre o que somos, da confusão imagética e de conhecimentos que assimilamos pela vida.

Amo a fotografia de rua porque ela me permite acessar esse inconsciente, com aparente racionalidade, num segundo.

Ela me faz pensar.

Me faz ser.

Tenho fome de quê?

Fechei o livro

Me ponho a ler o texto de um desses curadores/historiadores da arte que gostam de meter seu pitaco sobre fotografia.

A certa altura, o pensador diz que no trabalho de determinada fotógrafa “não se percebia nenhum cacoete da fotografia direta, por exemplo, ainda muito valorizada naquele período”.

Chego a ter pena.

Fotografia direta, “cacoete”?

“Ainda muito valorizada”?

Talvez esses críticos/historiadores/curadores não passem mesmo de avaliadores de mercado.

Fechei o livro.

As cópias imperfeitas

No primeiro passeio ao ar livre, pela praça 14 Bis, em São Paulo, eu tinha quatro meses. Curti? Não sei. Talvez tivesse sono. Talvez desconfiasse…

As fotos foram feitas por Walter Pavam, meu pai, reveladas e ampliadas em formato pequenino no banheiro de nosso apê alugado de um quarto no Bixiga. Nunca vi estas imagens coladas nos álbuns, estes que ele compunha como se diagramasse livros.

Esperava o foco perfeito da sua Flexaret, o enquadramento ideal, o sorriso de seu personagem ou a surpresa. E estas imagens não resultaram no que pretendia exatamente. Mas, como prezava a fotografia como entidade, não jogava nada fora, nem seus erros.

As duas imagens estavam localizadas em uma das pastas nas quais ele acumulava suas frustrações, as cópias imperfeitas, fosse pela foto em si, fosse pela ampliação malsucedida.

A primeira imagem não tem meu sorriso, e talvez ele estivesse insatisfeito com a composição. A segunda, compôs como queria, com essa diagonal rumo ao infinito, meu sorriso e o esplendor da praça ao fundo. Mas o fundo, justamente, parecia estourado e indefinido.

Então guardou tudo. Para usar depois? Era muito comum que ele desse cópias aos parentes, amigos presentes nas fotos. Muita gente que conheci só teve imagens de infância porque meu pai lhe deu. Uma grande generosidade da parte dele, porque levava a sério a infância. Mas o papel fotográfico era caro, suado para ele, que o usava também profissionalmente, para ampliar seu horizonte na pintura.

De todo modo, estas são tentativas muito bonitas da forma como foram feitas. O tempo as valorizou. Ou ganharam imenso valor pra mim.

Obrigada, menino velho, por tudo e em tudo que me fez.

A emoção terrena

É bem verdade que não se faz mais jornalismo sem fotos com drone. Nas manifestações, só eles comprovam a multidão de verdade, coisa que antes se obtinha a uma distância pouco cósmica, posicionando-se à janela alta de um prédio próximo.

Os drones espaciais nos deixaram saber, ontem, que muitos e muitos seres humanos, como num imenso formigueiro de paz, recuperaram, para uso justo, a bandeira do Brasil.

Mas minha alegria veio de verdade quando as fotos foram pouco cartográficas. As imagens dadas no corpo a corpo, em terra, como essas que vocês fizeram, mostraram os homens no teatro da vida, os tipos simples, fantásticos, com suas cabeças de pássaro, os cocares guajajara, os ternos brancos da malandragem, as camisetas com opções políticas, às vezes filosóficas, os cartazes de mão. As crianças estavam na escola, que pena, não puderam estar lá!

Foram essas as fotos que me deram a perspectiva humana dos arredores, de quem esteve no largo mas nem pôde ver a cerimônia de perto, fotos de quem se misturou e festejou a democracia do seu jeito, naquele espaço onde quatro anos atrás reinaram as serpentes janaínas que interromperam um sonho de nação.

Obrigada a quem esteve no mesmo lugar ontem com renovados propósitos e nos colocou lá dentro (nós, os distantes) para celebrar a seu lado!

cafonice leibowitz

Não, não é inacreditável Anne Leibowitz ter encenado os Zelensky compungidos diante de sacos de areia fake e de soldados que são modelos da “beleza azov”.

Ela é isso. O kitsch, as sobras representativas dos valores do dinheiro. Ex-mulher de Susan Sontag, ensaísta que esteve em Sarajevo para experimentar o sabor da guerra.

Claro, Sontag representou mais porque se arriscou mais. Era uma boa influencer no seu tempo.

E o que significa Leibowitz, exatamente? Nem chega a ser fotografia. Uma abominação ética de classe média, como ensinou a Chauí? Arrisco dizer que nem isso. Uma cafona, talvez.

Um precursor norueguês da fotografia de rua

O matemático Carl Størmer e seu hábito de clicar escondido que antecipou um campo para a arte fotográfica

Aos 19 anos, o estudante de matemática norueguês Carl Størmer (1874-1957) comprou uma câmera oculta. Era tão pequena que a lente se encaixava na casa de botão de seu colete, com um cordão a descer até o bolso, permitindo que ele acionasse o mecanismo secretamente.

Uma paixão o levou à fotografia. Quando era jovem na Universidade de Oslo, o matemático, que posteriormente se especializou no estudo das auroras boreais, atraiu-se por uma desconhecida, mas sua timidez não lhe permitiu familiarizar-se com ela. Desejoso de ao menos ter uma foto dessa mulher, decidiu tirá-la sem o seu conhecimento. A partir disso, adquiriu o hábito de fotografar as ruas de Oslo e chegou a registrar celebridades como Ibsen. A atividade lhe rendeu 500 imagens entre 1893 e 1897.

Via My Modern Met e Wikipedia

O feminino inelutável

A fotografia de Helen Levitt
A gravura de Käthe Kollwitz

Helen Levitt, Käthe Kollwitz.
Século 20.
Sensibilidade de mulher.
Porque existe isso sim, o tempo, inelutável.
E isto também, o feminino, embora se rejeite discutir o assunto.
Viva estas mulheres, brado do meu peito.

Um dia no museu

Depois de exatos um ano e meio sem ir aos museus, fui ontem a dois. Os avisos sobre a pandemia são tão perceptíveis em cada canto, as pias dos banheiros, interditadas com tamanha fita isolante vermelha a intervalos frequentes, que é impossível esquecer de quem manda sobre nossa impotência, mas eu esqueci. Eu sou uma agitação interna tão grande depois de uma visita ao museu que é como se meu coração parasse por idênticos intervalos isolantes, e a química em minhas mãos para estancar o vírus não me atrapalhasse em nada.

Mário Cravo, eu e a praga do vidro sobre as molduras, no Masp

Deve ter pesado sobre essa intensidade o fato de que passo por uma suspeita ocular e a cada dia sinto necessário ver mais e mais, como se fosse a antepenúltima vez. Gosto de sentir isso, todas as urgências me confortam, porque também se tornam uma desculpa para, em casa, abrir meus livros de fotografia sem uma razão prática, sem um objetivo finito, sem a praga do dinheiro a queimar mais essa luxúria de perceber e sentir, e neles eu mergulho profundamente.

E eu me sinto livre, enfim, porque não gosto de colocar em prática o que vejo e sinto, e porque dificilmente serei compreendida quando exponho minha percepção. Conheço pessoas excelentes a compreender o que escrevo e a pedir um texto meu com alegria, até para sofrer de surpresa, mas, nestes últimos tempos, tenho escrito para gente ruim de novo, povo do dinheiro, dos editais e das assessorias de imprensa (me perdoem vocês, assessores, que não compreendo como aguentam). E me enraiveço ou rio.

Anteontem, por exemplo, uma galerista que desejava aparecer no meu texto informativo mais do que eu julgava ser de merecimento quis me machucar com uma estocada, dizendo que eu escrevera adjetivos. Não liguei. Sei que ela desconhece o significado de um adjetivo. E nunca, nunca mesmo, desde os tempos longínquos de submissão ao manual da Folha, liguei para essa interdição de classe gramatical. O que todo mundo tem contra os adjetivos? E os gerúndios? Leio os pobrezinhos como prêmios, anéis onde se esconde uma pedra vermelha, e luto para assentá-los bem na terra do meu jardim.

Mas isso não é importante. (A propósito, Senhor Democracia reclamava do “mas” em início de frase. “Você escreve bem demais para insistir nessa mania”. E eu ria por dentro, por saber a origem italiana da restrição). Importante é sentir que vivo três vezes mais quando vou aos museus. E aconselho a vocês que vivam também.

Fui ao Masp e percorri novamente tudo. Os moços das curadorias andam atrás do déficit histórico e expõem mais mulheres que antes. O acervo esteve bagunçado pro meu gosto, uma vez que deixaram a espantosa virgem com o menino de Bellini pro fim da viagem. Mas algumas autoras romperam o caminho da identificação nos cavaletes da Lina Bo Bardi, completando a composição no verso da tela, razão pela qual me diverti, doce vingança à necessidade que ela nos impõe de ter de olhar o tempo todo para trás em busca do nome do autor.

“O implacável”, de Maria Martins,
no Masp

Revi Maria Martins e senti o conforto de sua adjetivação. Seres míticos compostos de sentidos. Tormentos que nascem dos ventres de bronze. As figuras do “implacável” e do “impossível”. Que mulher. De Gertrudes Altschul, redescoberta aqui depois de exposição no MoMA (mas é claro), gostei deveras das sobreposições, como se a fotógrafa sonhasse explicitamente, e apreciei ainda mais os rostos raros e graves de seus personagens infantis (enquanto, nas fotos, a autora aparece rindo sempre).

No IMS, novas sobreposições, desta vez inesperadas, porque de Madalena Schwartz sobre Ney Matogrosso, para que seus movimentos não se perdessem. Que aparição representou o Ney no sopro do tempo! Mas o esforço de Madalena (que levava seu cachorrinho nas sessões) para capturá-lo na sua elasticidade expressiva o tornou interessantemente rígido. Os retratos de Madalena são poses estudadas, teatro explícito, e pelos filminhos ali exibidos sabemos que ela irritava os personagens com sua insistência e sua timidez. Alguns retratos de Paz Errázuriz também estão lá, e senti a diferença, a intensidade, a falta de intenção, a dor subjetiva de suas transexuais em comparação com as de Madalena.

Mário Cravo Neto também se expõe no IMS, e é previsivelmente um deslumbre. De Salvador a Nova York e à Dinamarca, captamos aquele seu furor de vida, que, ao contrário do que acontece com a doce Madalena, raramente se congela. Ele era escultor, como o pai, antes de se acidentar, imobilizar-se por um ano e passar a fotografar como gosto e necessidade. Mestre da subexposição com uma razão, a de viver com seus personagens, a de rodar como suas baianas, no caminho de exprimi-los, ele é um pintor também, e suas aquarelas são o que são, movimentos.

Saio do dia do museu como sempre, tentando, sem exatamente conseguir, expressar minha intensidade

Saí do dia do museu como saio sempre, com vontade de perceber o mundo à volta, mas meu telefone sobrecarregado dificultou os registros. De todo modo, contudo, porque a vida continua, eu seria interrompida, razão pela qual não liguei muito pra essa limitação, e sonhei à noite, e continuei feliz.