O filme de Carlos Coimbra, obrigatório aos jovens em 1972, talvez ajude a explicar a atmosfera mental absolutista em que Verme mergulhou cinco décadas depois

em “Independência ou Morte”:
em algum lugar do futuro, quem
sabe alguém tente absorver
o estilo em suas lives de quinta
Minha determinação cumprida foi a de não assistir ao Verme avacalhar os nossos 200 anos. Neste Sete de Setembro, preferi ver cinema brasileiro, uma ideia de meu filho para pular este capítulo ruim.
Ele queria “Carlota Joaquina, princesa do Brazil”, que eu vira apenas à época do lançamento em 1995, antes de seu nascimento. Mas não encontramos um streaming que transmitisse o filme de Carla Camurati. Paramos então em “Independência ou Morte”, de 1972, que ele desconhecia, no Canal Brasil. Meu filho é fã de Mazzaropi e conhece muitas comédias italianas que estudei. Não iria estranhar o tom.
Eu enfrentei com vontade nossa sessão porque sinto certo carinho pela patacoada do diretor Carlos Coimbra. Não pela obra em si, mas porque ela me remete à infância, quando assistíamos ao filme sempre pela tevê, às vezes por obrigação escolar. Estávamos na ditadura e o passado mostrado daquele modo interessava ao controle ditatorial.
Os atores de “Independência ou Morte” haviam nascido em sua maioria no teatro e faziam época na tevê com boa postura e voz projetada. As cores eram as da botânica do Rio, a paixão de Leopoldina. Tinha tudo pra dar certo, mas não deu. Porque a gente vai sentindo o sufoco no ar. Aquele Rio parece Marte. Onde foi parar a gente preta? O filme passa e você não vê.
Os pretos presentes funcionam como árvores sem galhos naquelas espécies de subgravuras de Debret que o filme vai compondo. Eles carregam sinhás na rede, metem-se nas atividades de ganho e limpam a mesa do Patriarca da Independência sem que conheçamos seus rostos. Nem “E o Vento Levou”, 33 anos antes, cometeu tal ousadia. Haja vatapá, servidos nos tabuleiros, com as baianas de costas!

com a Leopoldina de Kate Hansen:
ah, saber portar um vestido!
Os vestidos caem deselegantemente nas atrizes que representam a Corte. Quantas fitas pregadas, meu deus. A imperatriz Leopoldina de Kate Hansen é uma exceção. Ela porta aquilo tudo com insuspeito deslumbre – ou seus vestidos são os melhores ou ela sabe transformá-los assim.
Escravizados no tronco? Pode esquecer. Queriam repetir Debret no filme, mas sem incluir os flagelos, a violência dos capatazes e os carregadores de fezes. A ditadura vivia o auge. Bastava que Médici não quisesse para que jamais víssemos a beleza ou a ousadia daqueles pretos que, no filme, eram figurantes amedrontados.

de Santos, a infantil fútil e
útil, segundo o filme
Tarcísio Meira, para sempre nosso Pedro I, era Gulliver entre os de Liliput. Glória Menezes, como Marquesa de Santos, operou na camada da infantilidade fútil, como se sua personagem nada tivesse aprendido após a violência do marido, que tentou esfaqueá-la duas vezes. Dionísio Azevedo, que escreveu o roteiro, foi também o patriarca rotundo, um Bonifácio tão sério quanto um poste branco. Emiliano de Queiroz estava à vontade no papel insidioso de Chalaça, compondo uma espécie de duo cômico lateral com Glória.

Quantos profissionais de primeira ordem pra emoldurar o vazio! Tinha me esquecido de Manoel da Nóbrega no papel de dom João VI… Me conformei ao perceber que o imperador ficou na nossa história ao menos por seu pacto com a glutonaria, já que não conseguimos emplacar nele a imagem da covardia.
Ouvir todos esses atores cujas vozes eu havia conhecido nos comerciais e desenhos animados da minha infância acionou novas camadas à experiência do filme, estas que meu filho não pôde experimentar. O longa terminou e ele riu. Bem Brasil, achou. Uma bagunça inacreditável, um absolutismo assumido. A putaria em grande estilo, não só por parte das mulheres, mas dos militares também.
Depois de assistir ao filme percebi algo que não havia notado nele antes. Aquela atmosfera detestável é a mesma que nosso Verme na presidência vive. Ele certamente viu esse filme várias vezes na juventude. Deve ter-se encantado com a possibilidade de viver no topo de um mundo igual.

um Pedro-Tarcisio no
topo é para sempre
Verme quer ser aquele Pedro. Um novo Pedro para o Brasil. Mais exatamente, um Pedro-Tarcísio para si. Um comandante que grita o que quer, na hora em que tem vontade, sentado à mesa cheia de papeis, esta que se parece com aquela de suas lives de quinta. Um Pedro-Tarcísio que tira férias em Santos e não acha necessário dar satisfação por isso ao país. Que impõe a namorada como marquesa como poderia ter feito do cavalo, um cônsul. Que trata como quiser os seus no trabalho, na hora em que desejar, mas que não resolve os problemas familiares. Que tem um filhinho loiro. Que acumula ex-mulheres. Que come e bebe às custas do povo, mas ignora que este não tenha o que comer e beber. E que espera vê-lo a seus pés indefinidamente, como viram os reis.
Me pego pensando que esse Verme de hospício se acha ele próprio a reencarnação desse Pedro-Tarcísio, bastante cuidadoso para que a transmissão de seu poder se dê, sem intercorrência e com muita proteção, aos filhos delinquentes. Como se seu destino fosse “imbrochável” para sempre.
Não à toa a cardiologista Nise Yamaguchi lhe sugeriu o coração de Pedro I e ele mandou trazer de Portugal. Ô mulher madrasta! Ô Planalto da Branca de Neve, Liliput!
Não sei se leram em algum lugar, porque eu não encontrei a informação. Mas aposto que quando esse coração chegou ao Brasil nosso Pedro-Tarcísio se sentiu o próprio dono. Deve ter pedido para vê-lo sozinho numa sala grande. Dirigiu-lhe um pacto com palavras de conciliação. Meu reino por você.
de Carlos Coimbra, em versão
integral no YouTube