Os jorros de Wesley, um homem-cinema

Wesley Pereira de Castro,
co-diretor de “Um minuto é uma eternidade
para quem está sofrendo”

Sinto-me amiga de Wesley Pereira de Castro desde que há mundo, embora o tenha conhecido apenas no desabrochar da pandemia. Um conhecimento parcial, é claro, entranhado no jogo de palavras à distância e pelos áudios do WhatsApp, que Wesley entende um tanto metálicos.

Ontem pude finalmente abraçar este sergipano em sua fortaleza frágil – e ágil. Um homem que sorri. Um homem bonito, os lábios que são um desenho, as unhas tão bem cuidadas e pintadas que me envergonhei um pouco das minhas. Me lembrei de passagem daquele José Mojica Marins que, adolescente, eu avistei num ponto de ônibus da mesma rua Augusta ontem percorrida por nós. Sem cartola ou capa, vestido com uma camisa branca, o Mojica à paisana não tinha nada de seu personagem Zé do Caixão, exceto as unhas longas e firmes. 

Tampouco eu sabia que Wesley era esse homem-cinema total. Enquanto andávamos pela avenida Paulista, conversando, a câmera despertava de seu celular. Sabedor do que queria registrar (a primeira foto já valia), dirigia a si próprio e a mim. “Olhe para lá”, me dizia, ele que pisava naquele território pela primeira vez. Ação, corte, edição: Wesley faz tudo isso como extensão do que é. Move-se e pensa dramaticamente. No olho, o frame.

Wesley olhou tanto! A vida, claro. Mas também as palavras e os filmes. E talvez por este motivo tenha sido tão natural, para ele, que se tornasse um diretor de cinema com um sem-número de referências, além de crítico inegável, apaixonado, amantíssimo, o único aliás que consigo acompanhar sem nunca esmorecer, um pouco pelo brilho da reflexão original que espalha em tudo, outro tanto por sua generosidade, pelo privilégio de que desfruta em ser tão honesto e centrípeto (desta maneira vê a si) nas suas atribuições de avaliador.

“Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo”, seu primeiro longa-metragem, já vencedor do prêmio Aurora na 28ª Mostra Tiradentes, foi co-dirigido pelo amigo sergipano de duas décadas Fábio Rogério. Dele, de sua experiência como editor excelente e ritmado, veio a ideia de realizar uma obra cinematográfica a partir do que Wesley é, de seus registros no celular sobre o cotidiano na casa da família em Aracaju. (Uma curiosidade é que Rogério chegou a duvidar de ter mesmo composto um filme ao final do processo de edição…)

Os pequenos vídeos dentro do longa mostram o quintal de Wesley, seus jabutis, galinhas, patos e cachorros no cio, a casa, a tela de tevê, o banho de chuveiro como que nascido de um filme de Totò (o primeiro no qual atuou, “Fermo con le mani”, de 1937, no qual se desenrola a gag em que o ator se banha de cartola). Neles estão também a pia cheia ou vazia, a faca, a mãe Rosane – filósofa de mando e origem, a ironizar sobre o filho querer tudo, menos o que tem -, muita água de chuva inundando o quintal enquanto escasseia a água de uso (haja inconsciente para rolar), as doações que alimentaram a família durante a pandemia, a vivacidade do diretor combinada a uma melancolia agitada, seus momentos de pânico, alguns filmes que ele viu, os parágrafos de uns livros lidos, os seus pensamentos que são um sentir e um sempre inesperado humor, capaz de ora esfriar, ora animar os sentidos do espectador lanceado.

Foi só quando vi o filme ontem, numa sessão do Cinesesc dentro da 13ª Mostra Tiradentes São Paulo, que entendi melhor o Wesley com quem passeei feliz horas antes. Ele está preso ao cinema. Isto é bom, ocasionalmente ruim? No filme, a certa altura, o diretor indica a exaustão de abrigar na mente uma câmera que tudo enquadra, junto a uma moviola imaginária constante, a determinar o ritmo e o movimento desses enquadramentos. A sua parece ser aquela prisão que implica prazer e que ocasionalmente pede liberação, assim como um rio contido, de repente, vaza pela cidade. Eis talvez por que seu pênis apareça tanto no filme. Este seu amigo no mais da vida “desereto” (mas não deserto) pode desprender em jorro diante de uma atemorizante faca polanskiana colocada na pia. E isso pode ser tanto o começo quanto o fim do eterno ciclo que, um dia, ele espera encerrar por deliberação pessoal.

É um filme feito de dor, mas também de amor e humor. Por me sentir amiga de Wesley, tantas vezes temi por ele, chorei por dentro, enquanto, na mesma fileira em que eu me sentava na sessão, ele ria alto de si próprio em tantas situações nem tão divertidas assim dentro do filme. A naturalidade com que uma sequência de seu inconsciente se segue a outra, com tantos bichos na casa a revelar essa imanência-transcendência, me lembrou aquela do diretor Luis Buñuel, suas aranhas, escorpiões e insetos colocados nos filmes sem razão aparente, mas a espetar os sentidos dentro de uma narrativa que se liga à vida. Wesley me pareceu buñueliano também por não saber o que fazer sem o cinema, e por atuar junto a um condutor consciente, capaz de expressar todo o peso de sua arte. Seu Fábio Rogério é como o roteirista Jean-Claude Carrière para o diretor espanhol, um artista a organizar o fluxo.

O filme que custou apenas 2 mil reais (gastos, em verdade, para a confecção do cartaz e das legendas em inglês exigidas pela Mostra Tiradentes) tem tanto mais, até um divertido cu piscante! E os efeitos visuais nascidos da precariedade da câmera surgem sublimes, como aqueles que Wesley produz ao agitar o celular, indicando “loucura”. Só posso esperar que seu filme jorre em novas exibições pelo Brasil e pelo mundo e que o Carrière deste Buñuel o acompanhe, empurre e console, salvando-o para viver e acontecer.