Quebrando a cara, obra-prima de Giorgetti sobre Eder Jofre

Waldemar Zumbano e Eder Jofre em “Quebrando a Cara”, documentário de Ugo Giotgetti, 1986

O grande Eder Jofre morreu hoje, aos 86 anos. E o Brasil lhe fez justiça por meio do documentário que é uma espécie de contrafacção de “Rocco e seus irmãos”, de Visconti, com “Accatone”, de Pasolini, na qual a história do pugilista remete à de sua família periférica. Não percam a chance de ver “Quebrando a cara”, de 1986, uma obra-prima de Ugo Giorgetti desde a primeira maravilhosa sequência. Aqui, a versão integral no YouTube.

Leila feliz, Leila Diniz

Documentário iniciado nos anos 1980 e agora concluído pela amiga Ana Maria Magalhães mostra as muitas revoluções operadas pela atriz brasileira, de quem neste ano se recorda o cinquentenário de morte

Um sorriso para estabelecer a verdade

Leila Diniz ou Liberdade?

Eram indistintas na minha juventude.

E assim, desde criança, acostumei-me a essa atriz desafiadora pela alegria, a assimilar a aura de uma Josephine Baker nas capas da revista “O Cruzeiro”. Leila impediu indiretamente que a diva Madonna do mercado e da moda funcionasse para muitas como eu de maneira libertária, uma vez que já fôramos apresentadas à moeda da brasileira, composta de doação.

A imagem de Leila livre surgia avassaladora para nós. Estimulante, mas intimidante. Eu nunca usufruiria de tanta autonomia quanto ela conforme fosse crescendo. Sair de casa aos 15? Não consegui. Dizer o que bem entendesse? Nunca diretamente. Transar, só adulta. Largar a escola pra escrever poemas? Nem sonhei.

Eu era muito nova quando a atriz surgiu para o público. Minha família não assistia às novelas em que ela aparecia. Seus filmes não se permitiam para crianças como eu. Soube mais de sua vida como todos souberam, na minha idade, ao entendê-la morta injustamente aos 27 anos dentro de um avião, mãe da bebê Janaína.

Abre as asas sobre nós

Principalmente, lá pelos 18 anos, li a célebre entrevista em que Leila duelava com a homenzarrada do “Pasquim”. Que valentia natural! Assim eu queria tratar os homens. Com verdade, coragem. E sorriso, como não.

Leila, aquela que, segundo Nelson Sargento, entregou a liberdade para nós, as mulheres brasileiras que com ela puderam sambar…

“Já que ninguém me tira pra dançar” é o documentário amoroso da amiga Ana Maria Magalhães que o Itaú Cultural Play exibe dias 15 e 16 de janeiro, sábado e domingo próximos, sobre a história de Leila. Não vá perder, embora o título possa eventualmente lhe soar esquisito. Mulher nenhuma precisa de que alguém lhe tire pra dançar, certo? Mas naqueles tempos era código de conduta. Só dançávamos se um homem nos “tirasse” para isso. Só vivíamos por nós mesmas se os pais nos permitissem. E Leila fez tudo ao contrário.

Com a amiga Ana Maria Magalhães

O filme que ora vem nos lembrar de seu cinquentenário de morte começou a ser feito nos anos 1980, com depoimentos extraídos de artistas e jornalistas a ter convivido com ela, Nelson Pereira dos Santos, Tarso de Castro ou Claudio Marzo, amigas atrizes como Maria Gladys e Betty Faria, e as intérpretes Lídia Brondi, Louise Cardoso e Lígia Diniz a encenar situações de sua vida. É quase miraculoso que este documentário saia agora, revitalizado pelas interpretações do tempo.

Com Domingos Oliveira e Paulo José em “Todas as mulheres do mundo”

Domingos de Oliveira, que com Leila e Paulo José encenou a ficção biográfica “Todas as mulheres do mundo” (1966), afirma nem saber que a conheceu aos 23 anos quando ela contava apenas 15. Enche a boca para dizer que ela era sua mulher, enquanto Maria Gladys dedura a infelicidade de Leila ao saber de seus namoros concomitantes. Leila era de um só enquanto com ele estivesse, garantem todos. Amou muito, como disse ao “Pasquim”, e planejava amar muito mais.

Com Paulo José, uma parceria que não pulou das telas para a cama

Os depoentes todos transbordam admirados por ela, alguém que ainda parece existir por sua invenção, como um arquétipo de bondade do qual é impossível fugir. Um melancólico Cláudio Marzo lembra ter aprendido tudo com ela, que por sua vez tanto ajudou Betty Faria na tevê – a mesma Betty que se casaria com Marzo e se enciumaria da amiga no início.

Muitos entrevistados daquelas madrugadas da zona sul utópica soam estranhos, como o suposto primeiro namorado de Leila, o psicanalista Luiz Eduardo Prado, que se destacou entre os boys de bairro por seu comportamento de leitor de Vinicius de Moraes e que, de forma enviezada, a salvou da “curra” dos amigos. “Curra” usada aqui, presume-se, como o interesse sexual de um grupo.

Trata-se de um filme muito pessoal, que cresce conforme surgem as imagens de uma época finda.

Verde e rosa para a Mangueira

Leila era a vedete por excelência, segundo Tarso de Castro e todos aqueles que a acompanharam no teatro de revista. Ela que, depois de grávida e com o leite a derramar dos seios, ainda o oferecia ao público do espetáculo, de modo a compor o tipo vedete-mãe…

Uma atriz que representava em tudo o Brasil do carnaval, da dança, do circo, do palavrão. E só amava de verdade o cinema, como lembra Nelson Pereira dos Santos (com quem fez “Fome de Amor” em 1968), porque ali, ao contrário da televisão, poderia compor seu próprio personagem, sem a caretice conservadora reinante, fazendo o filme a sua semelhança.

Com Irene Stefânia e Nelson Pereira dos Santos no set de “Fome de amor”

Paulo José tem uma das falas mais bonitas do filme, a lembrar o comprometimento de Leila com o fazer cinematográfico, a química entre os dois que, das telas, não pulou para a cama, justamente para engrandecer seu fazer efusivo nas telas.

É extraordinário, por fim, que este filme exiba-nos uma Leila combalida pela pressão da ditadura após sua entrevista ao “Pasquim”, na qual celebremente soltou muitos palavrões. Os militares a queriam presa, mas ela se safou tanto por sua própria alegria (ao chegar para depor na Polícia Federal, elogiou a vista que os torturadores tinham a partir da janela) quanto pelo empenho dos amigos a negociar com os biltres por sua liberdade.

A precoce uberização do mundo, causada pelas trevas ditatoriais,
levou-a vender roupas

O assédio dos militares foi tanto que a certa altura ela largou o trabalho de atriz para vender roupa. A dor, assim como o que hoje conhecemos por uberização do mundo, são inevitáveis quando as trevas se aproximam de nós.

Leila apagou-se fisicamente e não é possível aceitar isto de modo algum, como diz Domingos de Oliveira. Mas há algo dela que o tempo torna eterno em nós, conforme descreve Martinho da Vila em “Leila Diniz”:

Ai que saudade da beleza democrática

Ai que saudades do sorriso progressista

Ai que saudade de ouvir certas verdades

Que a burguesia sempre pensa mas não diz (…)

Ela era a estátua nacional da liberdade

Ditando a lei do ventre livre do país

Aquelas noites eram feias, eram trágicas

Mas sua luz anunciava a diretriz

Comportamentos mais abertos, transparentes

Pra nossa gente ser mais gente, mais feliz

Hoje a saudade escreve os versos deste samba

Que é um dos sambas mais sentidos que já fiz

Esta saudade tem um nome e um sobrenome

Esta saudade é uma mulher, Leila Diniz

Nome e sobrenome da saudade

SERVIÇO

Já que ninguém me tira para dançar (Brasil, 2021, 91 mins)

De Ana Maria Magalhães

Coprodução Metrópolis e apoio Itaú Cultural

Dias 15 e 16 de janeiro (sábado e domingo), das 19h às 23h

Na Itaú Cultural Play: www.itauculturalplay.com.br

“Tempo Ruy”, a resistência vital do diretor Ruy Guerra

O primeiro, belo e poético longa-metragem de Adilson Mendes é obra madura sobre um dos mais importantes diretores do Brasil

Ruy Guerra, olhar direto



Cinema sobre cinema. Assim se pode resumir Tempo Ruy, o filme do diretor Adilson Mendes sobre o diretor Ruy Guerra, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com montagem de Fábio Costa Menezes e fotografia de Saulo Nicolai e Kae Rodrigues, Adilson Mendes voa como um pássaro poético sobre a trajetória de um relegado da historiografia, o moçambicano tornado brasileiro pelo cinema Ruy Guerra. É seu primeiro longa-metragem, mas nem parece.

O diretor de “Tempo Ruy”,
Adilson Mendes

Historiador formado na Unesp, com habilitação em cinema pela USP, Mendes aprofundou-se em curadoria e história, com ênfase em história do cinema e patrimônio audiovisual. Foi pesquisador da Cinemateca Brasileira, onde trabalhou em curadorias, edições e restaurações. Organizou o livro Ruy Guerra – Arte e Revolução e na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no ano passado, ministrou, ao lado de Ruy Guerra, o curso on-line “O Trabalho de Ruy Guerra”. Sua única obra anterior como cineasta foi o curta Eu Posso Ir.

Mendes conheceu Ruy Guerra quando participou da equipe da Cinemateca responsável pela restauração de Os Fuzis, uma obra-prima brasileira possivelmente sem pares. A crise de 2013, que atingiu a instituição, impediu a finalização do restauro. E Mendes foi a pessoa encarregada de viajar até o Rio para contar isso a Ruy Guerra. “Dei sorte e nosso santo bateu. E na pandemia estreitamos os laços”, ele conta.

O filme foi rodado durante a pandemia naquele pedaço de mundo onde Guerra vive ao lado de seu enfermeiro, Gerônimo Quirino, um personagem apresentado em sequência memorável. É como se, por meio dela, estivesse ilustrada a própria trajetória atlântica de Guerra rumo à pasárgada brasileira, onde, misturado à paisagem e seus desígnios, o moçambicano escolheu aplicar as lições de cinema que primeiro aprendeu com os franceses.

Em seu recolhimento, com humor

Ruy Guerra fala e pontua bem o que diz, como se o tempo realmente lhe pertencesse. Autor de livros, poemas e canção popular, ele lê por todo o filme. Tem o mau humor divertido e no seu coração não parece haver rancor nem mesmo por Glauber Rocha, que rompeu com ele por imaginá-lo espião da ditadura portuguesa, ou algo nesta linha sem sentido. Mas Guerra, como bem recorda, despediu-se dele em funeral.

O filme persiste em imagens litorâneas estendidas, em reflexos e sombras do cinema mudo, e todo o tempo parece encenar um sereno adeus. 

Um cineasta reconhece outro e, aos 90 anos de idade, Guerra diz a Mendes que demora a morrer. Isto, como é de supor, o faz presenciar a perda um a um de todos os grandes amigos, como Gabriel García Márquez, de quem diz se lembrar todos os dias. Ele suspeita que esta seja a maneira que a vida encontrou de lhe dizer que talvez seja possível perdê-la sem lamentar. Mas Guerra, indiferente ao que o tempo rui, sempre preferirá viver um pouco mais. 

A seguir, as respostas que Adilson Mendes deu às minhas perguntas:

Como se deram as conversas para a realização deste filme?

O convívio diário com Ruy Guerra durante a pandemia fez com que ficássemos amigos e a ideia do filme surgiu como forma de ajudá-lo a existir durante esse período difícil. A amizade forte permitiu a liberdade criativa.

Sentiu necessidade de procurar outros personagens envolvidos em sua história? Ou ele lhe pediu que se concentrasse apenas em seus depoimentos e cartas?

Achei que seria apropriado fazer um filme huis clos com ele em sua casa. Um caso isolado com possibilidade de generalização. Uma estrela solitária capaz de iluminar uma constelação inteira: a cultura brasileira, que agora está sendo tragada por uma nebulosa. E o brilho de Ruy é a resistência vital.

Me fale um pouco sobre a escolha da trilha musical, que me parece tão acertada, ao intensificar as passagens, os belos travellings.

A trilha é fruto do enorme talento de Dino Vicente. O trabalho dele foi fundamental para a estruturação do filme. O título do filme traz a palavra “tempo” no sentido musical. Por isso, a música deu ossatura à massa gelatinosa das imagens e da voz de Ruy.

Esse seu estilo de documentário, que explica sem se detalhar ou identificar (como acontece numa emocionante sequência em câmera lenta em torno do enfermeiro de Guerra, e pode indicar, além da fragilidade física do diretor, sua trajetória afro-atlântica), foi desenvolvido a partir do interesse em documentários específicos? Quem são os documentaristas que mais lhe influenciam?

Durante a década e meia em que trabalhei na Cinemateca mergulhei na história do cinema. E certamente a tradição documental me marcou, especialmente a de Georges Franju, que também marcou demais a sensibilidade de Ruy.

Manancial inesgotável

Como você vê Ruy Guerra no panorama do cinema brasileiro? Crê que ele não foi suficientemente visto ou valorizado? Quais são os filmes essenciais da cinematografia dele, a seu ver, e por quê?

Ruy é manancial inesgotável. Sua coragem de se renovar a cada filme é inspiradora para qualquer cineasta que queira fazer um cinema de combate. Para mim, Ruy é o autor do único filme brasileiro: Os Fuzis. Quando observamos a fortuna crítica de Ruy, notamos que sua obra repercutiu mais na França do que no Brasil. Os clássicos da historiografia do cinema moderno o ignoram ou passam rápido por ele, sempre reproduzindo o belíssimo texto de Roberto Schwarz sobre Os Fuzis, “O cinema e Os fuzis”, de 1966.

Tem um próximo projeto cinematográfico do qual possa me falar?

No momento desenvolvo alguns outros filmes, ficção e documentário. O mais avançado, que sairá no começo de 2022, trata da entrada do MST no mercado financeiro.

Adilson Mendes, com o MST
para o próximo filme

TEMPO RUY

Diretor: Adilson Mendes

Brasil

2021   cor   72 min.   

Documentário

Pior que o Führer. Acho que ele vai gostar

Insônia é fogo e me lembra que Hitler fez mais pela cultura de seu país do que Verme.

Hitler exigia cinema bom e apaixonou-se pela loucura de Leni Riefenstahl, além de conseguir reter na sua administração atores como Emil Jannings (“O Anjo Azul”) e diretores como Walter Ruttmann (“Berlim, Sinfonia de uma Metrópole”).

Nana Caymmi apoiou Bozo, que por sua vez destruiu nosso cinema e nossa cinemateca, mas não sei se Bozo gosta de Nana Caymmi, isto se souber de quem se trata. O único apoplético a serviço do Verme com algum relevo acidentado talvez seja Amado Batista.

E sei lá do que mais essa anticriatura gosta e o que aplaude, a não ser o caixa eletrônico quando espirra.

Vivinha, a dama, o riso

Estive com Eva Wilma em 2008. Vivinha tinha então 75 anos, era sorridente, engordara uns quilos e usava vestido verde. O verde me perturbou. Eu só pensava em meu pai, que disse ter chamado a atenção dela na juventude ao usar um terno de mesma cor. A atriz achou a história estranha e justamente dela não riu, se bem me lembro. Me atrapalhei. Eva, que morreu agora como consequência de um câncer, emanava poder. Declamava Millôr de cor e naquela ocasião me contou que escrevia um diário sem pensar em publicá-lo. Ser atriz, disse-me ela, que sonhou em se tornar bailarina, não representava um chamado quando optou pela carreira: “O chamado era a época”

Eva Wilma, culta, brilhante,
transformou em bordão a fala
de uma amiga pernambucana:
“Thank you very much, viu, bichinho?”

A DAMA QUE RI

 

A atriz Eva Wilma revê uma carreira vitoriosa, marcada pelo humor

 

Por Rosane Pavam

 

Diante desta Eva que é o princípio, um interlocutor pode se sentir perto do fim. A história de Eva Wilma, que fez grande carreira no teatro, na televisão e no cinema, intimida quem a analisa. Acontece, contudo, de a personalidade de Eva distanciar-se da altivez. Ela ainda assanha os olhos, delineados a lápis, na direção de quem a observa. Sobretudo, depois de 55 anos como atriz, usa uma arma incomum para quem é dama. O humor.

 

Fazer rir não parece permitido às mulheres bonitas. Eva Wilma contrariou a interdição. Foi uma das mais belas desde a fundação da televisão no Brasil, em 1950, mas manteve o pé no riso, a seu ver um instrumento reflexivo. Integrante do Balé do IV Centenário, ela não começou como atriz. Em sua primeira aparição na tevê, em 1953, compartilhou com o primeiro marido, John Herbert, historinhas diferentes sobre o encontro de um homem e uma mulher na sitcom Alô Doçura. O humor apareceu nos dez anos em que a série durou.

 

Não que Eva Wilma tenha se sentido predestinada a ser atriz. Teria sido bailarina se houvesse aparecido a chance real. Seu pai, o alemão Otto Riefle Jr., perdera o emprego em 1929, sem jamais se recuperar financeiramente depois, e Eva não tinha irmãos com quem contar.

 

“O chamado era a época”, ela avalia hoje. Quem a convidava simultaneamente a interpretar eram Luciano Salce, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, José Renato, do Teatro de Arena, e, na tevê, o apelo era de Cassiano Gabus Mendes. Resistir aos três seria para rir. Como bailarina, ela aprendera que ou se debruçava sobre a barra ou não dançava direito. Para uma atriz, a barra equivalia ao estudo do personagem.

 

Ficou clássica a sua interpretação para Raquel, a gêmea má de Ruth na novela Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro, em 1973. Eva se transformava então na vil-má, qualificativos que ela lamentava haver em seu prenome, conforme contou à escritora Edla Van Steen na biografia ilustrada Arte e Vida (Imprensa Oficial). A maldade de Raquel, contudo, apegava-se ao cômico. Era bom ser gozadora e atraente. Raquel jogava a cabeça para trás, mostrava os dentes e brandia o revólver como se fosse um brinquedo. A boazinha Ruth usava lenço na cabeça, prendia o cabelo de lado com a presilha, rejeitava os óculos escuros e, principalmente, não gargalhava.

 

Tudo muito simples, mostrado desde o início como truque. Por desempenhar tão bem duas personalidades diferentes em Mulheres de Areia, seria natural que ganhasse o Troféu Imprensa, prêmio concedido aos melhores da tevê. Quem levou a láurea de melhor atriz naquele ano, contudo, foi Regina Duarte, que representara duas mulheres em uma (a menina pobre e tímida que passava a intrépida e rica) na novela Carinhoso.

 

Regina Duarte era já amiga de Eva Wilma à época. Conhecera a atriz garota, ao atuar com ela em Blackout, com direção teatral de Antunes Filho, em 1967. Regina declinou do prêmio em favor de Vivinha, como ela e os amigos ainda a chamam. O gesto se tornou comoção nacional naquele 1974. Eva Wilma assistia à cerimônia sentada no sofá de casa. “Surpresa como estava, só pude ligar para a Regina e lhe mandar flores.”

 

Na televisão, acredita a atriz, é raro haver este espaço para exercer a ironia, à moda do que ela fez em Mulheres de Areia. “Como não temos tempo para nada, estudo ou concentração, e nos aquecemos na tapadeira, atrás do cenário, ainda por cima falando sozinhos, não deixamos passar a oportunidade da ironia quando ela surge. Ser irônico, neste caso, equivale a comentar toda a situação.” A história se repetiu de certa forma anos depois, em 1996, quando ela se deliciou ao interpretar Maria Altiva Pedreira de Mendonça e Albuquerque em A Indomada, de Aguinaldo Silva, e improvisar o bordão da vilã, aprendido com uma amiga pernambucana: “Thank you very much, viu, bichinho?”

 

Agora que Eva Wilma, aos 75 anos, surge para uma leitura de textos representativos de sua carreira, costurados por ela e pelo autor Antonio Gilberto, em Um Brinde ao Teatro, dia 27, no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, e que reestréia em São Luís a peça O Manifesto, de Brian Clark, agora na companhia do ator Pedro de Camargo, esta passagem que ela faz como poucos, do drama ao humor, e do humor ao drama, vai estar mais clara para o espectador.

 

Eva estudou para ser ambígua, para colocar algo de seu na personalidade dramática de seus personagens. Quem primeiro a obrigou a isso foi Antunes Filho, diretor do policial Blackout, sucesso de público e crítica ao lado de Geraldo Del Rey e Stênio Garcia. Para compor a personagem frágil pela cegueira, e que de repente investia contra os bandidos com uma faca de cozinha, ela leu o capítulo sobre dialética do livro Princípios Fundamentais da Filosofia, de Georges Politzer. Eva apelidou o livro de “meu pequeno operário”.

 

Dois anos antes, o diretor Sergio Luis Person a convidara a São Paulo S.A., filme no qual a personalidade da protagonista era desenhada com idêntica surpresa. A Luíza simples parecia acreditar no futuro industrial de São Paulo, mas seus olhos indicavam que ela esperava o pior. Eva Wilma apenas diz que se divertiu muito com Person, e que o filme a levou a Acapulco, onde ocorria o Festival dos Festivais. Lá, ela encontrou o diretor espanhol Luis Buñuel, admirador da obra. O filme, que rendeu prêmios a Eva, já valera por este encontro.

 

“Começamos a crer, emocionados, que o mal nem sempre vence”, diz o prólogo que Millôr Fernandes escreveu para Antígone, de Sófocles, e que Eva declama no saguão de um prédio paulistano. No edifício ela comprou um apartamento há quase três décadas, por iniciativa de seu segundo marido, o ator e diretor Carlos Zara, morto em 2002 de um câncer no esôfago. Eva ainda se emociona quando fala deste homem que ela amava e que sabia sempre por onde andar e o que fazer.

“O mais difícil da luta é escolher o lado em que lutar”, termina o prólogo de Millôr.

Eva, a segunda à esquerda, entre
Tônia Carreiro e Odete Lara, em passeata contra a censura, 1968:
“O mais difícil da luta é escolher o lado em que lutar”

Eva também gosta de escrever, à mão, em um diário que não imagina publicar. “Não acredito que já tenha realizado tudo o que gostaria de realizar. De alguma maneira a juventude me parece mais próxima do que quando eu era jovem”, ela escreve. De tudo lê um pouco, como os textos do mambembe Airton Salvanini. Agora, dedica-se a um novo esporte: “Arrumação, você conhece?” O site de buscas google a libertou do desperdício de materiais representado pelos volumes da Enciclopédia Britânica.

 

Riam, mas não brinquem, com a Eva Wilma ética que, algo defendida pela notoriedade, caminhou contra a censura em 1968, para não mais se intrometer na política de candidatos. E jamais façam como o diretor inglês Alfred Hitchcock, que a convidou a um teste, naquele ano fatídico, para participar do filme Topázio. Durante a análise, ele a provocou em inglês. Irritada, Eva Wilma argumentou que jamais conseguiria responder à provocação em língua que não fosse a portuguesa. “Pois responda na sua língua”, ele a desafiou. Eva então lhe falou tudo o que ele não poderia compreender. Não ganhou o pequeno papel, que passou a uma alemã, Karin Dor. Topázio não fez o sucesso esperado, mas, ainda assim, ela teria adorado estar nele. Neste caso, Eva riu por último, mas não riu melhor.

A quem se destina

Aproveite a chance rara de assistir de graça a “Todas as horas do fim”, o documentário sobre Torquato Neto que é só poesia

Nosferatu como um profeta triste

Há três anos apareceu com imenso lirismo este filme dirigido a partir de depoimentos, da pontuada narração de Jesuíta Cardoso e de outros filmes – os de Torquato Neto, em super-8, e aquele de Ivan Cardoso, por exemplo, em que o poeta da literatura e da música do Brasil é um vampiro convicto, de sandálias e cabelo longo.

Três anos e este “Todas as horas do fim”, dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando, ainda dói na gente. Em quem é gente no Brasil. Em quem não se cansa de penar para entender por que um poeta da vida tenha escolhido a morte, suicidado com gás, aos 28 anos, em 1972.

E no entanto Torquato surgia pleno no mundo, gênio precocemente, poeta desde os 9, filho único de pais amorosos, magro, seco e severo como eles na Teresina que era a sina de todos…

E mesmo sendo pai de Thiago, outra realização de amor, marido de Ana, sua santa, isto não o impedia de imaginar que, tendo concluído sua obra, viver não seria mais preciso… E o que dizer daquela ditadura que não parecia ter mais fim, nem nada de si?

Caetano e Gil eram seus amigos da Tropicália, em que Torquato nem mesmo acreditava de início. Hélio Oiticica podia dizer-se fartamente admirado por ele, assim como Glauber Rocha, assim como o cinema. Um poeta a observar toda a arte, toda a vanguarda, todo o sentido.

É um filme de ritmo e canção, que busca a poesia com simplicidade, razão pela qual a encontra, embora não a discuta nas linhas próprias de Torquato Neto nem trace os paralelos entre elas e os versos, por exemplo, de um conterrâneo como Mário Faustino.

É madrugada, passou das três, e eu tive de reescrever isto tudo! O texto primeiro, o blog comeu…

Torquato, é você aí?

Poeta desde os 9 anos que ele foi

Aqui vai o streaming do documentário “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim”, dentro do projeto “Em Casa com o Cine 104”:

https://vimeo.com/460725286

senha: torquato_104

Até as 20h de 9 de outubro de 2020

Um filme que todos mereceríamos ver

“Precárias e Resilientes”, o longa-metragem documental
de Luan Cardoso sobre a luta das mulheres da periferia, aguarda financiamento para ser finalizado, já que a prefeitura de São Paulo
não pagou a segunda parte necessária à conclusão do projeto

Renata Adrianna, de uma ilusão de igualdade à vida periférica

Luan Cardoso é um cineasta da luz reflexiva, íntima. Luz de quem pensa. Ele a tem estendido a muitos músicos, como Rodrigo Campos, nos últimos anos, e é como se, através dela, compreendêssemos um pouco o misterioso processo criativo de todo artista.

A luz certa é tão difícil de obter. Exige olhar o personagem com sua densidade, ao mesmo tempo que com sua leveza; seu volume, mas também a superfície. Em 2017, Luan ganhou um edital da Prefeitura de São Paulo para estender essa observação aguda às mulheres de todos os lugares periféricos, de modo a que elas nos contassem suas histórias de superação. Pessoas com seus problemas, sim, tão duros às vezes, mas gente sorridente também, disposta ao enfrentamento com altivez.

O que sobrou de uma ocupação após a passagem do trator, conforme uma narrativa em off

O problema agora é que, tendo realizado os depoimentos, o cineasta procura meios para finalizar o documentário, que já intitula “Precárias e Resilientes”. A municipalidade decidiu não lhe dar o dinheiro que faltava para apresentar o longa-metragem  _ este que sem escusas, por exemplo, condena, por meio de depoimento em off, uma violenta desocupação de sem-teto. A questão é que esconder este filme da Quixó Produções representaria um vazio a mais na nossa cultura combalida. Uma obra tão essencial, se finalizada até março, alcançaria o mês das mulheres que lutam e expõem sua luta.

Em “Precárias e Resilientes”, Luan Cardoso traz à luz uma cabeleireira, uma faxineira, uma atriz, uma artista plástica, escritora, dona de casa, dona de casa sem casa, dona de casa homossexual, mãe de filhos mortos… E, conduzidos com naturalidade, seus depoimentos nos fazem aquele retrato nítido do Brasil excludente dos direitos das mulheres, ademais negras ou pobres.

Raquel Trindade, artista, professora, artista plástica, um sorriso de resistência

Há a senhora que vai ao julgamento sobre a morte de seu segundo filho, estraçalhado feito um porco, e exalta-se diante da juíza ao apontar a autoria naqueles policiais no banco dos réus. A cabeleireira que, militante do movimento negro, vê no mote evangélico um subsídio essencial à luta: o amor. Uma atriz branca que não se deu conta, na infância, da mãe sacrificada em seus ganhos como doméstica enquanto ela estudava, via desconto salarial, em um bom colégio de Recife. Dois depoimentos importantes de mulheres que recentemente nos deixaram, a artista plástica e professora Raquel Trindade e a escritora Tula Pilar Ferreira, ativam-nos ao otimismo, à força que é preciso ter para vencer o racismo que cresce todos os dias.

“As pessoas são diferentes, não anormais”, diz Genaína Dias. Sua fala é essencial ao filme e à vida. A mentalidade fascista que toma nosso entorno esqueceu-se do princípio de igualdade na diferença, algo que “Precárias e Resilientes”, quando concluído, nos ajudará um pouco mais a perceber.

A liberdade celestial

Em “A Ponte de Bambu”, Marcelo Machado vê a ligação mantida
pelo amigo e jornalista Jayme Martins com a China desde os anos 1960

Em Pequim, a partir de 1962, Jayme Martins atua como professor

Se um lugar não lhe dá liberdade, você pode procurar outro lugar para ser livre. Ou talvez encontre esta condição dentro de si. O jornalista Jayme Martins, hoje com 90 anos, não se sentia tão livre assim no Brasil. Ele buscou por sistemas filosóficos que lhe garantissem uma ação libertária, mas não parou em nenhum até encontrar o marxismo. Em 1962, ser comunista não parecia coisa boa. Ele então decidiu experimentar a China que lhe oferecia trabalho, e a sua mulher, além de moradia em um hotel para estrangeiros. Teve duas filhas lá e não pensava em voltar ao seu lugar, então francamente antilibertário, até que a anistia chegasse aos brasileiros e ele pudesse estar em Jundiaí para espalhar o que aprendeu com os chineses.

Jayme Martins vestido com o rigor da tradição

É, em linhas gerais, o que diz o documentário de Marcelo Machado, A Ponte de Bambu. Não que o diretor tenha conseguido aprofundar a história de Martins desde a infância de suas vocações. Em verdade, trata-se de mais um filme sobre a China em que a perspectiva precisa ser familiar, resistente como aquela gramínea. A mulher do diretor é chinesa, e Jayme Martins nunca perdeu a fé nos comunistas dali, nem mesmo quando deixou às pressas a Pequim onde as filhas estudavam. O massacre na Praça da Paz Celestial, conforme ele informou à época em reportagens ao JT, ao Estadão e ao SBT, foi desnecessário e cruel. Tropas com seus tanques chegaram a Pequim naquele 1989 desinformados das manifestações políticas crescentes, achando que combateriam uma enchente.

As filhas Raquel e Andrea com os colegas da escola para chineses
Raquel com os estudantes da Praça da Paz Celestial durante as manifestações que resultaram no massacre de 1989

Marcelo Machado é um documentarista sensível, com belo entendimento do ritmo musical e dos depoimentos, obtidos com a naturalidade de quem divide a cozinha com seus personagens. Não se posiciona a favor da China, e não precisa. Martins ainda acredita nela. A seu ver, o país adaptou a economia de mercado ao comunismo, transformando a mais-valia em bem-estar social. E o jornalista acredita que isto vai dar em coisa boa, com certeza.

A família reunida em Jundiaí
Com amigos e a esposa Angelina na Muralha da China

A PONTE DE BAMBU

Diretor: Marcelo Machado

Brasil, 77 min

Onde: bit.ly/3mI4SJI

exibições: 27/9, às 21h, 28/9, às 15h

Samba na filosofia

Documentário mostra a história de Porfírio do Amaral, um sambista negro quase desconhecido (como muitos ainda devem ser), mas um prosador-pensador como poucos no Recôncavo puderam testemunhar

Porfírio do Amaral aos 55 anos, em 1971, durante a realização
do programa da TV Cultura que jamais foi ao ar

O pai queria lhe dar um nome que remetesse à realeza. Decidiu chamá-lo Porfírio, aquele que vinha revestido de púrpura, a cor das roupas do rei. Por estar certo de que seu filho triunfaria, não ligou quando uma cigana sentenciou à mãe, diante da criança ainda pequena: “Nunca deixe esse menino cantar. A morte acompanha a sorte dele”. O pai era um poeta racional numa Bahia mística. Mas, a partir daí e por toda a vida, Porfírio do Amaral se sentiu nervoso para colocar a voz. Diretor na TV Cultura de São Paulo, Fernando Faro chamou-o para um piloto de seu programa sobre música brasileira e nunca pôde exibi-lo, porque Porfirio, o compositor, não conseguia cantar as próprias canções, sempre nascidas do sofrimento. Ele falava como um filósofo, na verdade um rei da filosofia, mas, quando se abria ao canto, surgia a gagueira das emoções. Ou do medo.

A neta Letícia, que estuda cinema no Recôncavo e trabalha sobre a memória do avô Chô

O cineasta Caio Rubens descobriu a gravação de 1971 e a incluiu neste documentário, que só por isso já valeria o vislumbre. Porfirio fala dramaticamente as coisas mais lindas e duras, sem receio, por exemplo, de chamar de golpe o que a televisão da época intitulou revolução. Com paciência para os testemunhos, mesmo para aqueles que não dirão diretamente de Porfirio, como o de Elza Soares, o diretor amplia o contexto do samba e do Recôncavo. Muita gente depõe, de Roberto Mendes, Carlinhos Brown, Nelson Sargento, Mateus Aleluia e Chico Buarque ao ator Antonio Pitanga (um elo entre Porfirio, então porteiro da TV Cultura, e Faro) e à neta Letícia, que gravou em VHS a intimidade com o avô Chô, do apelido Choriça que lhe deram por ser magrinho.

Porfírio e suas netas, em imagem captada em VHS por Letícia
Uma interpretação em VHS para a rotina do compositor e percussionista

O personagem se delineia aos poucos, enquanto Margareth Menezes, Gloria Bonfim e outros intérpretes apresentam suas canções. Apesar de não constar no google, nem mesmo no Dicionário Ricardo Cravo Albin da Música Popular Brasileira, Porfirio existiu entre 1917 e 2008, e existe cada vez mais. Compositor de melodia triste para prosa alegre e de melodia alegre para prosa triste, foi precursor de pagodes e sambalanços, homem da cuíca que chorava lancinante, das chulas e cantos de senzala que pressupõem a aglomeração e a comunhão. Samba não é um gênero, dizia. Há muitos sambas que são gêneros por si. E ele não foi só um sambista, mas um homem que nasceu para refletir.

Com Fernando Faro, que acompanhou sua carreira
  • PORFÍRIO DO AMARAL: A VERDADE SOBRE O SAMBA
    Diretor: Caio Rubens
    Brasil, 2019, 83 min
     
    onde: bit.ly/2Zy4LGJ [até 20/9]
     

A cinemateca, sozinha nesta noite

não paro de pensar que a esta hora a cinemateca está solitária à espera de que a milícia bolsomínica a depaupere numa noite de facas, fogo ou cristais.

há não somente filmes brasileiros de todos os tempos ali. há raridades de todo o cinema mundial, desde as silenciosas.

uma biblioteca riquíssima, que, pequeno detalhe pessoal, contém dois livros que escrevi.

como vai ser?

vão transformar aquele maravilhoso prédio no matadouro que era antes?