confesso que escrevo muito a pulso neste blog, movida por uma emoção qualquer do momento, afetividade, riso, dor. e não reviso direito, não construo muito o texto, porque imagino conversar com amigos.
e então estive pensando agora.
quando eu era muito jovem, não admitia o voto útil. o voto tinha de ser no que eu acreditava. eu havia passado tantos anos sem poder exercer esse direito que não conseguia aceitar eleger o menos pior.
vi o PT nascer como partido da classe trabalhadora numa época em que a única oposição massiva ao Brasil era feita pelo MDB, agremiação respeitada por meus amigos, mas que o tempo me fez constatar não atender a meus anseios de mudança.
como nunca tive medo de mudar, meu primeiro voto pra presidente foi pra Lula, com muita alegria. e nem entendi direito por que ele perdeu.
ele era meu espelho.
sou filha de classe média baixa, nascida num bairro paulistano que à época tinha conotação periférica. meu pai, artista cheio de ideais, perdia o emprego a toda hora.
não raro minha mãe, formada em farmácia mas impedida de trabalhar porque não tinha quem mais pudesse cuidar de nós, pedia à vizinha açúcar pra adoçar o café.
não possuíamos carro, telefone, tevê em cores, queijos amarelos, boneca susie. a bicicleta da família veio da rifa que minha tia ganhou. eu nem mesmo tinha um quarto. dormia no sofá da sala.
assim que seu patrão descobriu que minha mãe estava grávida de mim, demitiu-a. não havia lei para protegê-la. uma mulher não deveria vacilar. quando eu tinha doze anos, minha mãe passou num concurso público e a nossa situação mudou um pouco.
na minha infância, naquele bexiga ainda descendente de Alcântara Machado, eu experimentei outra periferia. a rua ainda era minha, gaetaninha. a gente brincava de esconde-esconde debaixo dos carros sem temer o perigo. é bem verdade que uma colega de escola foi morta pelo namorado PM, mas só alguns anos depois.
eu era muito feliz até a escola chegar. não percebia nossa pobreza. mas tivemos de estudar como bolsistas num colégio particular, porque o Caetano de Campos, público, nos recusou a vaga, e só então nosso despossuir o mundo ficou visível.
meu ímpeto de lutar começou nessa escola que não nos deixava frequentar a piscina nem com atestado médico, enquanto as crianças ricas – separadas de nós por um corredor humano de professores que nos proibia de ir à cantina (“pobre não tem dinheiro pra gastar em lanchonete”) – nadavam sem exame livremente.
sempre precisei contar com a ajuda de professores sensíveis a nossa causa. sempre lutei por nossa visibilidade. eles gostavam de mim porque eu era pobre e estudiosa, com energia pra compreender e pra reclamar.
ganhamos, com menos aulas que os estudantes do ensino pago, a primeira olimpíada de matemática da escola. (mas eu não era boa em matemática; tínhamos um gênio na turma).
a medalha nos trouxe benefícios. continuamos a ter menos carga horária que os ricos, mas a escola aceitou nos ensinar línguas (vínhamos proibidos de aprender inglês e alemão, ao contrário do que ocorria com os ricos, até a sétima série).
tantas restrições à igualdade construíram em mim um caráter lutador. “I’m a responder and a survivor”, disse Quincy Jones no documentário da netflix. uma frase ótima, que me explica em parte.
tudo isto resumidamente pra lhes dizer que vou resistir como puder a esse estado bárbaro, de negação ao que somos e representamos, e que lembra minha infância difícil (embora feliz). é uma maneira de ser que pertence a mim.
as mulheres brasileiras não merecem o que vivem. a ninguém deveria ser permitido estampar no rosto as cicatrizes da irracionalidade.
votei útil no candidato ao governo estadual que agora se recusa a apoiar a única oposição possível ao retrocesso. e estou bem chateada, porque, como disse a vocês, eu não era disso e concedi.
contudo, é o que o tempo nos faz. ele não nos traz sabedoria, como dizia o hemingway, mas espírito de cautela. é bom ocasionalmente exercer esse espírito, mas na maioria das vezes, constato, não tem serventia ser cauteloso. não adianta querer calcular o futuro, controlá-lo. o sistema trabalha direitinho pra si, mas principalmente pra si.
com relação ao governo do estado, penso apenas, neste momento: que se devorem os candidatos. há muito tempo vivemos politicamente sob sequestro. a briga é entre eles. vamos pensar pra frente.
porque eu sinto ainda ter uma bicicleta, que seja aquela da rifa, para percorrer assoviando os trigais imaginários, rindo deles.