Em “Elegia de Osaka”, o diretor Kenji Mizoguchi olha nos olhos da mulher

À moda de um cabo USB gasto, eu talvez tenha tardado a ligar algumas baterias do cinema, nem sempre acesas para Kenji Mizoguchi (1898-1956). No passado, os contos da lua ainda pareciam por demais vagos à jovem que eu era, ansiosa pelo presente. Que difícil assistir a seus filmes sobre o Japão antigo enquanto aquele Ozu dos relativamente recentes anos 1960 sentava-se à minha mesa baixa, servia-me o chá e me dava bom dia em pedra pomes, todos os dias…
O cinema japonês me enchia de respostas, e eu não lia, nele, preciosas interrogativas. Infortúnio de quem consome a todo instante a própria juventude: ou esse cinema espelhava meu momento, e tive tantos fincados na adolescência, ou ele pouco me serviria à vida, à minha formação de lacunas.
Recentemente, contudo, ao contrário de 30 anos antes, tenho me visto boquiaberta com Mizoguchi. O apreço do diretor pela mulher como um emblema de renovação, contra todos os sinais do fascismo, deve ter sido vital para que Shohei Imamura, por exemplo, construísse nos anos 1970 alegóricas narrativas sobre a figura feminina, tornando-a a terra, a base, o chão em que o japonês pisa. Mizoguchi começou tudo isso sendo um interrogador direto das opressões encobertas à véspera da Segunda Guerra, numa encenação avançada, realista, promovida dez anos antes dos neorrealistas.
Estrito, geométrico, esfumaçado como um sonho ruim, seu “Elegia de Osaka”, de 1936, a que acabo de assistir em DVD (O Cinema de Mizoguchi vol.2, da Versátil), é uma explosão miraculosa, a começar pela primeira sequência, quando o letreiro iluminado da noite urbana lentamente se apaga ao chegar o dia – e o espetáculo inventivo de luz desemboca na aurora cinza. Somente esta abertura, ao aludir à distopia, bastaria para pressentir o ocaso a aguardar aquela Osaka pulsante, ocidentalizada, miserável, moderna.
A história, que transcorre por ruas reais da cidade, seu metrô e seus conjuntos habitacionais, gira em torno de Ayako (pela brilhante Isuzu Yamada), telefonista de indústria farmacêutica à mercê do jogo masculino. O pai, que cometeu uma falcatrua, apoia-se no seu trabalho e espera poder melhorar de vida quando o filho, a quem a família sustenta, se formar na universidade. E o presidente da empresa onde Ayako trabalha, que a assedia para fugir da mulher (esta curiosamente ocupada em dirigir uma associação feminina), vai lhe abrigar numa garçonnière. Ela contudo insistirá em ser transparente e altiva, comportamentos que a sociedade tornará vizinhos da delinquência.

para evocar o real
Ah, esse Japão tão sofrido, traduzido em um momento do filme por um teatro de bonecos… A clareza com que tudo é dito em planos que tudo abarcam, mesmo antes de a profundidade de campo surgir!
O que será de nós se a história não puder ser contada pelos filmes?

ELEGIA DE OSAKA
Dir.: Kenji Mizoguchi
1936
No dvd “O Cinema de Mizoguchi vol 2” (Versátil)