Sadao Yamanaka, presente

O sargento Yasujiro Ozu e o soldado Sadao Yamanaka em 1938.

Os dois grandes amigos e cineastas preparam-se aqui para servir o exército japonês na Manchúria. E Yamanaka morrerá pouco tempo depois do dia em que esta foto é feita, em 1938.

Yamanaka partiu aos 28 anos. Havia feito 24 filmes em cinco anos. Apenas três restaram. Um deles, “Humanidade e Balões de Papel”, de 1937, fez tudo antes de tudo – do neorrealismo, da commedia all’italiana.

Eis um artista que se tentou, sem sucesso, apagar.

Obrigada, sr. Kudo

Eiichi Kudo, o diretor
de “Onze Samurais”

Todos conhecemos Os Sete Samurais e amamos Akira Kurosawa, possivelmente, mais do que muitos outros diretores de cinema dos tempos todos. Mas quantos de nós já ouvimos falar do Onze Samurais de Eiichi Kudo, e de Kudo ele-mesmo? Seremos poucos. Eu, por exemplo, não o conhecia até ontem. Creio que padeço de ignorar em grande parte o mais belo cinema imaginado ou feito.

A inútil vingança

E é por isso que as mostras de cinema da atualidade me dão tão poucas esperanças. Elas não me levarão até eles. Filmes como Onze Samurais, que constroem imaginação e liberam consciência, não podem ser mais feitos. Reais a ponto de os galhos se emaranharem diante da câmera na hora devida, de o sol penetrar inteiro na clareira de uma floresta que se fecha quando o guerreiro vislumbra sua tarefa. Um filme sobre tempestades.

Sangue sob chuva

Acho que padecemos de ver. Esquecemos de sentir. Nossos filmes atuais são até capazes, e muito, de perceber que temos problemas. Eles identificam dores. Mas, além de identificar, o que o cinema deve fazer? Penetrar, não é? Ser cinema. Ser a intensidade, a linguagem, o som, o movimento, a hora do sonho e do desvelo. Mas estamos muito ocupados identificando coisas para que penetremos nelas.

A face do amor

Onze Samurais foi feito em 1967 e é assim. Uma penetração (gosto da palavra) no profundo cinema desde os minutos iniciais, quando uma coreografia de cavaleiros, seus chapéus, quimonos, armas, sai atrás de um animal inocente, para satisfazer um senhor insensível. Um cinema desses nem precisaria ter som, mas tem, pós-colocado em descompasso, sonoplastizado, a indicar que estamos diante de um filme, de um pensamento visual que constrói o drama a partir da coreografia, da beleza fragmentada em inúmeros pedaços.

Nos pedaços da paisagem

Eiichi Kudo (1929-2000) não viveu tanto, 71 anos, para a quantidade de filmes que fez, 30 deles entre os anos 1956 e 1998. Nos anos 1970, sobreviveu da televisão e de suas sagas. Por “Onze Samurais”, que fecha uma trilogia, entendemos suas razões. Seu filme contém a vibração cinematográfica de toda a história. Tem Kurosawa ali percorrido, do mesmo modo que Godard, guerra, amor, paz, Shakespeare, Tolstoi.

E, ainda assim, eis um filme inocente, sobre arrogância e descoberta, solidariedade e vingança, sobre o ardor desperdiçado que é viver.

Não se pode existir o tempo todo para fazer filmes assim.

Senhor Kudo, obrigada pelo que nos deu.

Uma das melhores coisas que a Netflix tem para nós

A mulher que sou aconselha os leitores que tenho a acompanhar esta encenação da trajetória de um diretor pornô

Takayuki Yamada vive Toru Muranishi em “O Diretor Nu”

Meu blog, meus problemas.

Tive sempre muitos deles ao escrever sobre cinema na valorosa imprensa deste grande país.

Meu principal, talvez único obstáculo na direção desse intuito, foi mesmo ser mulher. Eterna fonte de contraditório, paradoxo e energias ruins, minha expressão nessa área jamais se viu autorizada por ninguém. E não fui a única interrompida, claro. É fácil contar quantas mulheres receberam admissão nesse círculo em tantas décadas de ofício nacional. Enquanto os homens o percorreram infinitamente.

E talvez porque quase não houvesse espaço para uma sensibilidade, diga-se assim, feminina e sutil de escrita sobre o cinema, tratava-se no fim de uma condição vetada a nós. Como se ser mulher não dialogasse com a criação, a linguagem cinematográfica, com sua invenção. Elas eram tão boas montadoras, excelentes produtoras, figurinistas e fofoqueiras de Hollywood! Mas críticas de cinema? Que exagero, gente. Só faltava quererem dirigir filmes…

Ainda assim, sempre que pude, enquanto jornalista cultural, escrevi sobre o assunto. E nunca temi dizer o que pensava. Mas sofri. Escorraçada pelo meio, pelos próprios colegas, jogada num canto da sala, como se meus comentários sofressem de uma espécie indesejada de exotismo, fui seguindo, como sempre, distraída para a exclusão.

Voilà, isto tudo passou. Mas só porque não escrevo mais para a imprensa. Pesquisei o assunto no meu mestrado e doutorado. Escrevo aqui. Escrevo pra vocês. Escrevo pra mim. É muito melhor assim.

O diretor Toru Muranishi, que inspirou a série, e suas atrizes

E tudo isso só pra introduzir que o melhor da netflix, por exemplo, vou dizer eu sozinha por aqui. O melhor pra mim é algo como a série japonesa “O Diretor Nu”, que espetaculariza a trajetória de Toru Muranoshi, de 73 anos, um diretor pornô a ter revolucionado a indústria a partir do VHS com a câmera na mão, a abertura a novas abordagens, o desafio a vender suas ideias e se ver, adivinhe só? Interrompido em todas as áreas, da polícia à máfia, dos bancos às empresas.

Amei a série porque ela não romantiza nada. Ou, pelo menos, não o essencial. Fazer qualquer cinema de verdade é mesmo uma questão de vida ou morte, dizem os roteiristas de “O Diretor Nu” (dez ao todo). É arriscar-se não só com a yakuza, mas com seus amores no cotidiano, sua liberdade de ir e vir, o próprio direito de exercer a felicidade. E é também errar bastante, especialmente com as mulheres que se dedicam a você.

Com Yuri Tsunematsu

As coisas nesta série em duas temporadas são muito bem feitas desde a interpretação de grandes atores e cômicos, a direção de arte, a fotografia funcional brilhante, o figurino de época, a trilha pop livre de compromisso histórico, até os ângulos e paisagens. “O Diretor Nu” não aborrece, antes diverte, tensiona, ridiculariza o próprio meio, o país, sua polícia corrompida. Tem drama, humor, exagero, ritmo, tudo na tradição de excelência japonesa.

Se eu pudesse dar um conselho aos loucos por “Breaking Bad”, diria que olhassem na direção Leste…

O DIRETOR NU (2019-2020)

Diretores: Masaharu Take, Hayato Kawai, Kôtarô Gotô e Eiji Uchida.

Elenco: Takayuki Yamada (Toru Muranishi), Shinnosuke Mitsushima (Toshi), Misato Morita (Kuroki), Yuri Tsunematsu (Mariko Nogi) e outros.

Netflix, duas temporadas.

Navegar é preciso

Takashi Shimura em “Viver”,
de Akira Kurosawa, 1952

A gente precisa ter muito carinho pelas pessoas num momento como este. Num post anterior disse que pouco me ficou da Folha além da amizade prolongada e cúmplice com o Renato Pompeu. Mas fui injusta. Tenho amigos vindos de lá ainda, que reencontrei no face. E que são pessoas incríveis.

Eu falava de uma cumplicidade que só tinha mesmo com o Renato. Uma visão ampliada do caos, da indignidade que era a vida naquele jornal.

De resto, queria dizer que o facebook traz mesmo pessoas mais perto de nós. É muito bom conhecer gente cheia de experiências tão novas, e com alguma proximidade. Mas, é claro, temos de ter cuidado com isso também. Ou eu preciso. Às vezes me empolgo demais e me decepciono. Como na vida, certo?

Viver! “Viver” que é um filme de Kurosawa, finalmente conhecido por mim ontem, a nos trazer com tanta intensidade o sentido do tempo. A um minuto antes do fim, ainda podemos fazer algo que mude nossa direção nessa barca da vida que vai dar em nada.

Vejam! Por mim!

Um sonho ruim

Em “Elegia de Osaka”, o diretor Kenji Mizoguchi olha nos olhos da mulher

Isuzu Yamada como Ayako no esfumaçado “Elegia de Osaka”, 1936

À moda de um cabo USB gasto, eu talvez tenha tardado a ligar algumas baterias do cinema, nem sempre acesas para Kenji Mizoguchi (1898-1956). No passado, os contos da lua ainda pareciam por demais vagos à jovem que eu era, ansiosa pelo presente. Que difícil assistir a seus filmes sobre o Japão antigo enquanto aquele Ozu dos relativamente recentes anos 1960 sentava-se à minha mesa baixa, servia-me o chá e me dava bom dia em pedra pomes, todos os dias…

O cinema japonês me enchia de respostas, e eu não lia, nele, preciosas interrogativas. Infortúnio de quem consome a todo instante a própria juventude: ou esse cinema espelhava meu momento, e tive tantos fincados na adolescência, ou ele pouco me serviria à vida, à minha formação de lacunas.

Recentemente, contudo, ao contrário de 30 anos antes, tenho me visto boquiaberta com Mizoguchi. O apreço do diretor pela mulher como um emblema de renovação, contra todos os sinais do fascismo, deve ter sido vital para que Shohei Imamura, por exemplo, construísse nos anos 1970 alegóricas narrativas sobre a figura feminina, tornando-a a terra, a base, o chão em que o japonês pisa. Mizoguchi começou tudo isso sendo um interrogador direto das opressões encobertas à véspera da Segunda Guerra, numa encenação avançada, realista, promovida dez anos antes dos neorrealistas.

Estrito, geométrico, esfumaçado como um sonho ruim, seu “Elegia de Osaka”, de 1936, a que acabo de assistir em DVD (O Cinema de Mizoguchi vol.2, da Versátil), é uma explosão miraculosa, a começar pela primeira sequência, quando o letreiro iluminado da noite urbana lentamente se apaga ao chegar o dia – e o espetáculo inventivo de luz desemboca na aurora cinza. Somente esta abertura, ao aludir à distopia, bastaria para pressentir o ocaso a aguardar aquela Osaka pulsante, ocidentalizada, miserável, moderna.

A história, que transcorre por ruas reais da cidade, seu metrô e seus conjuntos habitacionais, gira em torno de Ayako (pela brilhante Isuzu Yamada), telefonista de indústria farmacêutica à mercê do jogo masculino. O pai, que cometeu uma falcatrua, apoia-se no seu trabalho e espera poder melhorar de vida quando o filho, a quem a família sustenta, se formar na universidade. E o presidente da empresa onde Ayako trabalha, que a assedia para fugir da mulher (esta curiosamente ocupada em dirigir uma associação feminina), vai lhe abrigar numa garçonnière. Ela contudo insistirá em ser transparente e altiva, comportamentos que a sociedade tornará vizinhos da delinquência.

Um teatro de bonecos
para evocar o real

Ah, esse Japão tão sofrido, traduzido em um momento do filme por um teatro de bonecos… A clareza com que tudo é dito em planos que tudo abarcam, mesmo antes de a profundidade de campo surgir!

O que será de nós se a história não puder ser contada pelos filmes? 

ELEGIA DE OSAKA

Dir.: Kenji Mizoguchi

1936

No dvd “O Cinema de Mizoguchi vol 2” (Versátil)