um jornalista se vai, mas há muito o jornalismo se foi

Soube de Marcelo Beraba, jornalista que morreu hoje, em dois momentos. O primeiro deles, quando ele era diretor da sucursal do Rio da Folha e eu, redatora de Geral, em São Paulo. Não nos conhecíamos pessoalmente, mas nos falávamos por telefone. Comigo, era correto e gentil.

Pedi demissão da Folha em 1988 e, alguns anos depois, fiz a besteira de participar de uma seleção para trabalhar novamente nela, desta vez na Ilustrada. Sim, uma seleção para redator com questionário e tudo. Beraba leu minhas respostas, gostou muito delas e, na minha frente, durante a entrevista final, perguntou à editora do caderno por que ela riscara tudo o que eu escrevera. “Alguma coisa errada aqui?”, questionou. Ela não respondeu. Riu.

Fiquei com essa impressão boa do desafio que ele fez à autoridade do caderno, diante de mim. Ah, se todos os profissionais trabalhassem com critérios profissionais! Embora eu esperasse que um secretário de redação fosse mais decisivo do que Beraba foi naquele momento para mim, hoje compreendo suas razões. Ele não poderia ter desautorizado, diante de uma estranha, alguém que Otavinho escolhera para comandar o caderno. E como o secretário poderia saber que o concurso era só uma formalidade? A vaga de redator já tinha dono, alguém sem caráter, por sinal, com quem vim a trabalhar anos depois.

Deve ter sido um bom profissional, o Beraba. E eu sinto muito por sua morte agora, aos 74 anos.

O encanto revolucionário de Godard

Livro da historiadora francesa Nicole Brenez, lançado durante homenagem no Sesc, refaz a trajetória do cineasta como um pensador de ação, inspirado nos românticos alemães

Jean-Luc Godard em Berkeley, 1968, na foto de Gary Stevens: a transformação não descarta o chiste

Uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação. Eis o que Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas oferece a seu leitor, por meio de um impressionante fluxo reflexivo. Publicado originalmente na França pela editora De l’incidence éditeur, há dois anos, e a ser lançado no Brasil às 19h30 do dia 15 de julho de 2025 pela Desconcertos, em mesa-redonda na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, o livro da historiadora e crítica de cinema francesa Nicole Brenez integra vasta programação daquela unidade em homenagem ao cineasta, morto em 2022, aos 91 anos. Haverá até o dia 25 um ciclo de filmes, dois cine-concertos e um curso no Sesc Avenida Paulista a partir da perspectiva crítica e política apresentada no livro (veja a programação ao final deste texto).

Nicole Brenez, de 64 anos, professora da Universidade Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), historiadora, crítica e programadora de sessões de vanguarda da Cinemateca Francesa, define-se como uma pirata a serviço de Godard. Ela admira seu espírito de contradição tanto quanto sua energia contestatória, o prazer pelo chiste tanto quanto o empenho revolucionário pelo cinema e pela transformação social, além de sua capacidade de revelar o desconhecido no conhecido, como um poeta e um filósofo fariam. Brenez nos propõe um caminho para decifrar a originalidade de Godard ao desenhar seu percurso intelectual. De forma talvez surpreendente, ela vê o pensamento do cineasta fundado no romantismo alemão, que pregava a “liberdade integral de auto-determinação”.

Para Brenez, Godard é o “Goethe dos séculos XX e XXI”. Cada filme seu propõe uma forma organizacional diversa, inverte uma estrutura singular, conforme faziam os escritores sob a perspectiva romântica. O romantismo alemão floresceu no final do século XVIII e início do século XIX como uma reação ao racionalismo iluminista, valorizando a emoção, a subjetividade e a imaginação. Como os românticos, Godard terá vivido de contradizer as grandes ordens da estética clássica e preconizado a diversidade formal, a variedade sem fim, munido do que a autora denomina Witz, um poder eletrizante para praticar a montagem do pensamento e desfazer simbolicamente o poder, este que também não passa de um conjunto de símbolos. 

E então há que buscar em outro romântico, Karl Wilhelm Friedrich Schlegel (1772-1829), um fundamento para o ocasional exercício da obscuridade de que tanto Godard é acusado, talvez não sem razão. Ser obscuro se faria necessário para ele, tanto quanto para Schlegel, porque os dois teriam entendido que a compreensão total é impossível, dado o caráter caótico e contraditório de todos os seres. Além disso, o cineasta exerceria o Cinismo grego, que, surgido no século IV a.C., dilacerava com belos dentes toda forma de alienação, conformismo e superstição. E, claro, Godard também se apoiaria em outro alemão, o Karl Marx que transformou a especulação filosófica em ação.

Em “A Chinesa” (1967), a revolução vermelha de Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto

Até 1968, Godard buscou desvelar o poder por meio de obras como “A chinesa”, mas, a partir de então, fez filmes fundados na contra-informação, à moda do que empreendia o diretor Chris Marker para furar as falsas verdades do poder. A energia emancipatória de sua luta, para usar uma expressão repetida pela pesquisadora no livro, foi renovada de forma constante. Os últimos filmes de Godard são construídos sem personagens e sem narrativas, a partir de um esquema visual feito à mão, principalmente à base de imagens reempregadas, concebido em parte como multitelas e, no final, exibido de todas as maneiras e em todos os canais, exceto em uma grande sala de cinema comercial. Ele fez um cinema para o qual o sofrimento humano é o princípio a ser encarado e revisto. “Já está na hora de o pensamento voltar a ser o que é na realidade: perigoso para o pensador e transformador da realidade”, conforme ensinou Denis de Rougemont.

Nas fotos reempregadas de Imagem e Palavra (2018), o ponto de partida é o sofrimento

Brenez conheceu Godard em uma ocasião na qual o diretor decidiu exibir para alguns pesquisadores sua pré-montagem de “Imagem e Palavra”, filme de 2018. (Sim, Godard trabalhou em colaboração por toda a vida). Brenez foi até lá munida de lápis e papel para fazer anotações, e Godard se incomodou com isso de início, por achar que, ao escrever durante a sessão, ela se distrairia do filme. No dia seguinte, pediu-lhe suas notas, que continham sugestões de paralelos com as sequências apresentadas no filme. Godard se encantou com suas ideias e os dois iniciaram uma correspondência por email que durou até a morte do diretor, quatro anos depois. 

Em seu livro, Brenez mostra alguns emails que recebeu do diretor. “Cada mensagem eletrônica de Jean-Luc Godard oferece uma pequena obra (opus) fundada no prazer de inventar simultaneamente ligações entre o título e o corpo do texto, ressonâncias novas entre imagem e linguagem, fraturas com capacidade de desabrochar as palavras em flores cubistas. O Witz no cotidiano. Nada aí permanece na quietude falaciosa dos usos. Até o fim, o telefone continuou sendo uma máquina de criar”, ela escreve. Contudo, mostra apenas uma de suas respostas ao diretor. Um dia, talvez queiram fazer um livro sobre esta sua correspondência com ele, mas ela mesma não fará. O que a consome agora é um grande projeto para mostrar a correspondência do autor com os profissionais de cinema de todo o mundo.

A seguir, suas respostas a minhas perguntas, feitas por email.

Nicole Brenez, autora de Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema
e outras artes fílmicas: pirata a serviço do cinema transformador

Em que momento você decidiu que precisava escrever este livro? Quanto tempo levou para terminá-lo? Teria sido o próprio Godard a lhe pedir que o escrevesse?

A decisão de criar este livro me ocorreu cerca de uma semana após o suicídio de Jean-Luc Godard, na manhã de 13 de setembro de 2022. Tratava-se, se não de sair do luto, pelo menos de fazer algo com ele para escapar do desamparo e da consternação. Jean-Luc não estava bem havia semanas, sua saúde se deteriorava, e quando lhe enviei uma mensagem, em 20 de agosto de 2022, tive a profunda intuição de que seria a última. Então, tentei escrevê-la da forma mais concisa e breve possível, para não cansá-lo, mas também da forma mais afetuosa e “perspectivista” possível, porque queria dizer-lhe que, ao contrário do que ele às vezes declarava – ou seja, que ninguém se interessava por seus novos filmes – sua obra estava sendo vista e debatida em todo o mundo pelas novas gerações, em particular porque agora, disponível integral e gratuitamente em sites piratas, persiste e ressoa cada vez mais. No entanto, nada nos prepara para a morte, não sabemos como a psique reagirá a ela. Para mim, como para muitos cinéfilos, esse desaparecimento já corresponderia a uma data na história do cinema, uma página prestes a virar, um baluarte contra o cinema industrial prestes a ruir. 

Após o anúncio do suicídio, tive o mesmo reflexo que meu amigo e colega David Faroult, outro especialista nesse trabalho. Percebemos isso em retrospectiva. Começamos a ouvir todas as entrevistas com JLG disponíveis na internet, como se fosse uma questão de ainda nos banharmos nas vibrações de seus pensamentos, de nos envolvermos neles para nos sentirmos menos infelizes. E se éramos dois, tenho certeza de que outros tiveram o mesmo reflexo.

Então, este é um pouco da atmosfera concreta da qual nasceu este trabalho, com uma loucura como projeto: que o livro existisse em 3 de dezembro de 2022, ou seja, na data de aniversário de JLG, que naquele dia teria completado 92 anos. Quase conseguimos: o livro foi concebido, estruturado, coletado, escrito, concluído, diagramado em três meses; mas tivemos que esperar até 3 de fevereiro de 2023 para que fosse distribuído nas livrarias, o tempo necessário para que voltasse da gráfica, fosse distribuído, etc. Como muitas vezes levo anos para escrever meus livros, este é, nesse aspecto, muito excepcional e eu o amo ainda mais por isso: uma vida de pesquisa racional (meu primeiro curso sobre Jean-Luc Godard data da década de 1980) e três meses de loucura gastos na escrita.

É claro que o próprio Jean-Luc não pediu para que este livro acontecesse. Sempre me surpreendi ao vê-lo me contatar, ele que parecia não ter o menor interesse, ou mesmo ser hostil, ao que escreviam sobre ele. Ao longo do trabalho que desenvolvi em sua companhia, tentei não me colocar na posição de exegeta, não lhe fazer perguntas sobre seus filmes anteriores, mas manter-me no presente em sua criação. Contudo, atendi a alguns pedidos desse tipo, como o do grande diretor de fotografia Pierre William Glenn, que precisava do depoimento de Jean-Luc para um documentário que estava preparando sobre seu amigo Johnny Halliday – você pode ler o resultado no livro.

Seu livro me pareceu uma jornada pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida por meio do cinema, entendido como uma arte de transformação. Às vezes, parecia denso, e a princípio busquei cada referência que ele abordava. Então, percebi que deveria percorrê-lo como se estivesse sendo levado pelo fluxo de ideias, histórias e conceitos que este manifesto de encantamento (digamos assim) contém. No final, percebi que é um livro que captura o leitor não apenas racionalmente, mas emocionalmente, levando-o a compreender os fundamentos de sua maneira única de fazer cinema — a maneira Godard. Meu modo de ler o livro é aceitável? Como você aconselharia os leitores a abordarem seu livro?

Muito obrigada por esta expressão, “uma viagem pelo conhecimento e pela ação revolucionária exercida através do cinema, entendido como arte de transformação”. Não poderia sonhar com uma abordagem melhor. E, na minha opinião, ela também resume perfeitamente a obra do próprio Jean-Luc Godard, que ao longo de sua vida buscou revolucionar o cinema: em sua escrita, no tratamento de seus temas, em sua relação com a realidade, em suas apostas políticas, em sua organização material, em sua logística, no uso de seus instrumentos… Nenhuma dimensão do cinema escapou às suas iniciativas revolucionárias. 

Em Friedrich Schiller, a inspiração para uma liberdade que se tornaria civil

Um dos aspectos a que ele frequentemente retornava diz respeito à organização concreta e material do cinema: ele explicava que uma equipe de filmagem formava uma pequena sociedade provisória e que, portanto, deveria ser fácil começar revolucionando as relações hierárquicas e de trabalho ali reinantes, de modo a começar a revolução por algum lugar. Nesse ponto, tão significativo em sua carreira acredito ter sido ele haver encontrado espontaneamente uma dupla influência: a de Friedrich Schiller e a do Romantismo alemão, que considerava a obra de arte um modelo de liberdade, precursora de uma liberdade que se tornaria civil; e a do Grupo Cine Liberación, de Fernando Solanas e Octavio Getino, redefinindo a prática do cinema com base em modelos de guerrilha, estes segundo os quais, em uma equipe, cada membro pode ser substituído por qualquer outro em caso de prisão, lesão ou morte.

Quanto ao livro, cada um o lerá como quiser, isso é óbvio; mas creio que todos começam lendo as mensagens do próprio Jean-Luc. De qualquer forma, é o que eu também faria se outra pessoa o tivesse publicado! Cada mensagem de JLG oferece uma pequena obra em si mesma e mostra até que ponto cada uma de suas ações, mesmo as mais técnicas, triviais, por exemplo, organizar uma reunião, se tornou uma oportunidade para criar, inventar, sorrir, de uma forma lúdica e alegre que, a meu ver, vem de muito longe, de toda a cultura do chiste de protesto atestada pelos cínicos gregos como Diógenes, por exemplo, e cuja teorização culmina com o Witz dos românticos, ao qual dediquei um estudo. Essa cultura do Witz, que passa por Baltasar Gracián, Diderot, Karl Marx, os surrealistas, os irmãos Marx… era congênita a ele, e a vemos funcionar cotidianamente nas mensagens que ele enviava de seu celular e que são pequenas montagens maravilhosas entre título, texto e imagem.

A riqueza das cartas de JLG conhecidas até o momento (ele publicou várias na Cahiers du cinéma, em particular) me lançou em uma empreitada que exigirá várias gerações de pesquisadores: publicar a correspondência de Jean-Luc Godard. Dois volumes já estão em preparação: sua correspondência com o curador e diretor de instituições culturais francês Dominique Païni; e com a cineasta suíça Danielle Jaeggi. Por isso, lanço um apelo a você: se tiver conhecimento da existência de correspondência com cineastas, artistas, críticos e programadores brasileiros, por exemplo, o caso mais evidente, Glauber Rocha, escreva-me!

Seu livro mostra Godard em contato constante com diferentes grupos de cineastas e técnicos. Ele buscava reavaliar sua própria obra e incorporar novas técnicas para concretizar sua atuação como diretor de cinema. Você acha que outros cineastas em contato com Godard souberam fazer isso de forma semelhante? Quem são seus maiores discípulos? Ou, melhor ainda, é possível seguir os passos de Godard no cinema, dada a singularidade e originalidade de sua expressão?

Esta é uma boa pergunta. Um cineasta verdadeiramente godardiano obviamente fará de tudo para evitar imitar Jean-Luc Godard e, como ele fez, encontrar o caminho para sua própria liberdade. Alguns cineastas o seguiram diretamente, como Chantal Akerman, respondendo a Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas, 1965) com Saute ma ville (1971); Philippe Garrel a Masculin Féminin (Masculino-Feminino, 1966), com seus primeiros filmes; ou Rainer Werner Fassbinder, a La Chinoise (A Chinesa, 1967), com Die Dritte Generation (A Terceira Geração, 1979). 

Mas, acima de tudo, há uma linhagem magnífica de artistas que segue explicitamente os passos dos grandes ensaios de JLG e Jean-Pierre Gorin e que brilhantemente concretizaram essa herança formal: a linhagem de diretores como o tcheco Harun Farocki (1944-2014), Hartmut Bitomsky (nascido na Alemanha em 1942) e o romeno Andréi Ujică (nascido na Romênia em 1951). Juntos ou separadamente, eles criaram poderosos ensaios cinematográficos dedicados a muitos assuntos diferentes (a comercialização da vida, a sociedade de controle, a indústria militar, o papel paradoxal da televisão na revolução, o jogo de atuação, etc.), mas, como JLG, afirmaram e desenvolveram os poderes críticos da imagem e do som. 

Harun Farocki também dedicou-lhe Speaking about Godard (Falando sobre Godard, NYU Press, 1998), em conversa com Kaja Silvermann, um pouco como JLG e Anne-Marie Miéville conversaram em Soft and Hard (Soft Talk on a Hard Subject Between Two Friends): Speaking about Godard (Conversa suave sobre um assunto difícil entre dois amigos: Falando sobre Godard, vídeo-ensaio de 1998, com 52 minutos de duração). O professor de Cinema da Universidade de Zurique Volker Pantenburg escreveu um excelente resumo sobre o assunto, Farocki/ Godard: Film As Theory (Farocki/Godard: O filme como teoria, editora Amsterdam University Press, 2015). 

No alto, três mensagens a Nicole que trabalham o autorretrato do diretor. Acima, Godard com seus cães Roxy e Loulou

É muito tocante a maneira como você decidiu mostrar Godard por meio dos e-mails que o diretor lhe mandou. Seu rosto, seus cachorros! (Você os conhecia? Sabe os nomes deles?) Mas por que não mostrou a nós, leitores, a troca completa de e-mails entre você e ele? Pretende fazer isso no futuro?

Os cães se chamam Roxy e Loulou; Roxy Miéville foi a protagonista de Adeus à Linguagem (Adieu au langage, 2014). Quanto à correspondência, não quis mostrá-la como tal, ou seja, na forma de trocas; mas precisamente especificando a natureza de obra, de pequena obra, de cada uma das mensagens de Jean-Luc. Se um dia nossa correspondência fosse publicada, certamente não seria por mim, talvez depois da minha morte, daqui a uma ou duas gerações, se a espécie humana ainda existir e se interessar por cinema…

Quais das suas notas sobre Imagem e Palavra (Le livre d’image, 2018), dadas a Godard, foram incluídas no filme?

Eu preferiria não responder a essa pergunta, preferiria que minhas sugestões se encaixassem de todo no trabalho geral, para isso elas foram feitas.

Entre suas notas sobre Imagem e Palavra, há uma sugestão de incluir filmes feitos por mulheres árabes. Ele aceitou? Se sim, quais desses filmes ele citou?

A esta pergunta, porém, respondo com prazer, pois me permite evocar duas das pessoas mais magníficas que tive a oportunidade de conhecer. Imagem e Palavra cita filmes de Moufida Tlatli, Safia Benhaïm, Wiam Simav Bedirxan e Jocelyne Saab. Na minha memória, as três primeiras já estavam presentes. Jean-Luc conhecera Jocelyne Saab durante suas viagens ao Oriente Médio para empreender Jusqu’à La Victoire – Méthodes De Pensée Et De Travail De La Révolution Palestinienne (Até a Vitória – Métodos de Pensamento e Trabalho na Revolução Palestina, 1970), filme assinado pelo grupo Dziga Vertov. 

Ambos tinham um grande amigo em comum, o escritor e diplomata Elias Sanbar. Em 2018, Jocelyne já sofria da doença que a tiraria a vida e, com a Editions de l’œil, buscávamos publicar, ainda em vida, um álbum de suas fotografias e fotogramas, nos quais ela trabalhava em seu leito de hospital. Precisávamos urgentemente de dinheiro e, sem hesitar um segundo, Jean-Luc ofereceu todo o valor necessário para a publicação do que apareceu sob o título Zones de guerre (Zonas de guerra) e que foi, sem dúvida, a última alegria de Jocelyne. Em 4 de dezembro de 2018, Jocelyne dedicou um exemplar a Jean-Luc em seu aniversário; e ela partiu em 7 de janeiro de 2019. Ela lhe escreveu: “Meu caro produtor, querido Jean-Luc, eu gostaria de estar ao seu lado para lhe desejar um feliz aniversário. Sem você, este livro jamais teria existido. É uma alegria compartilhar os créditos com você. Jocelyne Saab, 3 de dezembro de 2018.” 

Este caso particularmente comovente me permite evocar a incrível generosidade de Jean-Luc. Ao longo de sua vida, ele ajudou muitos cineastas e pessoas de diversas maneiras, financeiramente ou por outros meios, para sua criação, para sua vida ou para sua sobrevivência. Mas, como todas as pessoas verdadeiramente generosas, ele nunca mencionou isso. Como resultado, sua imagem pública, alimentada por provocações, conflitos e farpas de todos os tipos, está em grande desacordo com sua pessoa privada.

Você diz que o filme Imagem e Palavra se opõe às religiões da Biblos Mística. O que é a Biblos Mística? Por que lutar contra ela? Como Godard combateu isso?

Biblos é o Livro, pois dita a Lei, exemplarmente o que no Ocidente chamamos de Bíblia, um estranho agregado de fábulas e prescrições que conseguiu impor-se durante dois milénios e em nome do qual se cometeu a pior violência imperialista, colonial, racista, sexista, sexual, intelectual… Construir um mundo sem as aberrações e divisões falaciosas ligadas a uma religião doutrinária (que não equivale, evidentemente, a um sentimento religioso, místico ou animista), foi um sonho e um esforço nascido do Iluminismo e prosseguido até ao século XX, por vezes com algum sucesso, como o laicismo republicano na França, por vezes com tanta aberração quanto o antagonista, como as perseguições religiosas na União Soviética ou mesmo hoje, na China comunista. Contra a comprovada violência histórica de Biblos e Logos, Imagem e Palavra aposta no poder libertador da imagem, pela sua polissemia, pela sua imprecisão, pela sua profundidade, pela sua volatilidade, pelo seu caráter multidimensional (a imagem é também concreta, psíquica, material, cultural, descritiva, alegórica, criativa, ilustrativa, etc.) 

Jean-Luc fez parte de uma geração que podia acreditar que o problema da religião doutrinária estava mais ou menos resolvido, pelo menos na Europa. E que de repente, como todos nós, o viu ressurgir no final do século XX e se impor novamente ao mundo no início do século XXI. Este é um dos principais elementos regressivos contemporâneos, a ponto de não vermos mais quais ferramentas poderiam neutralizá-lo desta vez: a dinâmica da Razão não será suficiente como antes. Com suas próprias ferramentas, JLG, em Imagem e Palavra, observou como a imagem e o som poderiam se levantar contra a tirania do Logos. Como pode ser visto em particular em sua obra-prima, História(s) do cinema, mas já era verdade em Alphaville, Duas ou três coisas que eu sei dela ou Weekend à francesa, ele sempre pensou em fenômenos na escala da Civilização, algo que poucos cineastas foram capazes de realizar.

O livro Jean-Luc Godard – Escritos políticos sobre o cinema e outras artes fílmicas, de Nicole Brenez (trad. Adilson Mendes, org. de Mendes e Lucas Murari, Desconcertos Editora, 260 págs., R$ 120), é lançado em São Paulo no dia 15 de julho de 2025. Na noite do lançamento, haverá mesa-redonda com a participação de Adilson Mendes, Lucas Murari e Carlos Adriano na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, entre 19h30 e 21h30. O livro também pode ser adquirido pelo site da editora, https://desconcertoseditora.com.br/produto/jean-luc-godard-escritos-politicos-sobre-o-cinema-e-outras-artes-filmicas/

PROGRAMAÇÃO DO EVENTO NO SESC AVENIDA PAULISTA

As sessões de filmes no espaço Arte II (13º andar), do Sesc Avenida Paulista, acontecem entre 16 e 18 de julho e apresentam filmes que atravessam diferentes fases da obra de Jean-Luc Godard. A mostra apresenta desde clássicos da juventude maoísta como A Chinesa (1967), até seus trabalhos mais recentes e experimentais, como Imagem e Palavra (2018) e Film annonce du film qui n’existera jamais: Drôles de guerres (2023), finalizado pouco antes de sua morte. As sessões no espaço Arte II são gratuitas. 

Integram ainda a seleção obras inéditas no Brasil, como Scénarios (2024), filme póstumo codirigido por Fabrice Aragno e Jean-Paul Battaggia, que inclui o último autorretrato do cineasta, e Rolle: Inventário (2024), documentário sobre o ateliê de Godard, transformado em espaço de memória e criação. O curta Apresentação do trailer do filme Scénario (2024) completa a programação, traçando um panorama íntimo e radical dos últimos gestos cinematográficos de Jean-Luc Godard.

Os cineconcertos completam a programação de filmes. No dia 24 de julho, o OLIB Ensemble apresenta uma trilha sonora original ao vivo para Momentos selecionados da(s) história(s) do cinema (Moments choisis des histoire(s) du cinéma, 2004, 83’), versão em formato de longa-metragem da série Histoire(s) du cinéma, originalmente concebida em oito episódios. A obra reúne uma seleção pessoal de Godard com momentos marcantes da série, funcionando como uma montagem-síntese da história do cinema sob sua ótica.

No dia 25 de julho, o músico e artista sonoro Dino Vicente realiza uma performance ao vivo para a sessão dupla de Sang Titre (2019) e Reportagem amadora (maquete da exposição) (Reportage amateur [maquette expo], 2006, 47’). Esta última foi realizada como parte da preparação da exposição Voyage(s) en utopies, Jean-Luc Godard, 1946–2006, apresentada no Centre Pompidou, em Paris. A trilha concebida por Vicente propõe uma intervenção sonora dodecafônica e concreta, a partir dos próprios materiais elaborados para a mostra. Os ingressos custam R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia) e R$ 12,00 (credencial plena), com venda online e na bilheteria.

Nos dias 22 e 23 de julho, das 19h às 21h, o curso “Jean-Luc Godard: vanguarda e política” será ministrado pelos curadores da mostra e editores do livro de Nicole Brenez, Adilson Mendes e Lucas Murari. Realizado no espaço Estúdio do Sesc Avenida Paulista e com limite de vagas para 20 participantes, o curso propõe uma leitura crítica da trajetória do cineasta à luz das proposições teóricas de Brenez, destacando os elementos de ruptura, experimentação e engajamento político que marcam sua filmografia. As inscrições devem ser feitas online, com valores de R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia) e R$ 9,00 (credencial plena).

A hierarquia da verdade

(Um texto que escrevi no Facebook em 11 julho de 2022, recuperado por um amigo:)

e se eu trabalhasse numa redação de grande imprensa hoje em dia, justamente na seção de polícia, por onde comecei? e se tivesse, hoje, de lidar com o caso do assassinato do aniversariante petista pelo verme bolsonarista?

seria assim: eu com o texto na mão o submeteria à chefia, que deliberaria como reescrever o caso a partir da visão da diretoria, esta que por sua vez seria instruída pelo dono do jornal sobre como dizer o que eu já havia dito – e a este dono eu teria inevitavelmente de obedecer se desejasse ganhar o salário do mês.

o texto resultante seria então um frankenstein dessas resoluções, já que a verdade, em um jornal, obedece à hierarquia. (tudo é hierarquia em um jornal, desde a gramática.)

eu poderia me recusar a assinar o texto que não fiz sozinha? poderia. mas isto seria bom pra mim no futuro, dentro do jornal? seria péssimo.

aos poucos, me desloquei da “editoria de geral” (que incluía polícia, saúde, ambiente, comportamento) para cultura, menos pior, talvez, embora massacrante e estúpida quase sempre, como tudo o que a indústria cultural ou as preferências da diretoria ditam a nós.

vi com meus olhos o assassinato do menino que fez “pixote” se tornar culpa dele, para indignação da repórter que apurou o caso.

vi com meus olhos senhor democracia relativizar a culpa do filho do eike batista na morte do ciclista, já que havia esperança de que eike carregasse um pouco de sua fortuna na publicação.

imprensa no Brasil é coisa indigna desde sempre.

fui calada tantas vezes por essa gente e continuei trabalhando para ela, por necessidade e orgulho, que sempre me doerá imaginar o castigo imposto a meu fígado desde ocasiões semelhantes.

porque eu me calava mal.

reclamava e isso era mal visto.

tentava fingir que estava tudo bem, mas minha cara era triste.

nunca vesti uma camisa, mas me sentia deselegante, um farrapo humano com as vestes daquele jornalismo que, pelo menos no Brasil, me exigia maltrapilha.

por isso voltei a estudar, fiz um mestrado e um doutorado, mas não em jornalismo, em história: pra me sentir gente de novo.

por isso, principalmente, sempre amei quem expôs essa tragédia por meio do humor ficcional.

billy wilder, que também foi jornalista.

balzac, idem, um vingador maravilhoso.

raymond chandler, a literatura e o cinema noir, no qual o investigador é uma espécie de repórter (a meu ver, uma alusão velada) fodido, expulso de algum lugar, que quer se dar bem sozinho mas no fundo tem consciência, que nega, por menos aconselhável que seja, as negociatas alheias (nem sempre bem-sucedidas, porque até pra golpear os patrões às vezes são incompetentes) e acaba sozinho e bêbado numa sarjeta, depois de ser enganado por uma mulher que ele já sabia escrota, e que representa o diabo, o fogo de desejar o que se quer, como sempre representou a mulher.

viver não é somente perigoso para um jornalista.

é pegajoso também.

porque a verdade sempre aparece e invariavelmente nos pega sem higiene, de calças curtas.

O Anjo Torto, meu celular e eu

Não tenho religião. Mas tenho um anjo da guarda. Anjo Torto. Dou bastante trabalho pra ele desde sempre. Nestes meus dias de inferno astral, então, nem sei como o querido tem sido capaz de me suportar.

Sou desligada e preocupada ao mesmo tempo. Quero rir depois de chorar. Porto sacolas, mas preciso ser leve. Quero sair para cumprir meu dia enquanto fotografo a rua. Ou será o contrário?

Fotografia de rua me faz feliz. Me descubro e me reflito com a câmera do celular à mão. Tá, o Sebastião Salgado que vocês adoram dizia que celular não faz fotografia, nem fotografia vive da cor. Não ligo pra seu Salgado, nunca liguei, o que me torna uma extraterrestre ainda maior dentro do meu campo político de esquerda. Mas prefiro não me estender em assunto polêmico que, no fundo, nem me interessa.

Ninguém (ou quase) posa pra mim. Do fundo do coração, preciso revelar o escondido. Caço imagens à moda do que o Flávio Damm me ensinou, silenciosa como um gato ao me aproximar, rápida como um rato ao fugir, com a intenção de, ao fotografar, devolver ao mundo um pouquinho da beleza que vi, do erro que constatei, do humor de que desfrutei, da surpresa. Às vezes tenho sorte, às vezes não.

Hoje saí pra hidroginástica, no centro da cidade, com celular à mão. Na ida fotografei e na volta também. Tive sorte?

No retorno, comprei produtos orgânicos no instituto Feira Livre e fui à farmácia à procura de um remédio difícil de achar (semana passada quase morri de dor no ouvido direito, era infecção e fungo, eu estava bem lesada; hoje fui correndo à dermatologista porque uma pequena mancha áspera aparecera nas costas; a velhice não deixa ninguém em paz). Depois de não achar o remédio em duas farmácias, decidi colocar o fone de ouvido para ouvir o spotify, mas qual o quê? O celular não estava mais comigo, não.

Gelei porque não posso pagar um aparelho novo no momento, nem devo, o que mais me faltava? Não consigo viver bem sem ele, contudo. Voltei ao mercado à procura do objeto, quase certa de encontrá-lo, mas nada; nas farmácias, a chance ficou menor ainda. Corri para casa de modo a tentar fazer um tracking no bichinho, só pensando: vou perder aquela foto X! A Y terá ficado escura demais? Vivo com celular o tempo todo por causa do vicio fotográfico, melhor que gim e drogas, e quase não tenho outra razão para carregar o telefone – exceto escrever.

Fiquei triste, mas brava também. O que o Anjo tinha a dizer? O quê, seu Torto duma figa? Há dois anos, Anjo aparecera na minha vida depois de salvar meu celular. O bichinho havia caído diante da estação Sumaré do metrô. Foi resgatado por um jovem que atendeu minha ligação. Mais. Mês passado, um amigo da vizinhança achou meu RG no chão, me procurou no Facebook e gentilmente me entregou o documento em casa. Por que só agora fiquei na mão, Anjo?

Eis que adentro o saguão do prédio onde moro e o porteiro me recebe como se diante de uma equação matemática, coçando a cabeça.

– Dona Rosane!

Olho para a mesa de madeira escura da portaria e grito:

– Meu celular, João!

Estava ele ali, com um bilhete ao lado, no qual se lia: “Fábio, da Vivo, telefone tal”.

– Então, que coisa! Ele achou seu celular caído na rua, não conseguiu abrir porque a senhora bloqueou a tela. Daí – o cara é da Vivo, né? – ele foi até a patrulha da Polícia Militar na avenida Ipiranga, que destravou o aparelho. Ali eles acharam o telefone do seu marido, ligaram e o moço da Vivo veio entregar pra senhora!

Anjo, mil desculpas. Anjo amado. Anjo de mon petit coeur!

Resumindo a história, virei atração no prédio. Contei a história pros coletores do lixo e eles ficaram parados diante de mim por muitos segundos, sorrindo de cabo a rabo. O zelador ligou pro meu marido, orgulhoso de um policial ter aparecido à porta junto com um moço (da Vivo!) trazendo um celular pra sua senhora. O porteiro da tarde, já informado, acredita que sou boa na vida, ou o Anjo não me ajudaria. O vigia do condomínio veio me ver de perto.

Sim, sou boa na vida, Junelson! Só posso ser. Embora isso não mude nada no mundo mau, meu Anjo Torto vai fazer bonito.

Agora, que história é essa de a PM abrir o celular da gente na hora que quiser?

sem idade

o youtube mostra o funeral do mujica.
vontade de chorar.

a menina renad, de gaza, sorri famélica no Instagram.
choro de verdade.

o que os governantes fascistas terão feito aos craqueiros sem-teto desaparecidos do centro de são paulo?
meu punho se fecha.

leio críticas (como se fossem balas) atiradas ao comportamento de janja.
peço calma?

não tenho mais idade para a humanidade.

mas eis meu problema.

insisto em viver.

Lutar queima, lutar dói

Sofro com a virose que me toma há alguns dias, mas, sinceramente, sofro mais (a mente, os nervos) diante do assassinato cotidiano.

Mulheres degoladas, apedrejadas e concretadas por quem há muito dispensou o respeito por seus corpos.

A polícia que é a mesma, indigna em qualquer lugar do mundo, massacrando os velhos argentinos sem dinheiro para comer e medicar-se.

As árvores garroteadas e tombadas em decorrência da inação do podre poder público municipal, como se fossem tão-somente empecilhos à urbanidade.

Os sem-teto estendidos na calçada, tratados sem qualquer cerimônia pelas peruas de remoção e pelo vice-prefeito (vice? prefeito?), que resolveu mirar em Padre Júlio nas redes sociais.

Estudantes vistos como cachorros pelo Grande Laranja porque ousam protestar contra o genocídio palestino.

O genocídio palestino.

Há dias nos quais não damos conta de nada, de nadinha que parta da humanidade. E mesmo assim, se não combatermos por ela, quem seremos? Como viver? Lutar é meter a cara nas chamas para apagar um incêndio que não cessa. Lutar queima, lutar dói. Ah, se houvesse trégua para lutar.

Sua Walteza, um caubói solitário na América anti-woke

Estava sem internet suficiente para acompanhar a cerimônia de entrega do Oscar 2025. No mato, assistindo a tudo por meu celularzinho de tela instável, com a incrível companhia de Iaiá, de 14 anos, mais linda que todas as Anoras, tentei compreender a premiação.

Dar um Oscar de roteiro original, montagem, direção e filme a um só homem me prova que Hollywood vai mal, mas vai mal demais… industrialmente falando. 

Eis um longa batalhado e quase caseiro. Gostei de “Anora” ao entendê-lo um filme de humor, um sub Irmãos Coen com ótimos atores, ademais irônico em relação aos russos, neste momento em que Trump os acolhe. Um filme gostoso de ver, conduzido por um homem-orquestra, mas um filme pra Oscar? Sim, neste momento estadunidense em que as séries de tevê podem ousar mais, ele representa tudo com que Hollywood poderia sonhar. Ironia, tenacidade, os subjugados vencerão!

Teria preferido, como Sua Walteza Salles sugeriu, que Nanda tivesse levado o prêmio de atriz. Catalisaria nosso empenho artístico, nossa artesania ancestral. Porém, reconheço que Mikey Madison é uma bela intérprete, e me alegra saber que ganhou tão cedo uma premiação industrial dessa magnitude, embora isso possa não significar exatamente uma vantagem em sua carreira, conforme o longo, longuíssimo e algo antipático discurso de Adrien Brody sugeriu. 

Adiantou o ator estadunidense ter levado a primeira vez a estatueta superjovem e sido ignorado por décadas? Pior. Ele vai precisar de novas décadas para se recompor desta vitória.

Para sempre o injustiçado do cinema! No seu agradecimento, Brody não se esqueceu de condenar o “anti-semitismo” atual. Como assim, bebê? 

No mínimo posso dizer que “Brutalista” não apresentou sua ideia com isenção, antes encenou o mais extenso, escancarado, caricatural desejo de um artista de sobrepor sua visão, história e passado ao país que lhe deu de ombros.

Nem me lembro das piadas proferidas no decorrer da cerimônia, que foi relativamente curta para o cerimonial de um Conan O’brien engraçadinho em relação ao “marido ausente” de “Ainda estou aqui”. Mick Jagger, que apresentou a melhor canção, tendo de premiar “Emília Pérez” quando na plateia dos indicados havia Elton John e Bernie Taupin, foi bem mais divertido que o bárbaro Conan. “Queriam alguém mais jovem que Dylan para apresentar o prêmio, e eu sou mais novo que ele”, disse Mick, que, octagenário, move-se com a agilidade de um “Flow”.

Foi tudo razoavelmente rápido desta vez, ganhamos o prêmio que nos coube naquelas quatro linhas, o de melhor filme internacional, para que Walter, simpaticamente desajeitado no seu paletó e gravata (Oprah Winfrey apareceu bem mais esticada no seu figurino semelhante), seguisse um discurso humilde, em tom baixo, de dedicação a suas duas Nandas do cinema brasileiro.

Achei interessante que a apresentação do filme tivesse usado a voz em off do diretor para sublinhar sua proximidade com a família retratada. Fica explicado melhor, assim, o intento autobiográfico do diretor, sua existência adolescente em meio a outras sacrificadas naquele momento histórico, mesmo se consideramos que sua classe social tenha vivido desde sempre sob eterno sol. 

Halle Berry e Daryl Hannah, tão bonitas, o vestido de Halle a seguir a tendência do bordado de pedraria à frente, como um relevo de silhueta… No mais, poucos vestidos buscaram a assimetria, porque talvez isso não fizesse sentido em ambiente cultural de visão tão estreita.

“Sem chão” (No other land), vencedor por longa documentário, recuperou o ideal paz&amor necessário, visto não ser um filme “apenas” palestino, mas israelense-palestino. Um filme jovem, nem tão bom quanto o concorrente “Trilha sonora para um golpe de estado”, mas suficientemente esclarecedor de como funciona o terrorismo estatal israelense no cotidiano de seus oprimidos.

Curiosa cerimônia, tão pouco imaginativa! E relativamente curta, empenhada em escrever palavras críticas para que vencedores do ano passado apresentassem os indicados de agora. Mas, bem, a cerimônia abdicou disso na hora de apresentar as atrizes principais, já que entre as concorrentes estava Karla Gascon: embora presente, ela nem foi citada no agradecimento choroso de Zoe Saldaña, sua companheira de cena agraciada como coadjuvante.

Incrível que Dira Paes e Maria Beltrão, comentadoras da Globo, desconhecessem a natureza deste prêmio, estritamente ligado ao desenvolvimento do mercado e da indústria locais. Que foi isso de reclamar da não-inclusão do cineasta brasileiro Cacá Diegues na homenagem aos falecidos do ano? Que carreira ele fez nos EUA? A trajetória de Salles ali é até maior…

Deveria servir de lição para os deslumbrados por Hollywood, mas suspeito que não será assim. A tal academia cortou desde sempre a possibilidade de expansão de uma cinematografia (latino-americana) naquele terreno. Candidato a melhor filme, mas não a melhor diretor? Walter Salles, o único brasileiro autorizado, por sua classe social, a ganhar um prêmio naquelas paragens, não estaria no nível de um Jacques Audiard? É até divertido imaginar o cochicho dos bastidores políticos: fora, América Latina woke, do sonho que é grande, nosso e de mais ninguém…

“Sem chão”, a luta palestina pelo pertencer

“Sem chão” (No other land) é um filme-diário sobre a luta pela terra palestina. Um filme jovem, urgente, feito de esperança sem razão, boicotado pelos distribuidores nos Estados Unidos e vítima de apagamento. Um candidato ao Oscar de documentário em 2025 como se isto constituísse uma ousadia impensável…

Neste documentário, Basel Adra, jovem de origem camponesa formado em Direito, desacredita dos tribunais e vive para informar ao mundo que os israelenses roubam a terra dos seus ancestrais sem cerimônia ou dignidade. O jornalista israelense Yuval Abraham, que aprendeu árabe com um colega e a partir dele compreendeu a causa palestina, segue os passos de Basel munido de comprometimento, a ponto de juntos, na companhia de Hamdan Ballal e Rachel Szor, editarem “Sem chão” sob a perspectiva do palestino, ou seja, do perdedor.

A família Adra pertence a Masafer Yatta, um povoado fundado pelos palestinos em 1830 no sul da Cisjordânia, mas reivindicado em 2019 pelos israelenses por meio de uma determinação de sua Suprema Corte. Os sionistas decretam que a região montanhosa deve servir para o treinamento de tanques do exército de seu país – e não, nunca, para abrigar um bando de despossuídos árabes que, a partir daquele ponto, poderia sonhar com mais.

Assim é que escavadeiras, tanques e soldados israelenses destroem tudo o que Yatta constrói: suas humildes habitações, escolas, até um curral de ovelhas e um playground. Eles não podem esperar. Precisam desfazer tubulações, fiações, cozinhas, brinquedos, o que vier, diante dos olhos revoltados dos reais proprietários, para que o teatro de destruição cotidiana se efetive. Contudo, as pequenas câmeras e os celulares da família Adra, assim como o equipamento do jornalista israelense, jamais param de funcionar, registrando com agilidade, sob pena de agressão, morte ou invalidez, todos os movimentos do Estado de terror. 

O plano sionista não declarado, mas já em parte realizado, é encher a região de ocupantes israelenses cujas casas são eficientes e cheias de luz. Enquanto isso, os resistentes fogem para as cavernas sujas da região à espera de reconstruir suas casas, todas as manhãs, naquele exato local onde foram derrotados no dia anterior.

Quem ganha a luta, podemos adivinhar. Quem fará os camponeses se mudarem para as cidades entulhadas, onde míseros apartamentos abrigarão famílias inteiras, serão os israelenses. 

Aquilo que não sabemos, contudo, constitui o cerne deste belo filme. Ele está localizado na luta que se faz todos os dias, não importa quantos palestinos resultem feridos ou inutilizados pelos explosivos do exército ou pelos tiros dos colonos armados. O cerne é o senso de pertencimento. O calor familiar. O amor às crianças. O humor de quem nunca desiste de estar ali.

Objeto não identificado

Perguntei ao moço da copiadora se seria possível imprimir as páginas do meu arquivo no tamanho meio A4, mais ou menos. Expliquei que queria poder folhear o texto encadernado, como se faz com um livro.

– Não sei se entendi – me respondeu.

Resolvi imitar o gesto de quem folheia um livro.

– Tá dando pra entender assim? – perguntei.

– Não – respondeu, depois de assistir à minha mímica com uma interrogação nos olhos.

    Deixei então ele fazer como sabia. E cheguei em casa com um calhamaço tão grande que vou entortar o pescoço pra usar.

    Porém isto não é nada diante da minha leve suspeita de que o moço da copiadora não sabia como funcionava um livro.