Durante toda a vida tive motivos para me decepcionar com o que sou, com minha fraqueza e certas atitudes que tomei. Mas agora depois de tantos anos tem sido corrente a grande decepção com o outro. Tão grande. Sem que eu alcance compreendê-lo.
E é muito pior quando acontece assim. Porque, com a gente mesma, temos tempo de amadurecer as origens do erro. Quando o alvo é o outro, quando mal o reconhecemos e podemos identificar seus motivos, tudo se complica. É uma luta se livrar da decepção.
Não se trata de perdoar antes de tudo. Nunca liguei pra essa chantagem do perdão, como se ao perdoar o outro, o infeliz, encontrasse eu mesma a felicidade. Não. Trata-se de compreender. É a compreensão, não exatamente o perdão, a minha luta interna, a mais difícil.
O genocídio dos ianomâmis, tramado meticulosamente por quatro anos, rasgou minha alma por um bom tempo. Diversas vezes ao dia, fantasio. Na minha imaginação estou no galho chacoalhando a Danares até ela admitir, pisando no pescoço de verme para ver sua língua desmilinguida se desmanchar e enchendo de sabão a boca sem lábios do marreco, até que se afogue.
Mas, enquanto incendeio em silêncio, procuro pensar que Lula e seus ministros estiveram lá entre os ianomâmis para ver e resolver a situação, não só emergencialmente. Fujo do arrepio de pensar que por pouco ele não teria sido nosso presidente e sorrio constatando que felizmente ele existe, está lá e está forte.
Também não paro de pensar no que o Daniel Alves fez com uma mulher que, do nada, ele achou por bem unilateralmente possuir, como um porco no saloon do Dirty Harry. Que ódio da existência monstruosa de tais seres inchados pelo futebol. Esses, minha imaginação infantilizada só pensa em socar, mas sem sujar as mãos – apenas segurando as molas com luvas do Looney Tunes. De novo, que bom que o porco estava na Espanha e que o país foi incapaz de brincar em serviço, como a Itália fez. E que fibra a dessa vítima, jogando na cara que não quer acordo, dinheiro nenhum, só justiça e acabou.
Espero que os “mas” nessas situações me ajudem a relaxar. Arre que a gente precisa seguir vivendo. Que eu afaste esses fantasmas do meu coração, possa dormir de novo e amém.
E tem também que eu sinto uma frustração danada de não conseguir explicar as coisas para as pessoas queridas, como a faxineira que trabalha pra mim. Hoje veio me perguntar se a turma fez bagunça em Brasília domingo por causa do Bolsonaro ou da passagem de ônibus que o Lula aumentou. Juro.
Todos ao seu redor dizem que a passagem está cara demais e que faz sentido se manifestar contra Lula, embora ela entenda que as passagens não aumentavam havia muito tempo e que não tinha nada demais se ele decidisse aumentar um pouco agora.
Ou seja, com tudo o que vem sendo noticiado sobre a tentativa de golpe e com toda a atenção que dá aos problemas, minha querida não foi informada devidamente sobre o que aconteceu domingo. Não tem tempo para tevê. Só vê o zap.
Senti uma urgência de explicar e tentei. Mas, claro, o fracasso me espera. Ela não consegue entender a diferença entre os três poderes. Não sabe o que o é o Planalto. Muito menos o STF. Tampouco entende quem pode aumentar o preço da passagem. Não é Lula quem aumenta, tentei mostrar, é a administração municipal. E mais uma vez na vida me encalacrei para explicar o que é administração municipal, o que é o estado, a federação, um prefeito, um governador, um presidente, um juiz, um parlamentar. O que é atribuição.
No fim, resolvi dizer apenas que foi o Bolsonaro a tramar a bagunça, sim. E que fugiu do país antes da posse pra não ser preso, esperando ainda voltar presidente de novo, tirando o Lula da jogada. Principalmente, ele não queria que ninguém soubesse dos milhões gastos do nosso dinheiro, rachados com o dono da padaria. Um escândalo do qual só sabíamos agora porque o Lula quebrou o sigilo de cem anos do Bolsonaro.
Minha querida sorriu, não gosta dele, votou no Lula, mas, sinceramente, não sei se compreendeu tudo. Me consolei com o fato de ela ter constatado em Bolsonaro um filho da puta mais uma vez e de ter concluído que o pessoal da quebradeira foi muito sem noção, pois estava na cara que ou levaria tiro ou acabaria preso agindo daquele jeito.
O sentido de sucesso muda conforme o lado a partir do qual a gente vê a situação.
tenho um parente bozo raiz cujas postagens fake e de ódio denuncio dia sim dia não ao facebook.
nunca vi uma dessas postagens cancelada.
e meu sangue não para de subir.
me dá um saco cheio sem tamanho deste lugar de regras privativas, excludente da orientação democrática.
permaneço porque tenho amigos verdadeiros por aqui, além de pessoas que desejaria conhecer e de quem adoraria ser próxima.
sigo porque não assino mais jornais, uma vez que sei como são feitos e poupo os intestinos. diariamente, então, monto o noticiário no labirinto de matérias oferecidas pelos perfis jornalísticos.
permaneço porque nossos instrumentos de luta já são tão pequenos.
porque não consigo nem quero mais militar em partido.
porque não sou boa de assembleia, menos ainda conseguiria aceitar o centralismo diante de direções gerais.
no entanto me vejo rebelada todos os dias, movida pelas causas que detecto.
basicamente desobediente.
e isto me dá mesmo uma sensação de impotência diante da coletividade.
anos segregada pela escola rica onde era bolsista, anos à margem dentro de nosso jornalismo servil me fizeram provocativa e futucadora por conta própria.
gritei “nem patrões nem generais” nos anos finais da ditadura, durante os quais nunca fui agredida por PMs, nem maltratada e detida, ao contrário do que aconteceu com meu menino ao reproduzir um mais que necessário “fora temer” diante da praça roosevelt.
nem patrões nem generais – ainda hoje essas palavras martelam minha cabeça. e me perdoe a maioria de vocês, amigos fiéis, nem religião também.
minhas crenças são meus olhos, minha fidelidade, ao coração, meu norte, o pensamento, meu amor, ler, escrever, estudar, fotografar, o abraço, o sorriso.
a rede social às vezes me contempla. às vezes, me exclui.
se continuo, culpem minha teimosia. não tenho o espírito de cautela que hemingway detectou nos velhos, muito menos ainda, sabedoria.
“Quando Pasolini refere-se à burguesia, não se refere tanto a uma classe social, mas ao surgimento de uma ‘nova categoria do humano’. Qual categoria? A do homem outorgado como consumidor, do homem que dessacraliza o mundo. Por isso Pasolini afirma que burguesia e religião são antípodas: não existe burguês que possua um autêntico sentimento religioso. Burguesia e religião são antípodas porque a ‘mutação antropológica’, gerada pelo novo fascismo, suprime o sentido próprio do sagrado, resumindo o mundo, como diria Heidegger, a mera fonte de recursos que a razão pragmática deve explorar e dominar, sendo a burguesia portadora de um ‘hedonismo neolaico, cegamente alheio a todo valor humanista’, que reduz o sentimento religioso a um estéril código de comportamento.”
Em “Pasolini – O Fantasma da Origem”, de Massimo Recalcati, trad. de Cezar Tridapalli.
Eu só sei que, como já contei a vocês, a Folha me perguntou se eu era filiada ao PT antes de me contratar como jornalista, décadas atrás.
Entrei para trabalhar lá e constatei que a liberdade de empresa vinha antes daquela de imprensa na redação. Por exemplo, não podíamos noticiar qualquer fato que prejudicasse a imagem de um banco – além de anunciarem no jornal, os bancos eram mentalidades irmãs, às quais se devia servir.
Então não estranho que demitam o Jânio de Freitas agora. Estranho mesmo é que tenham deixado ele ficar no jornal até hoje.
As demissões foram muito mais do que as anunciadas ontem. Elas ocorreram depois que a direção apresentou aos jornalistas um plano de demissão voluntária.
Demissões ocorrem ali todo ano, há muito tempo. Alegam prejuízos e aproveitam pra se livrar de quem não interessa. Neste ano demitiram tanto Jânio e Marilene Felinto, por exemplo, à esquerda, quanto Sylvia Colombo (muito próxima de Otávio Frias Filho, que afinal morreu), cada dia mais à direita. É jornalismo o que não parece mais ser muito bem-vindo por lá.
Isto porque a Folha não responde mais prioritariamente pela renda familiar. Luís Frias, um dos herdeiros, dono do PagSeguro, é a 12ª pessoa mais rica do Brasil, com uma fortuna estimada de 25,2 bilhões de reais, de acordo com o ranking de bilionários da revista Forbes em 2021. No PagSeguro, estima-se que sua parcela seja de 3 bilhões de dólares. Isso se deve em especial ao peso majoritário que ele tem no Universo Online S.A. (UOL), uma das frentes do Grupo Folha.
Jornalismo parece existir pra ele só pra pressionar o governo rumo à satisfação de seus interesses comerciais. Em 2019, um ano após a morte do irmão, o diretor de redação Otávio Frias Filho, ele depôs toda a diretoria e afastou a irmã Maria Cristina Frias do comando, colocando Sérgio Dávila no lugar. Deu errado com Bozó, mas ele teria preferido que se dessem bem – vocês devem se lembrar da célebre cara feliz de D’Avila num almoço com o Verme, no começo do mandato.
Tenho pra mim que vocês vão continuar lendo a Folha, até por falta de opção. Eu já desisti faz tempo, mas consigo entender que não a abandonem. Seria muito bom se houvesse um veículo de informação bastante confiável mais à esquerda no Brasil, com abrangência de apuração. Mas não há. Resta que leiamos jornais muito parecidos em sua ira santa contra o PT e o mínimo progressismo, buscando a verdade nas entrelinhas.
Quando penso em Pelé, vejo o futebol imenso, um artista preto no cume sagrado de sua potência, contra o racismo e a pobreza que o Brasil lhe destinou ao nascer. Mas se você, ao vê-lo, apenas comemora a doença e a morte do Edson Arantes bolsonarista que renegou uma filha, sinto muito e aproveito pra dizer Love.
Vou à padaria hipster, que afinal tem a melhor baguete, e a atendente me oferece o pão de queijo que acaba de sair. Pego um, claro, tão quentinho, e já meto o bocão pra comer ali mesmo, no banquinho da rua, quando ele se aproxima.
Não tem 30 anos, não é preto, está enrolado no cobertor e me fala com calma: “Me dá pra comer?” Sempre esqueço das moedas, caramba. “Desculpe, querido, não trouxe dinheiro.” Ele me olha do mesmo jeito imóvel: “Um pedaço do que a senhora está comendo mesmo.” Eu ensaio protestar, porque saí da hidro faminta. Mas corto o pãozinho ao meio com os dentes e lhe dou. Poderia ter lhe dado inteiro? A culpa atravessa o dia.
As tristezas brasileiras acontecem juntas e misturadas. Não somos astutos o suficiente para num instante apreendê-las, driblá-las e correr pro gol.
“Os irmãos De Filippo” permanece em cartaz até dia 4, grátis e on-line, no streaming do Festival de Cinema Italiano.
O filme de Sergio Rubini reconstitui época para que conheçamos a família responsável por encenar uma nova comicidade no teatro napolitano. Seu humorismo à moda de Pirandello antecipou ideias neorrealistas, incorporando o sentimento das ruas.
No filme, a participação, para variar brilhante, do bom e velho Giancarlo Giannini, no papel do cômico Edoardo Scarpetta.