O título diz bastante. Mas a gente sempre espera que diga mais. “A garota da agulha”, candidato ao Oscar de melhor filme internacional de 2025, escolheu dizer menos.
Menos, ou uma coisa só.
A dor da opressão.
Trabalhado a partir da concepção geral de um thriller, o filme dinamarquês dirigido por Magnus Von Horn, de 41 anos, acaba por se desenvolver como uma dramaturgia de telenovela em torno dos excluídos no início do século 20. Os closes dialogam sob um filtro instagramático em preto e branco, evocando tanto o início comercial da fotografia quanto a explosão industrial que acumulou o proletariado em becos úmidos.
O filme se passa logo após a Primeira Guerra, inspirado em um fato real a envolver uma mulher que acolhia bebês abandonados. A fotografia parece em muitos momentos citar as imagens pioneiras do alemão August Sander (1867-1964), que retratava trabalhadores e outsiders como personagens centrais, a contrastar com a barbárie em torno.
Em fotografia, não há sombras que não possam ser iluminadas, dizia August Sander. E Von Horn segue seus princípios. Ele leva uma luz estruturada e nítida também sobre as ruas estreitas nas quais pelejavam os operários escravizados da indústria têxtil e os homens do circo.
Neste cenário de espetáculo, uma jovem operária se apaixona pelo dono de fábrica que a rejeita quando engravida. Tudo piora mais e mais para ela, seu desespero embebido em éter, sem que nós, os espectadores, conheçamos os subtons de humor que poderiam alternar-se com os da dor constante. Talvez a mudança ritmada de climas ajudasse a temperar o mistério, à moda do que acontece em filmes de mestres do gênero, como Roman Polanski. (Nada de “O inquilino” por aqui.)
A “garota da agulha” (assim chamada, entre outras razões, porque trabalha com costura na linha de produção) vai arrumar emprego com uma senhora que anuncia mediar bebês rejeitados a novas famílias – e já suspeitamos por onde, ali, habita um novo terror. Os atores, até os infantis, parecem ter muitos recursos para entrelaçar esse mote. A narrativa é que vai usá-los acentuadamente numa só direção.
O problema aqui parece ser mesmo essa iluminação constante, a busca desesperada por clareza, quando a atmosfera histórica retratada era turva, a ponto de um diretor como W. H. Murnau (1888-1931) tê-la explorado tão bem sob as sombras.
No documentário “Trilha sonora para um golpe de estado”, candidato ao Oscar, a história revolucionária africana acolhe a cadência do jazz
O revolucionário congolês Patrice Lumumba
Tudo pulsa no documentário “Trilha sonora para um golpe de estado”, candidato ao Oscar 2025. Seu diretor, o belga Johan Grimonprez, promove um estado de reflexão que não cessa no decorrer do filme. Pensamos e sentimos por meio da montagem de Rik Chaubet, a entrelaçar fotos e fragmentos documentais sob a cadência do jazz. Mas não de qualquer jazz. Neste filme produzido por belgas, holandeses e franceses, só vale a música urgente, partícipe, que instiga à libertação social, à conquista dos direitos civis e à celebração da existência plena.
Nina Simone, a caminho da Nigéria
Louis Armstrong, Thelonious Monk, John Coltrane, Duke Ellington, Max Roach, Abbey Lincoln, Dizzy Gillespie, Nina Simone, Archie Shepp, Melba Liston, Ornette Coleman, Art Blakey, John Coltrane. Estes são alguns dos músicos que, dentro do filme, movimentam o raciocínio do espectador e constroem sua escuta.
O documentário indicado ao Oscar, produzido por holandeses, franceses e belgas
Em “Trilha sonora para um golpe de estado”, os oprimidos da terra combatem a chaga colonialista de europeus e estadunidenses. Sedentos do sangue e do minério africanos, os brancos conspiram para matar, e uma Organização (Criminal) das Nações Unidas estende-lhes o tapete para que o extermínio ocorra a contento. Um personagem destaca-se contra o estado de coisas, com carisma e humor: o líder russo (entre 1953-1964) Nikita Kruschev, a cobrar da ONU a legitimação de Patrice Lumumba (1925-1961) no poder, no Congo. Ao assistir a este documentário por duas horas e meia, nosso retrovisor começa a apontar para a frente, para o hoje, para o sempre.
A estrategista Andrée Blouin
O Congo ainda está aqui. Cheio de feridas e usurpação. Em 1960, Cuba triunfara e os negros, desonrados nos Estados Unidos de Eisenhower, olhavam para a África. Eles tinham um exemplo principal a seguir: o congolês Patrice Lumumba, eleito pelo povo para obter o que ele próprio, por algum tempo, julgou ter conseguido – a libertação do domínio belga, com a ajuda da estrategista Andrée Blouin.
Nikita Kruschev e o diretor da CIA Allen Dulles: o sorriso do líder soviético surgia nos intervalos das contendas
O olhar de Lumumba é doce, direto e fundo. Vemos não seu triste fim, mas um olhar do fim, difícil de esquecer. Malcolm X também se lembraria de tudo. No filme, falam ele, mercenários ingleses e alemães, chefes da CIA como Allen Dules, a “inteligência” britânica. Vemos como Armstrong foi enviado pelo Departamento de Estado do seu país para “distrair” o povo africano antes do golpe final – e como Armstrong se deu conta de que o enganavam. O mesmo ocorreria com Nina Simone, mandada à Nigéria para apresentar-se, sem desconfiar que a usavam para acalmar os ânimos revolucionários da população local.
Sou esta pessoa que não acompanha podcasts. Só ouço música no Spotify e leio reportagens. Meu tempo de rádio se foi. Nele, os apresentadores “escreviam” ao vivo. E eu gostava dos improvisadores escalafobéticos, do tipo do Gil Gomes, que sabiam dividir os tempos e narrar em crescendo, com exagero, as histórias de banditismo mais simples.
Imagino que improviso não seja o caso deste “CPF na nota?”, episódio do podcast Rádio Novelo no qual a escritora Vanessa Barbara narra o abuso que sofreu por parte do ex-marido, o editor André Conti, 14 anos atrás. Aparentemente, o sujeito expunha suas traições a outros tolos igualmente boquirrotos num grupo de e-mails.
Se não é um Gil Gomes quem narra, o que pode me atrair nos detalhes das conversas expostas? Creio que nada. Só me interesso pela treta em si, essa que expõe a velha misoginia tão presente na elite masculina do clube de jornalismo cultural & de letras Brasil.
Conheço alguns dos envolvidos no episódio, direta ou indiretamente. Um deles, certa vez, me procurou para saber detalhes de minha diferença com um jornalista jovem, louco para ser reconhecido como herdeiro do Francis, e que muito me prejudicara profissionalmente. Esse que me procurava, contudo, não tinha moral pra me fazer tal solicitação, pois à época estava por baixo, vítima de uma maquinação de assessoria que lhe custara o emprego. Por que eu lhe contaria o que passei? Um segundo me ligou para que eu falasse mal de um livro do mesmo candidato a herdeiro, o que prontamente recusei (não porque gostasse do livro ou respeitasse seu autor, mas porque… por que ele mesmo não acertava as contas com o candidato à herança? que lesse o livro e o resenhasse, ora.) E o terceiro, esse cuidava de HQ em respeitada editora, e nunca quis me dar nenhum contato com autores pra entrevista.
Enfim, jovens machos letrados bem-sucedidos que esperavam ser laureados por nós, mulheres submissas do jornalismo. Eu só não imaginaria que tivessem deixado impressas as pegadas de sua burrice.
Se eu fosse editora do podcast, ouviria o “outro lado”? Quase certamente, eu faria a história durar em outros episódios nos quais esses homens seriam ouvidos, mas só por gosto pela treta mesmo. Acontece que não faço rádio. E treta, tenho evitado até nos pesadelos.
Não tenho o link do podcast, mas deve ser fácil de achar pelo google. Abaixo, vai o texto da coluna de Mônica Bergamo sobre o assunto.
“Podcast sobre relacionamento abusivo abala meio literário”
“Um episódio do podcast Rádio Novelo abalou o mundo literário ao trazer o relato da escritora Vanessa Barbara sobre o fim do seu casamento com André Conti, editor e sócio-fundador da Todavia, há cerca de 14 anos. Ambos já foram colunistas da Folha.
No programa, chamado ‘CPF na Nota?’, Barbara narra em 50 minutos como descobriu, em 2011, que era vítima de violência psicológica durante seu casamento. Ela relata que o então marido compartilhava detalhes íntimos de traições em um grupo de emails com outros 15 homens, todos também escritores e jornalistas.
Entre eles estão autores famosos da geração que despontou no país neste século: Daniel Galera, Michel Laub (ex-colunista da Folha), Joca Reiners Terron (ex-colunista da Folha), Paulo Scott, Daniel Pellizari (ex-colunista da Folha), Emilio Fraia e Antônio Xerxenesky.
O episódio foi ao ar na quinta passada (16) e a repercussão foi crescendo durante o fim de semana. Na segunda (20), chegou às redes sociais. Desde então, nove envolvidos vieram a público se manifestar.
‘É nesse ponto que conto como ganhei a minha cicatriz’, diz Barbara, no podcast. ‘É de um relacionamento abusivo que eu tive muito tempo atrás. Aliás, fica o alerta de gatilho: essa história contém ameaças, coerção, gaslighting, exposição, humilhação e isolamento, ou seja, é puro suco de violência psicológica.’
André Conti respondeu na manhã de segunda: ‘Manipulei e coagi minha ex-esposa de forma machista e misógina’. Ele reconheceu que ‘num grupo de emails, expus pessoas, traí amigos e colegas e inventei intrigas’.
Na manhã de terça (21), a Todavia se posicionou dizendo que ‘reconhece a gravidade dos acontecimentos narrados no podcast que envolvem um de nossos sócios. Compreendemos a indignação causada pelos diversos exemplos de machismo e misoginia. Sentimos muito, sobretudo, pelo sofrimento causado à vítima. No momento, buscamos garantir a manutenção de um espaço de acolhimento para nossas colaboradoras e colaboradores.’
Comentários de internautas ao comunicado, a maioria escrita por mulheres, pediam que Conti fosse removido de suas funções na editora. À coluna, ele disse que só o CEO da Todavia, Flávio Moura, poderia responder. Moura afirmou, então, que ‘nosso posicionamento é o que está no post’.
A atual esposa de Conti, a também escritora Natércia Pontes, contestou a narrativa com um longo texto em seu blog pessoal. Segundo ela, Barbara manteve contato com Conti nos últimos anos e, há seis meses, enviou email pedindo ajuda para divulgar seu novo livro. Segundo Natércia, ele não respondeu a esse pedido.
‘Meu marido errou. Mentiu. Foi um crápula imaturo. Há catorze anos’, escreveu ela, questionando por que Barbara decidiu trazer o caso à tona agora. ‘Como não obteve resposta desse último e-mail, reflito depois das minhas tristes conclusões, preferiu fazer um podcast para assassinar a reputação do meu marido e de homens, nem todos brancos como ela descreveu, que precisam de seus trabalhos e que têm famílias para sustentar, junto as suas mulheres, que também trabalham. Tudo isso nesse país de merda, onde é quase impossível sobreviver da escrita e do jornalismo.’
Pontes acusa a Rádio Novelo de não ter procurado outro lado da história. A Novelo disse à coluna que não vai se pronunciar sobre o caso.
Michel Laub disse que ‘muita coisa mudou’ nos últimos 14 anos e que as pessoas ligadas à história ‘viraram protagonistas numa trama que está sendo tratada nas redes como conspiração do presente, envolvendo pessoas poderosas envolvidas em crimes os mais diversos’.
‘Quanto às imputações de crimes, estou fazendo prints e decidirei que medidas tomar a respeito’, completou, em seu texto dividido em cinco pontos.
Joca Reiners Terron criticou o podcast por não ter ouvido o outro lado da história e afirmou que envolvidos estão sendo vítimas de ‘linchamento online’ e de ‘tentativas de hackeamento de contas e acusações descabidas. A obsessão pelo punitivismo precisa evoluir para uma argumentação lógica que nos conduza para além do atual maniqueísmo’, acrescentou.
Emilio Fraia afirmou que sente e sempre sentiu ‘demais por tudo o que aconteceu. Da minha parte, peço desculpas a Vanessa. Quero poder dialogar, aprender com os erros e, sobretudo, escutar.’
Paulo Scott, que foi o primeiro a se manifestar, disse que ‘a responsabilidade pela dor legítima de uma pessoa que fez parte de uma relação conjugal encerrada dolorosamente não pode ser estendida a pessoas que, direta ou indiretamente, nada fizeram para o fim dessa relação ou interferiram em seus desdobramentos posteriores’.
Daniel Galera disse que se solidariza ‘com a dor de todos os envolvidos’, mas rebateu a narrativa do podcast. ‘A maneira como [a lista de emails] é descrita no podcast é inverídica. Também é inverídica a alegação de que participantes teriam ativamente criado empecilhos pra carreira da Vanessa’, escreveu.
André Xerxenesky afirmou que não conhecia Vanessa à época, mas enviou ‘o mais sincero possível pedido de perdão. Fomos todos criados num imenso caldo de machismo e misoginia e reproduzi falas e comportamentos por volta dessa época dos quais me arrependo e me envergonho.’
À coluna, Hermano Freitas disse que o assunto ‘é de natureza pessoal’. Daniel Pellizzari e Marcelo Träsel não quiseram se manifestar.
A história não é nova. Barbara já havia abordado o fim do casamento no romance ‘Operação Impensável’ (2015) e em um texto para a revista piauí em 2017 chamado ‘O Dia que Aprendi a Lutar Caratê’. Assim como na revista, no novo podcast ela alterna suas falas com as de sua instrutora de caratê, Heloíse Fruchi.
A reportagem procurou Vanessa Barbara, que não quis se manifestar. No podcast, ela afirma que sofreu retaliações profissionais após denunciar o caso e que precisou se afastar do meio editorial brasileiro. Isso foi contestado por alguns dos envolvidos, pois ela teve livros publicados por selos da Companhia das Letras, onde trabalhavam Conti e Emilio Fraia, e publicou diversas matérias na revistas piauí, onde seu ex-sogro, Mario Sergio Conti, foi diretor de redação entre 2006 e 2011, além de ter colaborado com grandes jornais.”
Neil Gaiman e a frase adotada nas ocasiões de estupro
Que ser medonho, esse Neil Gaiman.
Nunca curti seu estilo ou histórias, razão pela qual jamais estendi considerações sobre sua figura. Ao que parece, a Cientologia a que os pais o submeteram é uma das causas para seu comportamento adulto como estuprador de mulheres mais jovens, por quem exigia ser chamado de “mestre”. O link https://archive.is/4CVCk, em inglês, trata disso, e é preciso ter estômago para continuar o longo texto até o fim.
Estive com o autor numa Flip da qual ele seria a pretensa estrela, há quinze anos. A ideia era entrevistá-lo durante o jantar com seu editor. Mas, como a ocasião não parecia me favorecer, a certa altura do jantar lhe pedi o e-mail, de modo a continuar a entrevista por escrito. Ele me olhou, sorriu para o editor e não me respondeu. Na hora senti incômodo, mas pensei: não gosto dele mesmo, vou fazer um texto simples e acabou.
Somente agora, após ler esta matéria, entendi um pouco melhor aquele episódio. Gaiman não utilizava o e-mail necessariamente para o fim jornalístico pretendido por mim. O contato era bastante usado, isso sim, para consolidar o cerco a suas vítimas, coisa que eu naturalmente estava bem longe de ser.
O Facebook destrói a verdade há muito tempo. Foi um dos responsáveis, a meu ver, por sérios golpes na democracia, a começar por aquela de seu próprio país, e a brasileira. Golpeia-nos não só com notícias falsas, também com fraudes comerciais, promovidas por pseudo-anunciantes que não retira do feed. E, claro, o obscurantismo também ganhou força desde que o Moska assumiu o Twitter.
No mundo ideal, não precisaríamos desta joça de rede social pra viver, ainda mais quando engendrada por uma gangue de multibilionários. A comunicação com o mundo seria realmente livre se tivéssemos nossa própria sociabilidade virtual. Mais que isso, se abraçássemos os amigos, por exemplo, nas manifestações de rua, estas que realmente mudariam as coisas.
Faríamos tudo isso a partir de agora, deixando o face pra lá? Torço muito. Mas duvido. Com Lula e Moraes, o Zuca ou some do nosso mapa ou murcha os caracóis dos seus cabelos. Eu decidi ficar e irritá-lo um pouco mais.
A ensaísta argentina Beatriz Sarlo, morta agora aos 82 anos, concedeu-me esta entrevista em agosto de 2015, na qual advogou o “turismo iluminista”, responsável, segundo ela, por mesclar o conhecimento à experiência
A intelectual argentina Beatriz Sarlo a caminho das minas de Oruro, em 1971
Beatriz Sarlo havia grudado o mapa de Viena na cabeça antes de conhecer a Áustria. Eis por que, se lhe pedissem, seria capaz de desenhar sobre um guardanapo as ruas em torno da Michaelerplatz. Ler era tão importante quanto viver, e o ensaio Viena fin-de-siècle: Política e Cultura, de Carl Schorske, havia lhe dado as pistas para todos os monumentos de um sonho de liberdade. As estações de metrô, os prédios de apartamentos, os bancos e os pavilhões desenhados em dura geometria pelo arquiteto Otto Wagner a arrebatavam. Haveria um lugar especial para sua catedral de São Leopoldo, a oscilar entre o ocre e o púrpura, quando finalmente conhecesse a cidade. Foi o que ela fez em 1995. Dentro do monumento de religiosidade, em um fim de tarde de outubro, subiu e desceu escadas. Mas não se deu conta de que o horário de fechamento se aproximava, tanto quanto um homem de avental e touca azuis, a lhe tocar o ombro por trás.
A maior ensaísta e intelectual argentina da atualidade, a mesma que em 1978 fundara a revista Punto de Vista e por meio de suas questões culturais, sob pseudônimo, driblara a censura ditatorial, esquecera-se de que São Leopoldo pertencia a um hospital psiquiátrico. O homem de azul, portanto, era um interno, um excluído que desejava aproximar-se. Tão logo o desconhecido se aproximou, contudo, Sarlo correu na direção das grades e ganhou a rua, à maneira do que fez o interno em direção oposta. Isto reafirmou, nela, uma crença importante. O imprevisto se impunha. A viagem era o que não se podia explicar. Senão, como interpretar aquela breve e intensa experiência física capaz de suplantar a beleza dos vitrais de Kolo Moser? Por muitos anos, a professora havia sido uma falsa especialista em Viena, ela não compreendera nada.
Aos 73 anos, Beatriz Sarlo ainda exalta este momento como seu enigma de uma vida inteira. E, impulsionada por ele, reinventa a juventude de seus fantasmas do passado. A narrativa vienense é o preâmbulo a seu Viagens – Da Amazônia às Malvinas (e-book e-galáxia, 300 págs., R$16,90), um livro escrito com falsa simplicidade, mas investigativo de uma complexa identidade latino-americana, esta que ela investigou a fundo a partir da década de 1960, em viagens anuais de dois meses nas quais enfrentou os altiplanos ou o planalto central do Brasil. Tudo o que vivera em momentos esparsos, o decorrer do tempo tratou de ampliar. “Não poderia argumentar que esses relatos são testemunhos neutros”, escreveu. “Não se tratam simplesmente de recordações, mas de formas nas quais a experiência me modificou a cada momento.”
Uma complexa identidade latino-americana, belamente discutida neste e-book da e-galáxia
Sarlo conta que se decidiu por este livro depois de receber um “encargo” de dois amigos. O primeiro deles, arquiteto, fora um de seus tantos companheiros nessas viagens de juventude, ansioso por retraçá-las. Ela nunca estivera só por esses caminhos e, segundo sua argumentação, formara com os colegas um grande coletivo, razão pela qual, posteriormente, não daria seus nomes no livro, incomodada em assumir sua perspectiva, em “falar pelos mortos”. O amigo lhe mandara, oito anos atrás, cerca de 150 fotografias daquele período, e em tantas delas Sarlo não conseguira se reconhecer. “Quem era aquela menina que, em meio às montanhas do sítio arqueológico de Samaipata, na Bolívia, apoiava-se numa construção de cimento vestida com uma camisa branca?”, perguntava-se.
O outro “encargo” para a escritura deste livro lhe foi feito por uma amiga, que lhe inquirira sobre outra viagem ao passado, à Amazônia peruana, e lhe indicara um livro de Philippe Descola em torno do assunto, As lanças do crepúsculo. Nele, o antropólogo francês discorria sobre seu conhecimento do lado equatoriano da mesma região. Aparentemente, Sarlo e seu grupo foram os raros visitantes, na porção peruana, da comunidade indígena dos jíbaros. O livro tornou-se, deste modo, quase inevitável por seu ineditismo, pela possibilidade que ela viu, ali, de valorizar uma investida exploratória passada, sem, contudo, embriagar-se de nostalgia.
Parecia-lhe motivador que pudesse de certa forma reviver, por meio de seu trabalho, a escrita do ativista e presidente argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) sobre a América, comparável à de Alexis de Tocqueville. Ou que reeditasse a seu modo a primorosa narrativa de Victoria Ocampo (1890-1979), uma intelectual que, como Sarlo, realizara inúmeras viagens por Buenos Aires, Paris ou Nova York, e como ela se dedicara a difundir o pensamento cultural em uma revista, no seu caso, a Sur. Isto tudo sem contar que, pelo louco desconforto de suas empreitadas, Sarlo relacionasse as próprias viagens com as absurdas investidas do escritor Robert Louis Stevenson (1850-1894) pelas savanas do Quênia, sobre uma mula.
Victoria Ocampo e Sarmiento, autores que fizeram da narrativa de viagem um gênero reflexivo
O livro, ela conta, começou por este grande desconhecido, para o qual não havia reunido anotações suficientes à época da viagem, quase cinco décadas antes. Na sua juventude, para ela e seu grupo, funcionava mais a “metafísica da presença”, uma crença misteriosa de que, apenas por estarem onde poucos estiveram, teria lhes sido possível vivenciar uma outra história, sonegada pela oficial. Seus muitos anos de estudo acadêmico e viagens como aquela à Áustria reforçaram a crença de que era preciso somar o saber das bibliotecas àquilo presenciado pelo viajante. No livro, Beatriz Sarlo reinventa-se na busca desse oxigênio mental do século XVIII europeu e constrói viagens que classifica como ideológicas, fundadas não apenas em guias ou mapas, mas em livros de história e política, manifestos e periódicos.
“Confrontar o conhecimento com a vivência é uma proposta periódica feita à humanidade, ou pelo menos ao Ocidente inteiro”, ela diz. “Durante o Iluminismo, pensou-se que o momento da compreensão intelectual era fundamental para a compreensão da experiência. Mas convenhamos que, embora isto ainda me atraia particularmente, é impossível de ser feito hoje. As escolas globalizadas não educam massivamente para a vida, como no século que passou. Em meu país, nos anos 1920, a escola distribuía cultura, mas agora, não mais, porque essa distribuição cultural é feita de maneira globalizada, incontrolável. O maior hit televisivo no meu país, neste momento, não é A Escrava Isaura, mas uma telenovela turca.”
Suas viagens são radicais. Em lugar do turismo de consumo e prazeres, advoga o imprevisto e os sobressaltos como a grande importância de viajar. Algo semelhante ao que fez nas Malvinas em 2013 durante a votação do plebiscito pela soberania em relação ao governo inglês. Sarlo se hospedou na casa de uma família radicalmente contrária à determinação argentina sobre a ilha e acompanhou de que modo esses habitantes optaram pela segurança militar britânica. Em uma ocasião, uma criança da família tolheu seu intuito de acompanhá-la até a escola, onde o diretor restringiu a visita da educadora argentina à sala da diretoria.
Veio ao Brasil na esperança de aqui encontrar modernidade, ainda que capitaneada pelo Estado. Brasília anunciava o futuro, embora seu presente estivesse fincado sobre desigualdades “bestiais”, essas que ela não testemunhara no próprio país. Havia uma enorme diferença entre a Praça de Maio, em Buenos Aires, e a Praça dos Três Poderes. “Sua beleza nos deixou pasmos enquanto caminhávamos de um extremo ao outro pelas esplanadas”, escreve. “A diferença era que estava deserta. Seu simbolismo se originava na potência do gesto arquitetônico e construtivo, na confiança da política fundacional, não nas camadas de passado que ainda não haviam tido tempo de se depositar sobre aquelas superfícies perfeitas. Na Praça dos Três Poderes, a decisão de um Estado e o gênio de Oscar Niemeyer haviam substituído a história que é a grande arquiteta das outras praças latino-americanas.”
Hoje acordei de um sonho explosivo. Pessoas do mal me metiam num jogo de morte, mas, de forma miraculosa, eu conhecia as regras e sobrevivia a seus ataques. Acordei suada, sentindo um alívio tremendo.
Fui ver que horas eram. Na tela do celular, abriu-se a manchete: a palavra “Lula” estava unida à expressão “hemorragia cerebral”. Por pouco não fui eu também a espalhar sangue pela cabeça. Vivo sobressaltada. Aposto que todos nós.
Dois cafés depois do sonho, desço à rua e deparo com quatro PMs numa ponta da praça vizinha. Ao lado de suas motocicletas estacionadas, olhavam os celulares. É uma tradição. A puliça faz ponto na avenida mas não coíbe assaltos. Certa vez, à noite, apelamos para que uns soldados, igualmente estacionados ao lado de suas viaturas, respondessem ao apelo de um ciclista que presenciara roubo de celulares na vizinhança. A resposta dos policiais: “Não podemos sair daqui e deixar os carros sozinhos.”
Antigamente, pela manhã, eles se exibiam naquela ponta da praça ao lado de seus cavalos, deixando a bosta dos bichinhos para alguém limpar. Hoje, os quatro policiais motoqueiros ali presentes tinham, como sempre, uniformes e tênis novos. Olhei para suas motos estacionadas e vi a marca: BMW, meu povo.
Entendo que se exibam com motos desse porte para demonstrar força. E intimidar. Na noite em que apareceu o filme do jovem arremessado da ponte, as viaturas zuniam pra lá e pra cá. Eles parecem estar sempre no cio. Ainda bem que o tombo de Lula não teve consequências piores e que meu inconsciente parece convencido de que eu sei jogar.
Nunca vi a chef Renad, de 10 anos, chorar diante da câmera. Ela sorri até mesmo quando nos explica que os israelenses não têm outro plano exceto extingui-la e aos seus. Não conheço ninguém igual e a amo como a palestina percebida por mim como uma filha, uma neta, uma prima, uma irmã ou eu mesma. Aqui, ela abre uma caixa de produtos básicos de limpeza como se fossem tesouros, que de fato o são diante do sufocamento cotidiano sentido (por ela e por nós) como um genocídio. Que ela consiga ainda estar aqui por muitos anos, estudar, florescer, amar e sentir o cheiro da hortelã pelas manhãs.