Os duros começos de Kafka

Ao recuperar as cartas à noiva Felice Bauer, biógrafo expõe as apreensões do escritor e suas conquistas literárias de início

O sorriso, o chapéu coco, o insuspeito humor de quem provocara riso
nos amigos ao ler o primeiro
capítulo de “O Processo”

Em 1912, findo o réveillon, o escritor Frank Kafka (1883-1924) decidiu fazer um de seus costumeiros balanços de vida. Para tanto, escreveu as reflexões em seu diário, aquele que preenchia especialmente durante horas tranquilas, as noturnas, nas quais o silêncio parecia reinar na casa onde morava com a família, contígua à loja de produtos de luxo administrada pelos pais e irmãs, em Praga. Tinha 28 anos. Trabalhava pela manhã numa corretora de seguros, descansava à tarde, estava a um ano de escrever “O veredicto”, o primeiro texto a concretizar sua concepção literária, e pensava que o insucesso amoroso não poderia atormentá-lo mais. “Quando ficou claro em meu organismo que a escrita era a tendência mais produtiva do meu ser”, escreveu, “tudo o mais acorreu ao seu encontro, esvaziando todas aquelas capacidades que, de início, dirigiam-se para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e da música”.

É quase certo que Kafka tivesse um organismo literário, por assim dizer. Mas por que a literatura excluiria necessariamente sua realização no amor, ainda mais naquele momento em que mal pusera seus escritos à prova pública? O motivo não seria religioso, considera o biógrafo alemão Reiner Stach em “Kafka: Os anos decisivos” (Todavia). Neste livro extenso, tantas vezes primoroso, a revirar com clareza erudita até mesmo a necessidade de as biografias existirem, considera-se que o fracasso literário não é uma opção para Kafka, enquanto o amoroso, ele talvez pudesse suportar. Um escritor, ele dizia, nunca estava suficientemente sozinho para escrever. De modo a continuar produzindo com energia, até mesmo contra a birra do pai, que não queria vê-lo dormir depois do almoço, ele poderia encontrar qualquer desculpa interior, fosse contra o amor ou contra o consumo de café e carne, embora a realidade às vezes teimasse em contradizer essas determinações.

Felice Bauer,
a primeira noiva

Pouco depois de avaliar que a paixão seria inalcançável para ele, uma vez que seu “organismo” nascera para a escrita, Kafka se enredou amorosamente de forma quase inexplicável por uma trabalhadora doce e obscura de classe média, Felice Bauer, mais interessada na obra do dramaturgo August Strindberg que na dele próprio, e dedicada à família de maneira profundamente compulsória, mais do que a si mesma. Ela era próxima do amigo Max Brod, um dos solteiros de seu grupo social de escritores (e aquele que, além de escrever sua biografia, recusaria o pedido do amigo para que queimasse seus originais). O envolvimento de Kafka com a jovem distante, moradora em Berlim, acabou por consumir muitos daqueles momentos de impulso criativo que ele esperava reservar para a escrita. O autor de “A Metamorfose” não parecia mesmo caber na autoimagem de celibatário infeliz. 

Esta biografia dos anos iniciais, que se faz a partir do espólio de Felice, descoberto por Reiner Stach nos Estados Unidos, inclui as cartas do escritor à amada (sem o contraponto das respostas de Felice, que Kafka destruiu), sempre entremeadas pela crença segundo a qual, para segui-lo, sua noiva deveria se prontificar a viver o inferno em vida. O raciocínio de Kafka, explicitado até mesmo ao pai dela, era simples, e caminhava pelo entendimento pequeno-burguês enraizado em seu meio social. Seria possível compartilhar o leito com quem não via outra razão para a existência exceto escrever, ademais sem ganhar dinheiro suficiente para isso?

O biógrafo Reiner Stach, com o ímpeto de historiador cultural

O biógrafo Stach, de 71 anos, é treinado no entendimento literário, filosófico e matemático. Seu poder de investigação parece infindo, embora ele veja no leitor médio o seu objeto, razão pela qual, ao escrever, jamais ceda à obscuridade. Como historiador cultural, Stach considera não apenas os fatos que cercaram a vida do escritor judeu em língua alemã na antiga Tchecoslováquia, mas também o conceito de sucesso e de fracasso literários naquele palco onde Kafka, em busca de concretizar sua visão, desconsiderou a gravidade da Primeira Guerra Mundial (é celebre a entrada em seu diário na qual diz ter ido nadar à tarde depois de decretado o conflito de manhã), distanciou sua literatura do sionismo militante praticado pela figura controversa de Brod e exerceu o humor aprendido no teatro iídiche mesmo em textos improváveis de sua autoria, como “O Processo”, cujo primeiro capítulo ele lera habilmente em voz alta de modo a provocar a risada dos amigos.

O flerte obsessivo com Felice foi uma prova muito dura. No verão de 1912, deu-se seu encontro com ela, e a difícil decisão de cortejá-la de maneira quase totalmente epistolar. Dois anos depois, aconteceu o rompimento do noivado. Nas duas vezes, diz seu biógrafo, Kafka sentiu estar sendo empurrado para a margem de sua própria existência. Nas duas vezes, ele mobilizou uma poderosa vontade de entrar nos moldes para combater a dissolução mental. Stach compreende estar lidando com uma mente poderosa e não busca rivalizar com ela, antes compreendê-la, algo seguro de que vai fracassar. Ele sabe que tudo o que percebe, Kafka aplica no que escreve, às vezes composições inteiras primeiramente deitadas nos diários que vão se tornar pequenos livros. Seu biografado está imbuído da perfeição, ciente de que sua missão é distinta de todos à volta, até mesmo do escritor Robert Musil, que o aceita no meio literário com reservas. Kafka era único no que fazia e podia provar.

Os melhores momentos da biografia situam-se na constatação da diferenciação deste saber. O que torna Kafka tão distinto de todos os artistas que o cercavam? Não era somente sua linguagem direta, enxuta, moderna, que certa vez obrigou um editor a aumentar o tamanho dos tipos e o entrelinhamento das páginas para apresentar ao mercado literário um volume de tamanho razoável contendo seus textos. A grandeza de Kafka estava no entendimento total que ele tinha de uma situação antes de relatá-la. Ao contrário do romancista polonês de língua inglesa Joseph Conrad (1857-1924), por exemplo, que certa vez disse ter construído a protagonista Winnie Verloc, de “O agente secreto”, a partir de observações coletadas ao acaso, Kafka começa a produzir a partir de um reservatório de ideias “que já está cheio”.

“A Metamorfose”, longe de ser
seu livro predileto

Em seus diários, pode-se ler a evolução dos pensamentos que vão resultar em um futuro texto. Os diários comprovam que os campos de tensão, as metáforas, os gestos e os detalhes já estão prontos, frequentemente até na forma exata que terão no futuro. “Kafka não trabalha o abalo sofrido, ele trabalha o material acumulado que foi liberto pelo abalo”, observa Reiner Stach. “Assim se explica que as referências e associações entre os elementos visuais e linguísticos de seus textos tenham uma densidade tão única e desafiadora. Tudo parece corresponder a tudo. É como se Kafka não precisasse inventar ou desenvolver mais nada e pudesse usar toda a sua força criativa na integração, na perfeita articulação de todos os componentes.”

Mais que isso, ele constrói uma tensão que não será resolvida pela saída tradicional, a morte. A tensão em Kafka provém de uma perspectiva inusual para seus contemporâneos. É uma perspectiva que expõe apenas o que está dentro do horizonte de percepção do protagonista. O leitor entra em um estado de identificação cada vez mais forte com esse personagem, como se estivesse “sob o efeito de um campo gravitacional”, no dizer de Stach. É o caso de “A Metamorfose”, um texto que Kafka escreveu enquanto permanecia obsedado pela conclusão de outro texto, “O desaparecido”, e que não sentia a menor urgência em editar, tão espontâneo fora escrevê-lo e concluí-lo. “A Metamorfose” nascera da sensação de que nem mesmo sua única confidente, a irmã Ottla, aceitava sua necessidade de se distanciar de um empreendimento familiar, uma fábrica de amianto na qual a família desejava ter seu empenho, justamente nas horas vespertina de descanso. Ele chegara a um ponto de desvalorização pessoal sem volta, como uma barata pisada, conformada com seu destino. Kafka sempre quis ser publicado, mas jamais desejou aparecer. Especialmente, aparecer com este livro foi uma espécie de fim.

Esta resenha foi publicada originalmente pelo site do caderno Aliás do Estadão em 11 de janeiro de 2023

A redescoberta da morte, por Kenzaburo Oe

Neste texto que escrevi originalmente para o Estadão, descrevo a obra “A Substituição ou As Regras do Tagame”, em que o romancista japonês dialoga com a ausência

Kenzaburo Oe em foto de 2002

Nascido na pequena ilha japonesa de Shikoku, em 1935, o autor do romance “A Substituição ou As Regras do Tagame” passou a maior parte da infância imerso no ambiente hostil provocado pela guerra contra os aliados, certo de que, conforme lhe ensinou um professor, a figura imperial equivalia à de um deus pelo qual valeria a pena morrer. Kenzaburo Oe era uma criança circundada pela imaginação, mas, em lugar dos livros, preferia o modo contagiante pelo qual a avó lhe transmitia as histórias da tradição familiar. O pai morreu ao combater no Pacífico em 1944 e a mãe logo apresentou ao filho “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, um clássico de predileção paterna. Ao ler a obra, o menino maravilhou-se com a literatura em papel, mas jamais pôde confessar aos professores sua admiração por um autor dos Estados Unidos, país contra o qual o Japão lutava. E foi assim que, nas suas conversas escolares, Twain virou alemão.

Se a guerra transforma a verdade em primeira vítima, não apenas o garoto mentira a seus mestres sobre a nacionalidade do autor estadunidense, como o imperador, ao contradizer publicamente a figura divinizada, fizera pouco caso da crença que os fieis lhe devotaram. A guerra acabou para Kenzaburo Oe não somente quando duas bombas atômicas foram jogadas contra seus compatriotas, mas quando o líder do país, ao aceitar a derrota, permitiu que os Estados Unidos ocupassem seu terreno. 

Antes de completar 30 anos, em 1961, Oe era já um escritor reconhecido que não temia discorrer livremente sobre assuntos como o assassinato, no ano anterior, de um político socialista por um estudante de extrema direita para quem o imperador representava deus. “Seventeen” (incluído no volume “14 Contos de Kenzaburo Oe”, editado no Brasil pela Companhia das Letras) desagradou aos dois lados do espectro ideológico japonês, ora acusado de zombar do legado imperial, ora de glorificar um terrorista.

Até aquele momento, o escritor, que estudou literatura francesa na Universidade de Tóquio e se apaixonou por Rabelais, definia-se como um existencialista, advogando as causas que sempre o acompanhariam, como o antimilitarismo, o pacifismo e o combate ao ultranacionalismo. Não só admirava Jean-Paul Sartre como, pertencente a uma família de jornalistas, chegou a entrevistá-lo.

No início dos anos 1960, com a
esposa e o filho que tudo mudou

Em 1963, contudo, todo o apego às causas universais arrefeceu nele. A literatura e principalmente a vida seriam outras após o nascimento do primeiro filho com a esposa Yukari. Vítima de um problema neurológico que dificultava sua comunicação com o mundo, Hikari, nome que em japonês designa Luz, fez o escritor pensar em ser um homem muito melhor, de modo a acompanhá-lo também por meio da literatura. Assim como descrevera em ensaio as chagas de Hiroshima, agora passaria a fazer do filho, de quem cuidaria por toda a vida, seu interesse central, numa autoficção permanentemente temperada pela realidade.

Dito assim, pode parecer que sua escrita de nobres propósitos tenha resvalado para um tédio engajado, mas nada poderia estar mais distante desta suposição. O artista que faz das pessoas próximas, personagens, inventando-lhes novos nomes e modificando episódios reais, aplica encanto filosófico à história de superação familiar sem deixar de propor que os caminhos para esta cura se estendam a toda a sociedade.

A academia sueca que designa o Nobel entendeu o seu recado e lhe entregou o máximo prêmio literário – “por criar um mundo imaginário onde a vida e o mito se condensam para formar uma imagem desconcertante da situação humana atual” – em 1994, seis anos antes que este “A Substituição ou As regras do Tagame” fosse publicado.

O cineasta Jûzô Itami, autor de “Tampopo: Os Brutos também Comem Spaghetti”, que vira Goro neste romance a examinar seu suicídio

A escritura do livro tem uma razão central, que é o suicídio em 1997 de seu cunhado cineasta Jûzô Itami, intitulado Goro no romance (enquanto Kenzaburo Oe vira Kogito, em referência explícita a Descartes, de “penso, logo existo”, ou “cogito, ergo sum”). Por meio de Goro, Itami, que foi roteirista e diretor do filme “Tampopo: os Brutos também comem spaghetti” (1985), torna-se um personagem intenso. Kogito o acompanha desde a escola, muito admirado por seu porte, beleza, talento, pelas coisas que lhe diz e faz. Goro pensa transformar em filme um episódio narrado por Kogito, mas, antes que isto possa ser ao menos planejado, o cunhado, embriagado de conhaque Hennessy, joga-se da janela de um prédio sem uma razão aparente.

O suicídio do amigo o leva a pensar não em seu fim, antes em sua permanência, como uma alma que jamais percebe a morte, mantendo uma existência ingênua por meio das fitas que gravara antes do fim e que Kogito ouve em fones de ouvido com o formato de um besouro chamado Tagame. É com o Tagame, agora entendido como todo o aparelho de reprodução sonora, que o narrador conversa, respondendo a Goro mesmo em sua ausência, ou por causa dela.

O romance é tecido a partir de uma escrita direta e corre entre o bom humor e a tragédia, enquanto Kenzaburo Oe analisa com deliciosa derrisão a si mesmo e aos fatos, aos personagens, às situações vividas em ambiente literário, político, erótico, corporativo, com ou sem a violência dos yakuzas que certa vez atentaram contra a vida de Goro. Uma qualidade narrativa, quem sabe, herdada do jeito particular de sua avó ao contar histórias.

Ex-ator, o cunhado é a febre japonesa por excelência, mas seu cinema o afasta a cada dia do sucesso, já que ele se esmera em planos longos e evita os close-ups, a seu ver erroneamente direcionadores da sensibilidade de quem olha. Tampouco Goro quer realizar o cinema usual, responsável por retratar o homem invencível, pois, argumenta, ao verem esse tipo de heróis, os espectadores se esquecem da própria fragilidade. Além do mais, é preciso operar a substituição a que o título do livro alude, e em todos os campos, da vida à arte. 

Os novos heróis desejados por este romance são as pessoas periféricas e partidas, à moda do filho do protagonista, Akari, um personagem de extrema sensibilidade musical e argúcia emotiva, características estas que excedem o romance, uma vez que no mundo real o rebento de Oe se transformou em um dos compositores eruditos mais famosos do Japão. Akari constitui o estranho contraponto de bom senso à intensidade do próprio Kogito, que de Descartes, no fim das contas, tem pouco, a ponto de lidar mal com a morte da tartaruga destinada a seu jantar, numa passagem eletrizante do romance. É preciso então que o bom senso esteja a cargo do filho e principalmente da esposa, Chikashi, a irmã de Goro que sustenta a dignidade familiar.

Trata-se de um romance sobre o tempo ou sobre a morte? Para Kogito, a questão nem existe, já que o tempo buscado pelo escritor francês Marcel Proust, tão referencial para ele, equivale mesmo a sua percepção de que passará. Em lugar de “O Tempo Redescoberto”, o livro do escritor francês deveria se chamar “A Morte Redescoberta”, entende Kogito numa epifania, pois “a morte é o tempo!” 

Quem leu Proust vai entender Kenzaburo Oe, mas deparará em suas linhas com alguma coisa mais contemporânea, que é a urgência de transpor (outra forma de substituir) os velhos preceitos político-sociais por uma mentalidade rejuvenescida, capaz de salvar o futuro do ser humano sobre a Terra. A forma do romance, muito original, evoca a reinvenção operada justamente por Proust. Estamos diante de uma narrativa que se desfolha aos poucos, quase desordenadamente, emendando as situações onde não as imaginaríamos unidas. Tal literatura é principalmente, ou continuamente, uma reflexão sobre a arte literária. “O que” e “como escrever”, diz o narrador, são duas trepadeiras entrelaçadas. E o ato de escrever se constitui em ir aos poucos desembaraçando-as.

Elsa Morante defende sua visão de arte e literatura em ensaios que chegam ao Brasil

A seguir, a resenha que escrevi sobre o livro de ensaios “Pró ou Contra a Bomba Atômica”, publicado no suplemento Aliás, do Estadão, em 8 de agosto de 2021

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa.

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.

Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.

Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.

Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte”, escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.

Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”

Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”

A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.

Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”

Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. “Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”

Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.”

Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

*ROSANE PAVAM É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

Em ‘O Ministério da Verdade’, Dorian Lynskey traça uma biografia de ‘1984’, de George Orwell

A seguir, a resenha que fiz deste importante livro de história cultural para o suplemento Aliás, do Estadão, publicada em 11 de julho de 2021.

Há uma informação logo na primeira frase que foi modificada de meu texto original. No artigo publicado, imprime-se que Orwell morreu em 1949, mas foi em janeiro de 1950. E “1984” foi publicado em 1948.

George Orwell (1903-1950) publicou 1984 em 1948, um ano e meio antes de morrer com tuberculose. A obra, que ao sair foi comparada a um terremoto, a um feixe de dinamite e ao rótulo numa garrafa de veneno, revelou-se caleidoscópica, e a cada temporada histórica uma diferente interpretação do livro se sobressaiu. Durante a Guerra Fria, este que se tornou o último texto ficcional do escritor inglês foi lido como um romance sobre o totalitarismo, com a tendência de a crítica ocidental ligá-lo unicamente à barbárie stalinista. Na década de 1980, o volume, já compreendido como um clássico, parecia alertar sobre as tecnologias de vigilância, embora Milan Kundera e Harold Bloom o entendessem como um romance ruim. O escritor Anthony Burgess, que construiu Laranja Mecânica à sua luz, chegou a defini-lo como “o código apocalíptico de nossos piores medos”. E atualmente, em meio ao império global das informações falsas, 1984 tornou-se um dos mais poderosos livros em defesa da verdade.

Ainda que seja possível admitir sua imaginação ficcional limitada, como queriam Bloom e Kundera, o romance exibe intacto o poder da escrita persuasiva, em um fluxo de observações a expressar o profundo incômodo de seu autor, conforme escreve o historiador cultural inglês Dorian Lynksey, de 47 anos, nas espetaculares 488 páginas de O Ministério da Verdade. A sua é uma investigação muito bem fundamentada de história cultural, que insere as ideias e seus artífices no contexto de produção, sem perder de vista o leitor comum. A linguagem clara arma-se para reproduzir a atmosfera mental na qual foi composta a dura sátira que, mesclada a uma história de amor, virou peça radiofônica, encenação televisiva e filme homônimo por Michael Radford, além de traduzida para mais de 60 línguas.

A trama ficcional parece conhecida, a ponto de uma de suas situações, a da eterna vigilância, ter sido parodiada em um reality show de sucesso, onde o punitivo Quarto 101 virou Confessionário. Mas talvez poucos a tenham lido realmente, o que vale uma rememoração. Em 1984, o protagonista Winston Smith passa os dias reescrevendo exemplares antigos do jornal The Times no Ministério da Verdade, de modo a tornar os fatos inventados do passado uma justificativa à opressão presente. Um dia, apaixona-se, o que é proibido. Ele e Julia, seu amor, precisam driblar a impressão de que a memória os engana. Tentam acessar o mundo anterior à imposição da “novafala” (a tradução a preferiu à conhecida “novilíngua”), recurso vocabular de modificação constante que dá sentido ao “duplipensar”, ou o pensar uma coisa enquanto se propõe outra distinta.

O sistema de duplicidade em que vivem é estabelecido pelo Grande Irmão, que tudo controla e vê. Seu objetivo ao construir “despessoas” é interromper tanto a ciência quanto a história. Ao desejar o fim desse mundo no qual “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força”, Winston também sabe que seu final logo virá, embora não calcule que esse apagamento se dará por meio da renúncia horripilante a seu amor por Julia. Enquanto isso, os cientistas continuarão a projetar teletelas e helicópteros-espiões, a inventar novas armas e dispositivos de tortura, a realizar cirurgias plásticas radicais e a tentar abolir o orgasmo, ao mesmo tempo em que nada farão para melhorar a qualidade de vida geral.

É o mundo terrível como o vemos conhecendo? Sim e não. A novafala de Donald Trump, por exemplo, exemplificou o sim, uma vez que sob o ex-presidente estadunidense foram admitidos “fatos alternativos” em lugar de “fatos”. O livro não deseja retratar apenas aquele universo de constante tensão e cancelamento imaginado pela sanha stalinista. 1984 é também um retrato do fascismo e de todos os regimes políticos a sufocar a liberdade e a convergir o poder na direção de um “coletivismo oligárquico” do qual os trabalhadores se veem, na verdade, excluídos. Orwell, um homem de esquerda, investiu contra todos os totalitarismos. “Por trás de Stalin se esconde o Grande Irmão”, escreveu o crítico E. M. Forster em 1951, “mas o Grande Irmão também se esconde por trás de Churchill, Truman, Gandhi e qualquer outro líder usado ou inventado pela propaganda”.

O cineasta Radford, que adaptou a trama às telas aceleradamente, para que estreasse em 1984, a vê como um “mito grego”, por meio do qual é possível até mesmo “examinar a si mesmo”. Mas é curioso como tantos, desde a apresentação do livro ao público, tenham preferido tratá-la como uma obra falha no sentido de cravar profecias. Orwell disse muitas vezes que não previa nada com seu escrito, certamente nada que envolvesse ciência, ao contrário do que elaborara com bastante sucesso seu antecessor H.G. Wells. O autor de 1984 apenas fazia uma leitura “provável” do futuro, baseada tanto na sua experiência como combatente na Guerra Civil Espanhola quanto naquela de ávido leitor, tanto de história política quanto das ficções utópicas, entre elas Nós, de Ievguêni Zamiátin, que conheceu depois de haver iniciado seu romance e na qual parcialmente se baseou.

A experiência ao lado dos anarquistas foi uma daquelas a contribuir para a fama de “idealista estabanado” com a qual o escritor e amigo Henry Miller o presenteara. Nascido Eric Arthur Blair na Índia em 1903, um descendente da baixa classe média que havia cursado a elitista escola Eton, Orwell era um “revolucionário apaixonado”, segundo o amigo Cyril Connolly. E somente quando colocado na pele daqueles caídos abaixo do sistema de classes sentia experimentar um “igualitarismo”. Havia escrito Na Pior em Paris e Londres, de 1933, em que usou pela primeira vez o pseudônimo que o tornaria famoso, com esse objetivo, e três anos depois se encontrava ao lado dos anarquistas no Aragão. Os anarquistas queriam a revolução além da queda do general Francisco Franco, motivador do conflito. Mas os comunistas estavam ali apenas para expulsá-lo do poder. Apesar de pertencer ao grupo anarquista, Orwell, alguém a cultivar o não como quem se alimenta à vasta mesa da contrariedade, acreditava que os comunistas estavam certos em seu objetivo.

Com o tempo, o escritor percebeu, estupefato, que não somente os fascistas eram uma ameaça, mas também os comunistas adeptos de Stalin. Eles haviam expandido mentiras em cascata para desabonar os anarquistas. Mentiram, por exemplo, que eles haviam se associado a Franco para solapar a revolução. Eram os comunistas os transmissores das fake news sobre Trotsky que culminaram em seu assassinato. E haviam obrigado o próprio Orwell a fugir para Paris em meio ao conflito, uma vez que lutava ao lado dos anarquistas. Por que Orwell criticava o comunismo com mais vigor que o fascismo? Porque ele o tinha conhecido de perto, e porque o apelo do comunismo, a seu ver, era mais traiçoeiro, uma vez que também ele apagava a verdade, como num pesadelo. Mas a política não o enojava. Ele até mesmo a introduziu na sua distopia (termo criado por John Stuart Mill em 1868 que Orwell, aliás, jamais usou), diferenciando-a daquela de Aldous Huxley, que não mencionava a manipulação política em seu Admirável Mundo Novo, de 1932.

O que mais perturbava Orwell, um “guerreiro puritano” segundo seu editor Fredric Warburg, era a retórica brutalizante. O escritor, cujos admiradores foram tão díspares quanto a escritora Margaret Atwood e o músico David Bowie, via a Inglaterra como uma “terra de esnobismo e privilégio governada sobretudo pelos velhos e pelos imbecis”. E em todo avanço científico assimilado pelo poder o autor de 1984 constatava acelerar-se a tendência para o nacionalismo e a ditadura. Para ele, que deixou de examinar o sexismo ou o racismo em seu romance, a tecnologia jamais seria capaz de construir paraísos, ao contrário do que estabelecia o senso comum das ficções utópicas. Até porque, como diria o líder trabalhista e ex-premiê britânico Clement Attlee, citado por este estudo, “a maioria de nós seria muito infeliz nos paraísos alheios”.

É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’