O filme britânico “Broken English”, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, faz homenagem à cantora e compositora morta em janeiro deste ano
Aos 76 anos, Marianne Faithfull vê recortes sobre sua carreira apresentados por George MacKay, de 33
“Broken English”, dos diretores Jane Pollard e Iain Forsyth, é uma hagiografia amorosa da cantora e compositora inglesa Marianne Faithfull (1946-2025). Um documento de amizade justificado não apenas por ter sido Marianne quem foi, autora, entre outros, dos versos da canção que intitula o filme, mas pelo sofrimento experimentado por ela ao exercer o protagonismo feminino em época tão desinteressada disso.
Sob o frio chuvoso de 29 de outubro de 2025, a caminho da sessão do documentário no Cine Satyros Bijou, na praça Roosevelt paulistana, eu me sentia um tanto como em maio de 1990, quando vi uma apresentação ao vivo da artista em Paris. Tinha medo e andava só.
Verdade que pouco deveria temer em São Paulo agora, pois moro na vizinhança e sei onde piso, ao contrário do que acontecia no bairro parisiense à época de minha juventude. Mas é que os dois bairros, o da República e o La Pigalle parisiense, algo se aproximam, visitados não só pela boemia artística como pela dor da pobreza e da prostituição, com as quais não sei lidar ao certo (mas à solidão, me acostumo bem).
Era noite iluminada pelas cores carmim e esmeralda, como naquela Paris, quando cheguei à porta do Satyros, eternamente o Bijou de minha infância e adolescência. As cadeiras vermelhas da pequena sala de cinema (as poltronas do La Cigale tinham cor idêntica) estavam no mesmo lugar. No Bijou, eu pude assistir quantas vezes desejei, em uma mesma sessão, aos filmes que me impressionaram, tão diversos entre si quanto “A Crônica de Hellstrom” (1971) e “O Amigo Americano” (1977) pudessem ser. Agora somos obrigados a sair da sala tão logo acabe o filme. Agora também não há mais pulgas e outros bichos eventuais entre as cadeiras. Mas a conversa lá fora, nós a ouvimos como antes, sem que ninguém se anime a interromper.
Não à toa, portanto, o passado voltou. Era pleno porque eu via Marianne na tela também. Filmado em algum ponto de 2024 até o início de 2025, quando a artista morreu, o longa me revelava, contudo, uma outra mulher. O rosto arredondado e liso parecia afável, apesar de o tubo para a entrada de oxigênio estar visível. E o sorriso constante dos últimos dias seria impossível de perceber em 1990, quando a soberba se destacava na sua expressão facial e na postura de palco, o cigarro eternamente entre os dedos. Uma condição que, para mim, gritava Marianne até ver este documentário, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Nele a artista acresceria, ao forte orgulho, a raiva e a luxúria como seus pecados capitais prediletos, todos eles reverenciados no álbum de 1998 “The seven deadly sins”.
Marianne ao centro, em 1967, numa visita ao guru Maharishi (sentado) na companhia de Michael Cooper, Mick Jagger, Shepard Shebell e Brian Jones
Amei aquela mulher como amei a Rita Lee de início, os cabelos longos franjeados, a ousadia de estar entre a soberba masculina do mundo do rock com o talento, a beleza e a ousadia das roupas e sapatos. Hoje podemos calcular apenas longinquamente o quanto este ambiente custou para as duas artistas. Internações, overdose, depressão e isolamento eram constantes em Marianne. O descrédito doía. Igualmente machucava a tentativa de apagá-la ao torná-la “visível” em manchetes como aquela que relatou sua pretensa nudez numa festa em casa do guitarrista Keith Richards. “Era muito mais lógico para eles que eu tivesse morrido”, ela crê.
Com Courtney Love em sua casa londrina no ano de 2021, quando gravou o disco “She Walks In Beauty”
Eis um filme feito de muitas reflexões sobre o ato de fazer um filme e sobre a predominância do desejo de não-esquecimento, proferido pela atriz Tilda Swinton como quem dirige o documentário a partir de uma cabine do tempo. O restabelecimento do poder feminino é a tônica expressa por debatedoras, atrizes e até por uma performance da cantora Courtney Love.
Bob Dylan à máquina de escrever, cantando Marianne na cara dura
Marianne conta que “Sister Morphine”, sua primeira composição de sucesso (ela diz que fez a letra para que Mick Jagger parasse de tocar a melodia na guitarra o dia todo), foi desautorizada às paradas depois do segundo dia de execução pública. Não era possível que revelasse vício a voz de uma jovem a quem o mercado atribuía tamanho encanto – este compartilhado pelo músico Bob Dylan, que lhe dedicou um poema na cara dura, mesmo estando ao lado da mulher, a cantora Joan Baez, tão admirada pela inglesa. Marianne diz que nem viciada era então. Contudo, a canção parecia liberada para que Mick Jagger, o então namorado com quem vivia, a interpretasse sob aplauso geral. “Por que você não se manifestou a respeito? Você ou Jagger?”, perguntou-lhe no filme o apresentador George MacKay, de 33 anos, ao mostrar extratos de suas entrevistas e apresentações. “Não sei”, Marianne respondeu, após hesitar. “Não éramos tão conscientes disso quanto vocês hoje são.”
O filme brilha no fim, quando Nick Cave rege em estúdio a sessão final de gravação da vida da artista.
Saio do meu Bijou inquieta como as luzes vermelhas e verdes projetadas sobre a rua molhada. Saio como quem reflete. Decidida a não esquecer uma das verdades de Marianne proferida no filme, prezo a incerteza, rica como a água da chuva que corre.
Iain Forsyth e Jane Pollard, os diretores de “Broken English”
Documentário na 49ª Mostra refaz o evento de 1978 que reuniu a contracultura de Nova York para homenagear a obra, a lucidez e o humor do escritor
William S. Burroughs na América para a qual imaginou um futuro, em cena de “Nova ’78”
O filme Nova 78, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é a história da contracultura reconstruída em hora propícia. Um documentário a nos lembrar do ponto de onde poderíamos ter partido para a construção de uma sociedade igualitária, não estivéssemos hoje mergulhados na distopia mundial que estagna a fraternidade e a justiça entre os povos.
Este é o filme em que vemos o escritor estadunidense nascido em Saint Louis William S. Burroughs (1914-1997) ser reverenciado por seus continuadores, entre 30 de novembro e 2 de dezembro de 1978, após mais de duas décadas das viagens por ele empreendidas à América Latina, à Europa e ao norte da África. Nas filmagens em 16mm feitas originalmente pelo cineasta Howard Brookner, morto com aids aos 34 anos, em 1989, e com o som providenciado pelo futuro diretor estadunidense Jim Jarmusch (nascido em 1953 e cujo mais recente filme, “Pai mãe irmã irmão”, também é exibido na mostra), podem-se acompanhar os passos do encontro intitulado Nova Convention, que 47 anos atrás perseguiu o conceito “nova”, de Burroughs, segundo o qual o futuro se escreveria no espaço, não no tempo.
Ao encontro realizado no Entermedia Theatre, teatro off-Broadway situado na Segunda Avenida com a Rua 12 (e convertido em um complexo de cinemas multiplex nos anos 1990), comparecem amigos e artistas da contracultura agradecidos à influência de Burroughs, como os poetas compatriotas Allen Ginsberg (1926-1977) e Peter Orlovsky (1933-2010). Os dois realizaram um show no qual Orlovsky acompanhou ao banjo a musicalidade poética de Ginsberg. Houve outras duplas de convidados, como a composta pelo bailarino Merce Cunningham e o músico John Cage, artistas que mantiveram uma parceria criativa e amorosa dos anos 1940 até a morte de Cage, em 1992. Em seu show, Cage aponta notas mínimas para o equilíbrio desenvolto de Cunningham, então com 59 anos.
A artista Laurie Anderson esteve presente ao evento com seu humor, a preconizar o futuro digital, e Philip Glass tocou as notas sonhadas de seu futuro em um sintetizador Yamaha. Frank Zappa compareceu, mas não fez um show musical: depois de informar a todos os presentes que não gostava especialmente de livros, leu o trecho de “Almoço Nu”, de Burroughs, no qual o Cu é o ventríloquo do homem, a peidar bobagens quando fala. O psicólogo e escritor Timothy Leary comparece a uma mesa em que compara uma fala de Burroughs a uma imagem causada pelo uso do LSD, alucinógeno que advogava. A poeta do rock Patti Smith tem de comunicar à plateia a ausência da prometida estrela Keith Richards no evento, mas não dá ao público muito tempo para protestar. Suas palavras poeticamente firmes e a guitarra pesada envolvem-no rapidamente. Além de Richards, outra ausência notável é a da ensaísta Susan Sontag.
O filme, contudo, não existiu per se. Ele nasceu a partir da descoberta de negativos de filmagens abandonadas pelo nova-iorquino Brookner, que em 1983 compôs a cinebiografia “Burroughs: The Movie” como um trabalho para a Universidade de Nova York. Foi seu sobrinho Aaron Brookner, autor em 2016 de um documentário sobre o tio, “Uncle Howard”, quem achou os rolos. Ele chamou o amigo português de Guimarães Rodrigo Areias (ao lado de quem, em 2020, produzira o filme de Ana Rita Rocha “Listen”), para construir uma narrativa a partir dos importantes fragmentos do encontro.
“Nova 78” é um achado que começa de maneira deliciosa, com Burroughs, aos 64 anos, sentado em uma cadeira, calado diante da pergunta que o cineasta lhe faz. Durante o filme, por vezes caracterizado com o chapéu e o terno que compunham a máscara de seu personagem público, ele tem bom humor e lucidez. Por exemplo, incita o público da Nova Convention à luta contra o projeto do republicano John Briggs, conhecido como Proposição 6, que seria votado (e derrotado) naquele ano, e que proibia gays, lésbicas e apoiadores de seus direitos de trabalhar nas escolas públicas da Califórnia. Em filmagem não relacionada à convenção, mas encontrada por Aaron Brookner entre os rolos de negativo, há vários excertos, entre eles a discussão sobre a recusa dos intelectuais ao governo dos aiatolás no Irã, problematizada por Burroughs: “Mas não precisaremos do petróleo deles?” É irresistível quando ele aponta a incongruência no sonho de encontrar, em planetas desconhecidos, o que já é conhecido, como a água…
Os rolos de negativos descobertos por Aaron Brookner renderão outros projetos, conforme acredita Rodrigo Areias. “Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner”, ele diz. “A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica, com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.”
A seguir, a entrevista que fiz por email com os diretores Aaron Brookner e Rodrigo Areias, os diretores de “Nova 78”.
Aaron Brookner, um dos diretores de “Nova ’78”: ele achou os rolos de negativos feitos pelo tio
Gostaria de começar perguntando quando vocês viram pela primeira vez o material que resultaria em “Nova 78”. Quem o apresentou a vocês? O que chamou sua atenção nele? O que os fez pensar que editar esses fragmentos seria uma boa ideia?
AARON BROOKNER: Eu tinha visto apenas breves vislumbres do material em “Burroughs: The Movie”, que Howard Brookner dirigiu e lançou em 1983. Então, quando comecei a procurar trazer de volta o filme de Burroughs (que remasterizamos e lançamos com a Criterion Collection em 2014), encontrei o primeiro lote de rolos negativos de tudo o que Howard havia rodado (1978-1982) para fazer aquele filme. E, obviamente, logo percebemos que havia muitos rolos com artistas. Mais do que ser apresentado a mim, conforme iniciamos o escaneamento, começamos a vislumbrar o evento pela primeira vez e a perceber que Howard o havia filmado como um documentário de show, com diferentes cenários e ângulos, bastidores, planejamento, etc. No outono de 1978, Howard ainda estava na NYU. Suas filmagens se tornariam o retrato de Burroughs, mas na época ele se referia ao material como NovaCon, porque esse era seu foco inicial. E então foi um desafio interessante tentar honrar a tentativa da filmagem original. Para usá-lo como foi pretendido na época, para mostrar a história da Nova Convention.
RODRIGO AREIAS: Vi as imagens deste material quando conheci o Aaron. Ele havia participado da escrita e da produção do filme “Listen”, de Ana Rocha, que eu produzi. Nessa altura, o Aaron me mostrou o filme que tinha feito sobre o seu tio Howard Brookner (“Uncle Howard”), o autor destas imagens. Nesse documentário, já existia a referência à Nova Convention. Claro que eu já conhecia a existência dessa convenção, sempre houve essa referência em torno da cultura beatnik. Mas nunca tinha visto imagens. Quando o Aaron me convidou para participar deste projeto como diretor, vi todas as cenas que haviam sido filmadas da convenção e muito mais horas de arquivo sobre William S. Burroughs, já que o arquivo de Howard Brookner é muito vasto.
Aaron nasceu três anos depois desta convenção em Nova York e Rodrigo, no mesmo ano. Vocês liam escritores como Burroughs, Leary, Orlovsky ou Ginsberg desde muito jovens?
AARON BROOKNER: Bem, sim, eu conhecia Burroughs desde muito jovem, graças ao meu tio. E comecei a lê-lo no ensino médio, junto com Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Os beats faziam parte do currículo de inglês do Ensino Médio em Nova York, assim como J.D. Salinger, e talvez ainda façam, então comecei a descobrir todos os outros.
RODRIGO AREIAS: Bem, eu tenho uma obsessão com a leitura, tenho uma biblioteca em casa e a literatura ocupa um lugar muito importante na minha vida e no meu cinema também. E isso acontece desde muito cedo na minha vida. O meu primeiro longa (“Tebas”, 2008) começa com “O uivo”, de Allen Ginsberg, e é uma intersecção entre o “On the road”, de Kerouac, e “Édipo Rei”, de Sófocles. Debruço-me sobre escritores e obras literárias de forma insistente, pois é o universo em que vivo. Desta forma, chego ao Burroughs através dos outros autores beat, mas também a partir da música, a minha outra carreira que antecede a de cineasta.
Quando começou a aventura de restaurar o filme? Quão difícil foi fazer esta edição funcionar?
AARON BROOKNER: Comecei a procurar o trabalho de Howard há quinze anos e recuperei o primeiro lote de rolos negativos da era Burroughs de Howard em 2013. Alguns deles foram usados para os bônus de DVD do Criterion. Alguns foram usados no meu filme sobre Howard, mas, mesmo depois do filme, ainda estávamos trabalhando para compilar o arquivo. Toda a imagem e o som. Um empreendimento gigantesco.
Minha parceira na Pinball, a produtora Paula Vaccaro, e eu pensamos que finalmente tínhamos terminado em janeiro de 2022. Então, em fevereiro, descobrimos que mais filmes de Howard haviam sido descobertos pelo arquivista da obra do falecido poeta John Giorno [presente no filme]! E muitos desses rolos eram seções que faltavam da Nova Convention. Ao longo de 2022 e 2023, fizemos mais digitalização e sincronização e só então pudemos começar a edição.
É sempre um grande desafio editar um documentário de longa-metragem. E é um desafio específico criar um filme usando apenas filmagens daquele período. Felizmente, as filmagens são tão explosivas. Os atores, tão poderosos. As ideias ressoaram muito. Então, nos apoiamos na força da filmagem inicial. Na força dos personagens e do local, e não nos esquivamos do trabalho duro. Também quero acrescentar que foi necessária uma equipe muito talentosa para fazer a colorização, trabalhar com o som e o design.
Vocês tinham algum roteiro original em mãos? Anotações da equipe? Conseguiram falar com pessoas envolvidas nas filmagens originais para esclarecer alguma dúvida?
AARON BROOKNER: O escritor James Grauerholz [presente no filme] me deu anotações bem vagas, que meio que forneceram um modelo para todo o arquivo. Mas não havia anotações da equipe, e certamente nenhum roteiro ou documento direto a seguir. Pude conversar não só com James, mas também com John Giorno quando ele estava conosco, já que ambos eram os produtores do evento. Então, aprendi muito sobre o encontro com eles, especialmente com James. Jim Jarmusch, que fez o som, Tom DiCillo, que foi o cinegrafista, e Jim Lebovitz também. Conversei com todos. Eles certamente tinham algumas lembranças, mas a única pessoa que realmente saberia dos detalhes das filmagens seria Howard.
RODRIGO AREIAS: Este filme não tem roteiro. A ideia foi partirmos livres para a criação e montagem. Existiram várias versões anteriores onde prevalecia uma narrativa mais pessoal e biográfica sobre William Burroughs. Fomos experimentando contar outras histórias, mas eu fiquei sempre com vontade de mostrar estas imagens que nunca ninguém havia visto e fazer menos um filme biográfico, sempre algo mais visto.
Burroughs com o chapéu que compunha a máscara de seu personagem: um dos muitos fragmentos dos rolos de negativos não-sincronizados, de difícil edição
Vocês informam no início de “Nova 78” que todo o material filmado naquela época — pelo menos, aquele que conseguiram encontrar — acabou utilizado na sua edição final. Por que decidiram usar todas elas?
AARON BROOKNER: Nós nos concentramos em usar as filmagens feitas no outono de 1978 porque a Nova Convention era naquela época, é claro. E também, na linha do tempo, muito do que Howard filmou nas semanas anteriores e posteriores estava relacionado ao evento. Seja Burroughs fazendo uma ligação para convidar “Tim” (Leary), ou elaborando algumas das ideias políticas sobre fundamentalismo e ataques a grupos minoritários que seriam incluídas em suas apresentações.
Foi muito, muito difícil encontrar tudo e conectar esses fragmentos. Imagine que eram rolos soltos de negativos. Não sincronizados. Organização obsoleta. Foi superdifícil. E também cada peça era convincente. As filmagens do mundo de Burroughs duraram quatro anos para o meu tio. No final, nos concentramos em 1978 porque nos deu estrutura e a chance de traduzir para o público a experiência de entrar em um portal do tempo, por 78 minutos, interrompidos de apresentações, ideias, música, comunidade e, com sorte, um lugar para refletir.
RODRIGO AREIAS: O Aaron havia recuperado o material de arquivo do seu tio uma década antes de 2022, quando apareceram mais de 40 latas de película do arquivo de Burroughs que nunca tinham sido vistas. Nisso havia uma parte substancial da Nova Convention que cobria partes do evento de que não se conheciam imagens. Desta forma, o Aaron me convidou para pensarmos um projeto juntos. A minha ideia foi desde logo poder contar a história deste encontro criativo de todo o avant-garde nova-iorquino do final dos anos 1970. Pareceu-me fazer mais jus à ideia original de Howard Brookner. Ideia que ele nunca conseguiu concretizar. Ou seja, isto não é o restauro de um filme. É um filme feito a partir de arquivos existentes. Filme esse que seria impossível fazer à época, pois o financiamento ao documentário era televisivo e um filme desta natureza seria muito difícil de existir então.
Vocês conversaram com os artistas sobreviventes que estiveram no evento de 1978? Com Patti Smith ou Laurie Anderson, por exemplo? Caso tenham conversado, o que lhes contaram sobre a experiência?
RODRIGO AREIAS: Houve um momento em que tanto Patti Smith quanto Laurie Anderson e a poeta Anne Waldman estavam disponíveis para serem filmadas dentro deste documentário, dando uma perspectiva do que foi o evento. Mas acabamos por considerar que esse contexto não seria benéfico para o filme. Seria melhor fazermos um filme apenas com as imagens de arquivo e, desta forma, conseguirmos apresentar uma bolha temporal.
AARON BROOKNER: Foi um momento consistentemente significativo para todos os presentes. Dos artistas ao público. Um evento raro que realmente simbolizou algo maior. A diretora de palco, Rebecca Litman (que na época se chamava Rebecca Christensen), descreveu-o como “o Woodstock do Lower East Side”.
Foi difícil reunir fundos para trabalhar no filme? Por que uma produção anglo-portuguesa e não americana?
RODRIGO AREIAS: Esta produção é anglo-portuguesa pois os produtores são a Pinball London, empresa do Aaron e da sua mulher Paula Vaccaro, sediada em Londres, e portuguesa, pois o financiamento é feito através do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) e da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Tem que ver com a detenção de direitos por uma parte e com o financiamento português por outra.
AARON BROOKNER: É muito difícil arrecadar fundos para restaurar e preservar um único filme, quanto mais um arquivo inteiro em película, mas eu e a produtora Paula Vaccaro trabalhamos neste arquivo há muito tempo. A Pinball London, minha produtora no Reino Unido, já havia trabalhado com a Bando A Parte, de Rodrigo, com grande sucesso na produção de “Listen” (2020), e por isso decidimos trabalhar juntos novamente neste projeto em coprodução. Ficamos muito gratos pelo apoio do ICA, que realmente valorizou a importância cultural do material e a história que queríamos contar.
O co-diretor Rodrigo Areias: série de tevê sobre a vida e obra de Burroughs a caminho
Vocês acham que continuarão procurando materiais para adicionar a este filme nos próximos anos?
AARON BROOKNER: Estou feliz com a experiência imersiva que o “Nova 78” oferece ao público. Também aprendi a manter a mente aberta a todas as novas descobertas.
RODRIGO AREIAS: Não para este filme. Mas sim outras possibilidades. Existem muitas dezenas de horas de arquivos incríveis e inéditos sobre a vida e a obra de William Burroughs no arquivo de Howard Brookner. A ideia será fazer uma série de televisão mais biográfica e com a participação de uma série de entrevistas feitas hoje e outras dos arquivos. Existe também uma parte incrível dos arquivos sobre a relação familiar de William Burroughs com o seu filho William Jr. e com o seu irmão. Coisas absolutamente inéditas e incríveis.
“Nova 78” filme nos mostra, com ironia involuntária, que nenhum dos presentes à convenção imaginaria um futuro tão distópico quanto o atual, especialmente nos Estados Unidos, cujo atual governo parece querer revogar todo o humanismo, a liberdade e o progresso ambiental sobre a Terra. Vocês enxergam este filme como um manifesto pela paz, justiça ou igualdade na América, em Portugal e no mundo?
AARON BROOKNER: Uma pessoa que certamente viu isso com bastante clareza foi Burroughs. Ele entendeu de forma muito ampla os perigos do fundamentalismo em geral. Não tinha vergonha de falar o que sentia ser correto. E, ao mesmo tempo, se manteve muito aberto e sem julgamentos. O que eu acho que este filme mostra é que a arte e as ideias, embora possam ser políticas, operam inerentemente em um nível mais profundo que transcende a nacionalidade e até mesmo a sociedade. É realmente uma questão espiritual. Nesse nível, estamos todos unidos e eu adoro que este evento tenha sido organizado em torno da troca de arte e ideias nesse espírito, que além de ser americano fala comigo como cidadão do mundo.
RODRIGO AREIAS: O posicionamento político de Burroughs é de uma lucidez e uma clarividência muito relevantes hoje. Conseguimos perceber que os problemas de 50 anos atrás ainda são os mesmos. As tentativas autoritárias voltaram um pouco por todo o mundo. Os Estados Unidos estão no pior momento da sua história, estão claramente a viver um fim de ciclo, o fim de um Império. O Brasil viveu um período dantesco com Bolsonaro. E Portugal caminha na mesma direção, como se não conseguíssemos ver o que se passa ao nosso redor. Nesse sentido, este filme tem esse propósito político de trazer à luz do dia ideias e conceitos sobre as liberdades e direitos nos Estados Unidos e no mundo. E se o filme puder ser um manifesto pela paz, justiça e igualdade em todos os lugares, então estamos a fazer alguma coisa certa.
Um homem e seu mistério, em cena de abertura de “Nova 78”
NOVA ’78 (NOVA ’78) Aaron Brookner e Rodrigo Areias 80 min. REINO UNIDO, PORTUGAL. Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português. Na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo:
ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 2: 24/10/25, 22h
INSTITUTO MOREIRA SALLES – PAULISTA: 25/10/25, 17h10
Lágrimas, excertos de filmes, recordações: a estrela de “Vertigo” derrama memórias ao refletir sobre sua carreira no cinema, em documentário presente na 49ª Mostra
A atriz em casa, aos 92 anos, reflexiva ao percorrer álbuns e caixas com memórias
Os olhos claros, grandes e vivos. A boca pequena. Lábios pintados ostensivamente, assim como os cabelos. Rosto de enigma. A face célebre que não existe mais, perdida no espelho de Hollywood.
Kim Novak tem 92 anos e teme morrer. Ela mesma, a protagonista de “Vertigo (Um corpo que cai)”, clássico dirigido por Alfred Hitchcock em 1958, confessa esse medo ao cineasta Alexandre O. Philippe. O diretor do documentário poético “Kim Novak’s Vertigo” (Um corpo que cai, por Kim Novak), presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, filma suas conversas com a atriz, os depoimentos não raro emotivos que ela lhe dá, como quem deseja erguê-la a um panteão de eternidade, a partir da casa da atriz no Oregon.
Para conseguir o efeito do que é eterno, Philippe insiste na fotografia embaçante e na trilha sonora a partir de um piano de prelúdio, o que por vezes está a ponto de desacreditar seu filme. O espectador pode se perguntar por que o diretor terá pesado a mão assim. Talvez Phillipe se visse obrigado a isso para não magoar sua biografada. Por todo o filme, a atriz agradece a maneira positiva com que o diretor a vê artisticamente, quando nem mesmo ela se enxergava assim, isto até encontrá-lo…
É que Kim Novak não quis desde sempre ser atriz. Seu pendor possivelmente fosse pelas artes plásticas e pela fotografia. Fez belas imagens do pai, que, ao contrário de sua mãe, jamais expressava os sentimentos. Até hoje Kim Novak pinta telas, muitas delas perdidas em três incêndios nos penhascos californianos diante do mar, onde a atriz viveu a partir de 1961, e de onde podia avistar o cenário de “Vertigo”. É uma pintora por vocação, a lutar com a fixação em óleo de autorretratos, pássaros, os rostos de seus pais, as ondas do mar, os rasgos do céu. Pinceladas com a mão esquerda que, mostradas no filme, são como voos – ou, por que não dizer, “vertigens” – de representação.
Kim Novak começou a vida profissional como modelo fotográfico, durante os meses de férias escolares. E, mesmo depois de atraída ao cinema, não se via como intérprete. Como diz, não “atuava”, à moda do que se espera de um ator, apenas reagia _ era uma espécie de reactor, o que não deixa de ser uma classificação estranha. As grandes interpretações cinematográficas nascem justamente da capacidade de reação de um rosto. Desde a época silenciosa, o rosto e o corpo disseram tanto ou mais que as palavras.
O célebre tailleur cinza, desenhado por Edith Head, em cena de “Vertigo”: para enxugar as lágrimas
Quando Hitchcock a escalou para “Vertigo”, ela desconhecia o trabalho do diretor. Mas gostou do roteiro, a ressaltar a dualidade em sua personagem, condição que a atriz estendeu psicologicamente a si mesma, principalmente após viver o estrelato em Hollywood. No filme, ela conta que o produtor Harry Cohn controlava sua vida profissional e a obrigava a tantos papeis diferentes que, depois de um tempo, ela parecia não saber quem de fato era. Contudo, ao lado do amigo (algo professor) James Stewart no filme de Hitchcock, a atriz encontrou um caminho para o autoentendimento. E guardou o roteiro de “Vertigo”, que, por milagre, foi salvo do fogo californiano em três ocasiões. Não só o roteiro – um figurino de Edith Head também. No documentário, ela seca as lágrimas no célebre tailleur cinza usado no filme.
Homenageada no festival de cinema de Veneza deste ano, Kim Novak parece fazer tudo apenas quando ditada por um impulso interior. E por isso há excesso de interiores, por assim dizer, no cinedocumentário de Philippe. A ultrarromantização está a um degrau ou dois do kitsch. E Kim interpreta o tempo todo, a voz não raro trêmula, mesmo quando diz apenas reagir às caixas de memórias que incumbiu o diretor de reabrir, de modo a novamente “surpreender-se”. Contudo, se você construiu seu conhecimento a partir do cinema clássico de Hollywood, não deve perder este filme por motivo algum. Grandes emoções, grandes histórias.
O diretor Alexandre O. Philippe
Um corpo que cai, por Kim Novak Alexandre O. Philippe EUA 76 min
Falado em inglês. Legendas eletrônicas em português
12 anos
MULTIPLEX PLAYARTE MARABÁ – SALA 4: 21/10/25, 19h40 RESERVA CULTURAL – SALA 1: 22/10/25, 13h
CINEMATECA SALA PETROBRAS: 23/10/25, 16h30
ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 24/10/25, 13h30
Durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o editor Dennis Doros apresenta sua nova restauração de “Queen Kelly”, clássico inconcluso do cinema silencioso dirigido por Erich von Stroheim e protagonizado por Gloria Swanson
O diretor Erich Von Stroheim retoca a maquiagem de Gloria Swanson durante a filmagem de Queen Kelly, em 1928
Há quarenta anos, o restaurador estadunidense Dennis Doros começou um dos maiores e mais longos empreendimentos pela memória do cinema ocidental. Um vendedor de 27 anos em 1985, ele foi informado pelo chefe da empresa cinematográfica onde trabalhava que um clássico da Hollywood silenciosa, Queen Kelly, jamais havia sido concluído, e que suas partes permaneciam soltas. Sem imaginar o tamanho da tarefa que no fim das contas lhe tomaria décadas, Doros se ofereceu para reconstruí-lo. Jamais atuara antes disso como arquivista ou editor, funções atribuídas aos que restauram filmes antigos. E, durante os 18 meses em que esteve envolvido nesta primeira reconstrução, teve de fazê-la pela madrugada, pois não poderia perder o salário como vendedor da empresa, função cumprida de 9h às 17h nos dias úteis. A versão restaurada foi um sucesso, ganhou o prêmio da crítica da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo então, e volta agora renovada ao evento, com o acréscimo de sequências e stills.
A exibição de uma cópia de Queen Kelly em nitrato de celulose, na Nova York de 1984, havia deslumbrado o jovem nascido na vizinha Nova Jersey. A fotografia de Paul Ivano (que assinava a função junto a Gordon Pollock) tinha um brilho especial, sem contar as interpretações de Gloria Swanson e de sua antagonista, Seena Owen, naquele filme que o vienense Erich Von Stroheim (1885-1957) jamais fora autorizado a concluir.
O príncipe Wofram (Walter Byron) e a devassa rainha Regina (Seena Owen) sob iluminação esfuziante
Queen Kelly é um vulto de assombro na história do cinema. Um projeto escrito por Stroheim dentro de sua fase dita imperial (durante a qual houve outros títulos dirigidos por ele sob a inspiração “aristocrática”, como Marcha nupcial, em 1928, ou A viúva alegre, de 1925), que tanto agradava ao público estadunidense, desprovido de rainhas e reis. Desde o fim do império Austro-Húngaro e da cruel Primeira Guerra, em 1918, principalmente após o colapso da Bolsa de Nova York, em 1929, eram muitos os enredos que almejavam fantasiar a vida nobre ao grande público de Hollywood, fazendo do escapismo palaciano uma farsa até necessária.
Que outro caminho teriam as personagens femininas então, e por toda a década de 1930, senão esperar o acolhimento de um príncipe provedor? Um magnata, ao menos? A luta feminista vinha sem fim e a pobreza disseminada permitia que baronesas ficcionais se encondessem entre os assalariados cinematográficos nos filmes de grandes bilheterias. Era já 1953 quando William Wyler dirigia a bela novata Audrey Hepburn em A princesa e o plebeu, fazendo-a viver, em terra, a modernidade dos cabelos curtos, do cigarro e das motocicletas – o mundo dos modernos que lhe fora negado em seu castelo de origem, situado nas nuvens de algum país europeu ficcional.
Gloria Swanson, de tranças para rejuvenescer, e Wolfram: conto de fadas que adulou o catolicismo irlandês de Joseph Kennedy
No final dos anos 1920, Queen Kelly prometia. Os que liam seu roteiro o julgavam original. E ninguém tinha a coragem de brincar com o talento de Erich von Stroheim. Claro que isto seria possível depois: em 1950, o diretor Billy Wilder, também emigrado aos Estados Unidos, estamparia deliberadamente o declínio do colega de trabalho, assim como de todo o cinema mudo, no clássico Crepúsculo dos Deuses. No filme, Gloria interpretava a estrela abandonada da era silenciosa cujo mordomo vinha a ser justamente Stroheim, que então sobrevivia como ator e, diz o biógrafo Arthur Lennig, julgava este um dos piores papeis a ter vivido no cinema.
A rainha Regina e o gato branco da luxúria: um show de Seena Owen
Ele que pôde quase tudo exigia bastante dos produtores. A fama de perfeccionista de Stroheim impacientava a todos, dentro e fora dos ambientes de filmagem. No final dos anos 1920, o produtor Pat Powers estava farto de seus gastos impossíveis e de seu gênio incontornável, mas não queria liberá-lo para outros estúdios, sabedor dos sucessos que poderia produzir em searas rivais. Neste meio tempo, em 1926, a super estrela de Chicago Gloria Swanson deixara a Paramount de modo a construir uma produtora independente dentro da United Artists. Quem acompanhava seus passos empreendedores era o então amante, o investidor de ascendênia irlandesa Joseph P. Kennedy, que viria a ser o pai do presidente dos Estados Unidos John Kennedy.
Erich von Stroheim durante filmagem no set: Joseph Kennedy jurou colocá-lo “na linha”
A ambição de Joseph Kennedy era grande. Ele queria ser não apenas um produtor de cinema: queria ser o maior. Por isso, pensou em alguém para dirigir Gloria de modo a lhe render o prestígio almejado. Sem ser do ramo, ele via em Stroheim o caminho para a produção de um filme inesquecível. Gloria ponderou que Stroheim tinha a fama de difícil e que, de todo modo, estava preso a Pat Powers. Kennedy disse que arranjaria tudo e, em uma conversa com o produtor, de fato conseguiu a liberação de Stroheim. “Vou colocá-lo na linha”, garantiu a Gloria.
Foi assim que Stroheim, ao deparar com um produtor inexperiente, ofereceu-lhe uma história de encanto. Seu roteiro versava sobre a jovem Patricia Kelly de Gloria, que, interna em um convento (lugar mítico para o catolicismo irlandês), deparava pela estrada com o belo príncipe Wolfram. Interpretado por Walter Byron, ele infelizmente era comprometido com a rainha Regina, em atuação espetacular de Seena Owen. O príncipe se apaixona por Gloria (então com 30 anos, algo inverossímil como a menor de idade de tranças que representa) e vai libertá-la do convento simulando um incêndio.
Há fogo demais no filme para ilustrar o amor. As velas, por exemplo, estão sempre acesas durante o jantar entre os dois apaixonados, em pleno castelo da rainha má. Em momentos que alternam drama e comicidade, Gloria quase cai de costas na lareira, consumida pelas chamas. E ri.
Kelly e Wolfram, envoltos na luz de velas da paixão
O filme teria uma primeira parte em ambiente palaciano e a segunda revelaria o trágico destino da jovem Patricia. Ela se tornaria Queen Kelly, a rainha de um bordel na África, depois de oferecida em casamento a um velho decrépito pela tia, dona do bar Poto-Poto. E seria resgatada anos depois pelo príncipe aventureiro, num improvável final feliz. Com apetite para os grandes romances, Stroheim queria dirigir cinco horas de filme. Gloria lutou por limitar as sequências. A United Artists apavorou-se. De cara, rejeitou o título que Stroheim propôs ao filme, The swamp (O pântano), nome do bordel africano que a personagem de Gloria Swanson administraria. Impôs Queen Kelly (Rainha Kelly) e Stroheim aceitou.
Em 1 de novembro de 1928, quando o trabalho teve início, o cronograma previa oito semanas de filmagem. Em janeiro do ano seguinte, as oito semanas já tinham se transformado em doze. Inicialmente, as filmagens se dariam nos dias úteis, das 8 às 17 horas. Mas logo findavam às 21 horas, nos sábados também. Dos 42 primeiros dias, 20 estenderam o trabalho da equipe até meia-noite.
Gloria começou a se preocupar. Depois de gastar 400 mil dólares, entendeu que seriam necessários mais 400 mil para finalizar o filme – e 800 mil dólares de investimento eram um padrão de época para superproduções. Além disso, ela testemunhava o sucesso crescente do cinema falado, que mudava todo o mercado cinematográfico naqueles anos. Como pedir a Stroheim que inserisse fala em algumas um sequências deste périplo silencioso?
Gloria Swanson com Tully Marshall ao fundo: diante de um destino de morte
Ela e Joseph ainda acreditavam na obra e prosseguiam com seu diretor, mas Gloria se sentia a cada dia mais irritada. Às vezes, enojada. O roteiro pedia, por exemplo, que o personagem de Tully Marshall, o asqueroso Jan Bloehm Vryheid, com quem Kelly se veria casada diante do leito de morte da tia, cuspisse o fumo mascado na mão da noiva. Ela achava isso inaceitável. E se sentia cansada também. A filmagem de uma sequência que duraria uma hora em qualquer outro set, com Stroheim rolava por 24 horas inteiras. No belo dia em que ele gastou cem metros de filme e, insatisfeito, atirou-os ao lixo, ela se impacientou e ligou para Joseph, que o demitiu em 21 de janeiro de 1929, sem mais.
Eis que os problemas ficaram ainda maiores para os produtores. A segunda parte do roteiro, a africana, mal havia começado a ser filmada naquele mês. Um novo diretor, Richard Boleslawsky, apareceu para reconduzir o filme, mas não pôde fazer muito. O roteiro era peculiar. E ele não tinha o toque de quem o concebeu para continuar o longa, àquela altura com uma hora e meia de material filmado. Decidiu-se então por um corte que diminuiria o tempo final para 71 minutos, depois de extraída a parte africana. Queen Kelly foi lançado assim em 1932. Stroheim viu o filme e impacientou-se. Usaram todo o material que ele havia filmado sem se preocupar em editá-lo, e isto, a seu ver, tornava as sequências arrastadas, sem ritmo. Qual o sentido?
Kelly no bar da tia, o Poto-Poto, onde é recebida por Kali (Madame Sul-Te-Wan) e Coughdrops (Rae Daggett)
Depois do trabalho de Dennis Doros, em 1985, o filme ganhou 17 minutos. Agora, são 105 no total, com uma nova trilha sonora, escrita por Eli Denson e executada por estudantes da Indiana University Jacobs School of Music. É uma versão que se anuncia a mais próxima do roteiro de Stroheim.
No filme, as luzes do fogo e do amor transmutam-se para a densidade da água, por onde Kelly se aventura. A continuação do filme teria prometido aumentar esse contraste, pois tudo em Erich von Stroheim é feito de grandes oposições – de iluminação, de atuação, de cenários. A fotografia em preto e branco, quando vista na tela do cinema, é nada menos que esfuziante. Os cenários detalham-se em brilho e os personagens insinuam lascívia. A rainha Regina, a louca, embriaga-se e se faz acompanhar por gatos brancos que cobrem sua nudez. Pequenos cães negros seguem agitados a corte do príncipe. Pena não podermos testemunhar a atuação de Gloria como a rainha Kelly do pântano africano, de quem só temos fotografias. Ela parecia perfeita para representar um novo poder.
Gloria Swanson caracterizada como a Queen Kelly africana: teria sido um novo poder
A seguir, a entrevista que fiz por email com o restaurador Dennis Doros, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Dennis Doros, dono da Milestone, e sua sócia, a esposa Amy Heller: eles renovaram a restauração de Queen Kelly, atribuindo-lhe uma nova trilha sonora
Foto de Valerio Greco
Quando você viu Queen Kelly pela primeira vez? O que atraiu sua atenção para o filme?
Eu trabalhava na Kino International em 1984 quando meu chefe, Don Krim, adquiriu os direitos do espólio de Gloria Swanson, antes mesmo de eu assistir ao filme. Meu palpite é que ele viu a atriz apresentar o longa em Nova York na década de 1960. Quando Don me disse que o filme nunca tinha sido totalmente finalizado e que havia cenas descartadas, perguntei inocentemente se poderia trabalhar nele. (Eu não tinha experiência anterior como arquivista ou editor.) Don concordou e marcou uma exibição da cópia em nitrato de 35mm no Thalia Theatre, na Broadway com a rua 95, em Nova York. Fui imediatamente cativado pelo brilho do filme – a fotografia espetacular de Paul Ivano –, além de estar diante de uma cópia em nitrato de celulose pela primeira vez. Também me apaixonei pela qualidade da interpretação, particularmente pelas atuações de Gloria Swanson [como Patricia Kelly] e Seena Owen [como a rainha Regina, a louca].
De arquivista e editor você passou a produtor, e talvez Queen Kelly seja uma das produções mais malsucedidas de Hollywood. De que maneira ter conhecido essa história contribuiu para sua nova carreira profissional?
Amy Heller (minha esposa e sócia na Milestone Film & Video) e eu produzimos apenas dois filmes (sem contar os bônus de DVD): o documentário Notfilm, de Ross Lipman [de 2015, sobre a colaboração entre o cineasta Buster Keaton e o escritor Samuel Beckett], e The many miracles of household saints, de Martina Savoca-Guay [documentário de 2024 sobre o filme Um anjo de mulher, dirigido por Nancy Savoca em 1993].
Lembro-me que Notfilm teria originalmente 40 minutos, mas acabou com 130 e custou o dobro do que prevíamos. Mas como ao final ficou em “apenas” 60 mil dólares e arrecadamos o valor pela plataforma de financiamento coletivo Kickstarter — além de o filme estar pronto e maravilhoso —, a experiência foi semelhante, mas não tão devastadora quanto a de Gloria ao produzir o filme dirigido por Stroheim.
Quanto tempo levou a primeira restauração de Queen Kelly, nos anos 1980?
Como mencionei, a primeira vez partiu de um pedido completamente impulsivo e excêntrico feito por mim a meu chefe, em 1985. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, nem do compromisso que assumia. Naquela época, eu era o vendedor não-cinematográfico da Kino, então trabalhava em Nova York das 9h às 17h todos os dias, pegava o ônibus de uma hora para casa em Nova Jersey, depois dirigia mais uma hora até o norte de Nova Jersey e continuava o trabalho como restaurador das 21h às 2h da manhã. Fiz isso por cerca de 18 meses e terminei a restauração um dia antes da estreia na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Felizmente, a dona do laboratório de cinema, Janice Allen, segurou minha mão em cada passo do caminho.
O que eu pensava disso tudo? Eu me achava uma fraude total – um amador brincando de edição e restauração de filmes. Tinha 27 anos e presumi que seria pego e demitido assim que o filme estreasse. Mesmo com o sucesso do Queen Kelly restaurado e as críticas entusiasmadas em todos os lugares, levei anos até me considerar um arquivista. Até hoje, me vejo como um ótimo distribuidor que teve a sorte de restaurar alguns filmes maravilhosos com a ajuda de amigos, arquivos e laboratórios.
O que o levou a continuar procurando materiais para o filme nos anos seguintes?
Eu era amigo do advogado do espólio de Swanson, Edmund Rosenkrantz. A amizade surgiu porque ele não tinha a minha memória corporativa, que remontava a década de 1980. Então, em 2015, quando a Kino International cedeu os direitos de Queen Kelly e Sadie Thompson [Sedução do Pecado], minha segunda restauração [realizada em 1987 para este filme de 1928 de Raoul Walsh], ele ligou e nos ofereceu esses direitos.
Eu realmente esperava apenas pegar os negativos que havia produzido nos anos 1980 e, a partir deles, fazer novos masters digitais para Queen Kelly. Mas o laboratório em que eu trabalhara então já havia fechado e, durante os anos que levei para readquirir os negativos, tive dúvidas sobre minha restauração original. Não é que eu odiasse meu trabalho daquela época, mas eu tinha aprendido muito mais sobre a arte do cinema mudo e da restauração. Pensei que desta vez poderia fazer um trabalho melhor. Então, como em toda restauração, comecei pela pesquisa.
Você conheceu Gloria Swanson?
Gloria havia falecido em 1983, antes de eu começar a trabalhar em Nova York, então nunca a conheci. Consultei seu amigo e arquivista, dr. Raymond Daum, e seu advogado, Bob Benjamin, mas eles não me aconselharam sobre a restauração. O espólio de Gloria (suas filhas, Michelle Amon e Gloria Somborn Daly) aprovou a reconstrução, mas eu não tive contato com elas. Mais tarde, quando trabalhei em Beyond the Rocks [Esposa e Mártir, de 1922, estrelado por Swanson e dirigido por Sam Wood], com o Eye Filmmuseum de Amsterdã, mantive correspondência com Michelle. Agora, a neta de Gloria, Brooke Anderson, é uma amiga.
Você conheceu outros integrantes da equipe original de produção ou edição de Queen Kelly? Trocou ideias com eles sobre o seu trabalho?
Tive a sorte de poder contar com o historiador de cinema Richard Koszarski, biógrafo de Erich von Stroheim, como consultor na restauração. Ele conheceu vários integrantes da equipe. Embora todos já tivessem falecido quando comecei o trabalho, Koszarski conseguiu transmitir suas memórias.
Quanto tempo você dedicou a esta nova versão? Quais foram as suas principais dificuldades em fazê-la? A IA foi utilizada de alguma forma neste trabalho?
Iniciei a pesquisa em 2015 e tive muita sorte em contar com a cooperação imediata da Biblioteca Kennedy. Eles digitalizaram milhares de páginas dos arquivos de produção de Joseph Kennedy sobre Queen Kelly. O Centro de Humanidades Harry Ransom, em Austin, Texas, também me forneceu ainda mais digitalizações dos documentos de Gloria Swanson.
Levei vários anos para estudar e desenhar um plano de ação enquanto aguardava o retorno do negativo da restauração de 1985. O maior problema foi a perda da impressão em nitrato de Swanson que eu tinha visto em 1984. Felizmente, o Museu George Eastman, em Rochester, Nova York, revelou que havia guardado secretamente outras impressões em nitrato e sequências descartadas com a participação de Gloria Swanson. Então, em 2022, eu estava pronto para começar.
Foi neste ponto que veio a segunda dificuldade — como sempre, o dinheiro para restaurar o filme precisava ser levantado e ninguém se apresentava para concedê-lo a nós. No início deste ano (2025), Amy e eu anunciamos nossa aposentadoria e percebemos que, se quiséssemos fazer esse trabalho, teríamos de adiantar o dinheiro nós mesmos. Usamos nossas economias para essa restauração.
Quanto à IA, o único envolvimento desse tipo foi o uso dela pelo laboratório, de modo a marcar toda a poeira e os arranhões no material e ajudar a remover os pequenos danos. A remoção da poeira e dos arranhões foi feita por Ian Bostick e Metropolis Post. A IA mostrava a ele os estragos, mas ele tinha de aplicar o software em cada caso, o que envolvia centenas de milhares de decisões. Para cenas que o público acha que foram criadas por IA, elas foram, na verdade, criadas por ampliações ópticas antiquadas — assim chamariam na época — de cenas anteriores do filme.
O que lhe deu mais alegria ao concluir esta segunda versão?
Em primeiro lugar, o projeto dos sonhos de Erich von Stroheim e Gloria Swanson está sendo visto novamente por pessoas do mundo todo. Além de São Paulo, foi exibido no Festival de Cinema de Veneza, no Festival de Cinema de Nova York, no Festival de Cinema de Lumière (França) e, em breve, em Taipei, Atenas e Hong Kong. Em janeiro, será lançado nos cinemas dos Estados Unidos e em todo o mundo, e depois estará disponível em DVD e televisão. A recepção tem sido muito positiva, e sou grato por isso.
Você considera seu trabalho na (possível) reconstrução de Queen Kelly completo?
Como ocorre em todas as minhas restaurações, nunca as considero as versões finais. Haverá tecnologias futuras que aprimorarão o que Amy e eu fizemos e os filmes continuarão a encontrar novos públicos. Com Queen Kelly, houve algumas cenas curtas filmadas no bar Poto-Poto que supostamente se perderam em uma enchente. Talvez elas sejam descobertas um dia, e eu serei o primeiro a aplaudir o trabalho do próximo arquivista na próxima reconstrução.
QUEEN KELLY Dirigido por Erich von Stroheim 105 minutos Estados Unidos Filme silencioso, com cartelas em inglês e português
Três sessões durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 1: 18/10/25, 17h25 CINEMATECA SALA GRANDE OTELO: 19/10/25, 20h25 CINE SEGALL: 30/10/25, 18h30