“Armugan”, um sol de cinzas

O filme fabular e fantástico de Jo Sol, incluído na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é um raro exemplar de apego à aventura cinematográfica

Armugan, hora decisiva

A vida confunde tudo. Faz do fim, o começo. E só a morte parece curá-la.

Eis as verdades que este diretor catalão não teme dizer. Aos 52 anos, Jordi Solé, o Jo Sol, reza por um antigo testamento do cinema. Fazer um filme, e ele vem dirigindo longas-metragens por duas décadas, parece-lhe uma aventura necessária e franca, a exigir sempre um novo risco.

Seu longa Armugan, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, nasceu depois de Sol ter trabalhado com Íñigo Martínez em um filme para a tevê. Ator e bailarino de dança inclusiva que vive entre os palcos alemães e os de Barcelona, onde se formou, Martínez acendeu a imaginação fantástica de Sol. Em 2017, o cineasta ofereceu-lhe o papel de protagonista no filme que imaginara, sobre um homem que ajuda os outros a morrer nos Pirineus.

De início, Martínez hesitou. Era tudo muito estranho. “Eu teria de chegar até aquelas montanhas em minha cadeira de rodas e, por seis semanas de filmagens, deveria simplesmente deixá-la de lado”. Pesava a favor de Sol que Martínez o conhecesse bem e lhe tivesse amizade, confiança. Mas a tranquilidade só veio mesmo depois da leitura do roteiro. O ator aceitaria interpretar aquele ser que encaminhava os moribundos à morte. E o faria de forma espetacular, quase sem proferir as difíceis palavras do dialeto aragonês.

Entregue a Anchel,
que o carrega nas costas

Durante todo o filme, Armugan está agarrado a Anchel, o personagem vivido por Gonzalo Cunill. Anchel, que às vezes evoca, em aparência física, o Antonio das Mortes de Mauricio do Valle, carrega-o nas costas até as casas onde estarão as famílias ansiosamente à espera. Só Armugan sabe qual será a hora decisiva, como um espírito religioso saberia. A certa altura do filme, contudo, Anchel o provoca a decidir pela morte de quem pede por ela. Mas como Armugan faria isso? Embora saiba a hora certa em que todos vão morrer, ele não tira a vida de ninguém.

A atuação de Martínez é concentrada. Seu corpo, extenuante morada, é também seu infortúnio. Sol filma em preto e branco. Está sempre muito próximo dos personagens, até de Armugan com suas ovelhas, mas não exige diálogos extensos dos atores. É extraordinária a qualidade da montagem que faz a história andar. E inacreditável a locação escolhida no topo das montanhas. Grandeza e simplicidade caminham juntos neste filme em que o desafio está implícito: o sol e a morte são duas coisas que não contemplamos sem piscar.

Jo Sol, pela aventura do cinema

ARMUGAN

Direção: Jo Sol

Espanha

2020, p&b, 90 min.

Ficção

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=-F0Ky82Xf5E

Nem Paris, nem Texas: “Pegando a estrada” revive um cinema

O primeiro longa-metragem de Panah Panahi, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, rompe as regras do filme estático contemporâneo ao explorar a jornada de um jovem em formação

Infância, um lugar para a música

Um jovem dirige o carro no qual viajam seu pai, sua mãe, seu irmão mais novo e o cachorro da família. Ele precisa alcançar a fronteira e atravessá-la, para então viver sozinho do outro lado. Mas de que modo irá viver sem ninguém, se é tão imaturo? Principalmente, por que tamanha peripécia familiar para que se vá? Se você assistir a este longa-metragem sem saber que se trata da primeira realização cinematográfica de Panah Panahi, o filho de 37 anos do grande Jafar Panahi, diretor desterrado do cinema pelo governo do Irã em 2010, talvez o entenda parcialmente. De qualquer forma, estará diante de um belo filme com extenso arco emocional, este que admitirá até mesmo a presença do humor.

Eis um longa que mereceria ser incluído em todas as redes de streaming popular. Porque é acessível sendo ainda bom cinema, não um arremedo de telenovela brasileira baseado no jogo infinito entre campo e contracampo, a partir de enfadonhos planos médios e closes. Panah Panahi tem o controle da história e a fotografia de Amin Jafari é sempre clara, seja dia ou seja noite, de modo a fabular com nitidez a psicologia dos personagens. Os atores têm enorme carisma e beleza. Suas máscaras são acionadas tão perfeitamente que nos esquecemos de que interpretam papeis. Eles existem sem contestação dentro da verdade do filme.

A fotografia de uma fabulosa paisagem

Em poucos minutos iniciais nos quais apenas o caçula aceso fala sem parar, conhecemos todas as circunstâncias que orientarão a história. Para isso, o diretor se encarregará de condensar o Oriente em sua iconografia icônica. As montanhas parecerão pintadas, a estrada se alongará, o carro acessará os mundos interiores e exteriores, a religiosidade se introjetará nas canções e observações, o velho venderá pele de carneiro, a mulher espirituosa também será a mãe devota e o pai terá um mau humor divertido, que se desinteressará das convenções. Seremos jogados para o contexto no qual os personagens funcionarão com muita intensidade e leveza, se isto é uma coisa que se possa conceber simultaneamente. Até mesmo sentiremos vontade de conhecer esse recanto do mundo tão isolado pela intolerância, que sempre antes nos causara temor.

É coisa rara nestes dias, mas o diretor pratica a beleza do movimento, marca do cinema de antes, de Douglas Sirk a Wim Wenders. O filme deste Panahi também é musical, um “Paris, Texas” que corre pela imensidão habitada, mas às avessas. A questão do filho, do que fazer com ele, é também central. Mas o filho aqui não está abandonado, antes deseja se descolar dos pais, existir por si próprio, embora não pareça reunir ainda condições para tal. “Você fuma muitos cigarros vendo filmes”, diz-lhe a mãe. “Veja menos filmes”.

“Veja menos filmes”

É muito engenhosa a resolução dramática da figura filial. O personagem do filho, que imaginamos ser uma referência do cineasta a si em relação a sua família, a seu pai, vê-se construído numa convergência entre dois personagens, a criança e o jovem. O filho criança é brilhante, o filho jovem, opaco e comicamente inseguro. Dois meninos representam um. Mas como não se tornar progressivamente inseguro para se lançar no cinema se seu pai é Jafar Panahi? E há o cão. O cão está à morte. O cão é a alma de todos que se despedaça para que a jornada de herói do filho possa enfim começar.

Diante do herói

É um filme radioso, brilhante, também porque não se apega às convenções do que deva ser o cinema de arte contemporâneo. Vencedor do Festival de Londres, ele não paralisa as atuações à toa, não abusa da cinemafotografia sem movimento, que se insere apenas quando o diretor quer destacar uma estranheza, uma profundidade. Este cinema que não teme ser cinema paga sem temor um tributo à arte estadunidense, embora ironize o país (e os amantes do país) por meio de uma deliciosa piada em torno do ciclista Lance Armstrong. É um filme para ver, rever, mergulhar e cantar.

Panah Panahi, um
grande primeiro filme

Pegando a Estrada

(“Hit the Road”, “Jaddeh Khaki”)


Direção: Panah Panahi

cor, 93 min. 

Ficção

Irã

2021 

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=13S–yt8esA

“Pornô amador”, ou o reino de terror do coração

Filme de Radu Jude que parodia a caótica realidade romena, em cartaz na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ganhou o Urso de Ouro em Berlim

A professora, ou a lucidez, sob escrutínio dos medíocres, os pais

Diz-se da paródia que é o canto paralelo a uma obra artística, literária ou fílmica, muitas vezes operado em sua forma humorística. Contudo, além da obra artística, a paródia pode espelhar a realidade quando esta se oferece mais rica em possibilidades de escárnio que a literatura, por exemplo. Pornô Amador, do romeno de 44 anos Radu Jude, vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, é um delicioso canto paralelo do real. Muito se diz que esta realidade aproxima-se da brasileira, e é fato. O caos, a violação, o preconceito e a falsa moral merecem, aqui ou lá, que os artistas a escrachem com humor crítico, disposto a derrubar o indesejado estado de coisas de uma vez.

O diretor Radu Jude

Contudo, as semelhanças com este país param por aí. Porque, no Brasil, convive-se com a submissão gentil à opressão, enquanto na Romênia de Radu Jude os temperamentos estão sempre raivosamente quentes, ainda que igualmente ineficazes, contra o que se vive no cotidiano. O humor dos romenos é o mau humor, é a briga, o ardor.

Quinquilharia do consumo

O argumento do filme, muito simples, não oferece reviravoltas, exceto na terceira e derradeira parte do filme. A professora que faz um vídeo caseiro de sexo com o marido é surpreendida ao constatar a filmagem na boca do povo – a internet. As crianças descobrem o filme e o mostram em casa. Pornô Amador transcorre em um dia da vida desta professora até que a noite chegue e ela precise enfrentar os pais em uma reunião escolar à qual foi especialmente convocada. Será demitida por obscenidade ou conseguirá provar sua óbvia inocência? A reunião, na apoteose do filme, é alegórica das instituições romenas: o militarismo, o racismo contra os ciganos, a alienação social, o amor ao dinheiro, o falso puritanismo, o descrédito à cultura e o analfabetismo funcional são representados por atores cômicos específicos. A professora, no fim das contas, será a única a interpretar a lucidez, ainda que mal-humorada também.

Os pais, alegorias da abominável classe média que tão bem conhecemos

O filme é construído sobre três engenhosas partes. A primeira, que se pode chamar turístico-reflexiva, apresenta a paisagem de Bucareste com o devido respeito às contradições urbanas. A câmera flâneur não se resume a localizar a caminhada da professora pela cidade, antes se distancia dela para acompanhar os letreiros, os grafites, a arquitetura mal ajambrada. Tudo nessa Bucareste é o caos que não se ordena, o mecânico e repetitivo sobre o vivo, a piada em elaboração.

Envelhecendo na cidade

Na segunda parte, as reflexões assumem independência e vêm apresentadas de inúmeras maneiras, submetidas a jogos godardianos entre palavra e imagem. “Melhor parir um bezerro que infartar”, diz a loira que, perseguida por um touro, decide ceder a sua força. As anedotas sobre o terrível passado histórico se seguem. O braço direito paralisado de um paciente alemão só se mexe, esticando-se para a frente, quando um médico grita “Heil, Hitler”. Um personagem se alegra com o naufrágio do Titanic porque “o mar ainda existe”. E há quem sentencie que a beleza da mulher reside em seu marido. Nesta parte, a melhor do filme, a vida humana se vê apresentada como tragédia e comédia. E a pornografia é o reino de terror do coração.

Hipocrisia é isso aí

PORNÔ AMADOR

(“Bad Luck Banging Or Loony Porn”, “Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc”)

Romênia, Luxemburgo, República Tcheca, Croácia

Direção: Radu Jude

2021, cor, 106 min.

Ficção

Trailer https://www.youtube.com/watch?v=8AEgcTSMSOY