No documentário 78/52, de Alexandre O. Phillippe, as soluções técnicas que fizeram de Psicose um clássico

78 tomadas de câmera e 52 cortes baseiam os 45 segundos de assassinato da jovem no chuveiro em Psicose. Uma sequência que teria bastado para inscrever Hitchcock na história do cinema, não dependesse a história do cinema de Hitchcock para ser escrita. Um filme de baixo orçamento em 1960, oitocentos mil dólares gastos com uma equipe habituada ao ritmo de televisão. Por pouco, essa obra de excelência de um diretor, aliás sua homenagem aos diretores, como ele a classificara em entrevista a François Truffaut, seria exibida apenas na tevê. Um filme sobre o poder da técnica, não sobre o roteiro ou sobre personagens. E, apesar disso, uma narrativa inscrita no coração do gosto popular. O mais caro troféu de Hitchcock.
É isto o que Alexandre O. Phillippe, o diretor deste documentário investigativo sobre a sequência do chuveiro, 78/52, presente no festival É Tudo Verdade, parece querer alcançar. As razões técnicas para sua inserção no cânone. O segredo insuperável de uma arquitetura narrativa em preto e branco, quando a cor, então, tornara-se já padrão de alta qualidade em Hollywood. O que em Hitchcock superava a excentricidade, as condições palpáveis a circunscrever sua marca na cinematografia. O que não era apenas mistério nesse diretor, mas sua inteligência acumulada, aquilo que nele seria possível tocar e com ele aprender.

O filme de Philippe possivelmente estará em todos os extras de um DVD comemorativo aos 60 anos do filme, em 2020 – se DVD ainda houver e, principalmente, se houver 2020. O documentarista ouviu muita gente do cinema nesta busca das origens. O diretor Peter Bogdanovich, que esteve presente na sessão de apresentação à imprensa, como jornalista, equipara o terror dos espectadores diante dos golpes no chuveiro àqueles de 1896, quando Méliès mostrou um trem a chegar à estação Vincennes. Bogdanovich lembra-se dos gritos na sala durante o assassinato da jovem interpretada por Janet Leigh – e dele próprio, a caminhar pela rua após a exibição, sugestionado por ela, imaginando o estupro algo inevitável.
Walter Murch, editor de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now e O Poderoso Chefão, ajuda a desenhar a presença antes não bem valorizada do som dos golpes (obtidos de maneira eficiente quando socamos um melão ou um bom pedaço de carne de boi). Fala Marli Renfro, a dublê de corpo de Leigh (a atriz só mostrou o rosto, as mãos e os ombros no filme). Bret Easton Ellis, escritor, Elijah Wood, ator, Danny Elfman, compositor, Guillermo Del Toro, diretor, todos repetem sua incredulidade admirada, sem nos dar muitas pistas. O filho do protagonista Anthony Perkins, Oz, que atua e escreve para o cinema, diz que a sequência nada seria sem a música de Bernard Herrmann. Jamie Lee Curtis, atriz de comédia, informa que apenas recentemente aceitou o papel em um programa de tevê no qual parodia a mãe.

O filme diz mais. Martin Scorsese, por exemplo, baseou o nocaute de seu protagonista em Touro Indomável na sequência de Hitchcock. Anthony Perkins não era o ator a representar a própria mãe na sequência do chuveiro. Hitchcock incluía como cláusula aos exibidores a impossibilidade de aceitar um espectador após o início da projeção, já que não queria um retardatário a esperar inutilmente a estrela Janet Leigh aparecer…
Uma história sem roteiro e sem personagens importantes, gabava-se Hitchcock a Truffaut. Um filme baseado em livro ruim de Robert Bloch, apenas a interessar o cineasta pela descrição da morte súbita da personagem (as sequências no banheiro, mostra Phillippe, já haviam sido desenhadas em filmes anteriores do diretor). Uma roda de discussão sobre o filme, presente em 78/52, comenta o pioneirismo da decisão de Hitchcock, aquele de dar a uma estrela de Hollywood o papel de um personagem que morre nos primeiros minutos. Os comentadores até ironizam o fato de algum outro filme possivelmente ter feito isto antes em um distante país oriental, o que não viria ao caso ressaltar…
Certamente não é um documentário interessado em investigar a história cultural na qual se insere Psicose. Outros filmes comentavam o sumiço da mulher naquele ano. Ou o deslocamento de seus atributos considerados femininos para outros habitualmente inseridos no campo da masculinidade, como a ação… Em O Acossado, de Jean-Luc Godard, por exemplo, a protagonista estabelece sua permanência no mundo ao atirar no namorado. Em L’Avventura, de Michelangelo Antonioni, a mulher do protagonista desaparece numa ilha após alguns minutos iniciais de projeção, sem que ao menos conheçamos seu real destino. Parece bastante claro que os filmes americanos e europeus, desde o final dos anos 1940, investigavam um novo perfil de mulher, e que seu assassínio ficcional apontasse para outras situações culturais de mudança. Se o clássico de Hitchcock se estabeleceu, isto também ocorreu por se tratar de um forte comentador do espírito de uma época, a ecoar outros filmes que raciocinavam sobre o mesmo ponto.
78/52, contudo, não avança sobre terreno tão sensível. Não se atém a análises históricas e críticas. Não se importa em ampliar a visão de um clássico para além de seus avanços ilusionistas, tão perseguidos à época de Psicose. É um filme de professor Pardal para meninos à moda antiga, a excitação no ar após a descoberta do engenho da lâmpada.
Deixa rolar.
Por Rosane Pavam