Através do fluxo

Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o diretor Hong Sang Soo borra os limites entre narrativa, autoderrisão e blague

A mesa, o vinho, a conversa, as intenções escondidas

Se você nunca assistiu a um filme do coreano Hong Sang Soo, talvez se pergunte, após a sessão de seu novo longa, “Através do fluxo”, se foi cinema exatamente o que viu. Sua dúvida talvez não seja solitária. Aos 64 anos, Hong Sang Soo pode concordar com você.

Seus princípios de elaboração da história são seus fins. E quem age assim no cinema? Esboços preparados a partir de improvisos dentro de seus sets, que sempre parecem incorporar um banco diante de uma paisagem da natureza, à qual os personagens dão as costas, ou uma mesa onde os amigos compartilham soju ou vinho (eventualmente uma enguia grelhada, como neste filme), e assim formam situações e personagens.

São filmes, este também, que teimam em copiar o tempo real. Este é o primeiro fluxo. Eles fluem bem, nos divertimos com os diálogos nos quais há autoderrisão. Frequentemente, depois de algum tempo, a câmera decide se movimentar para o lado, como se não tivesse entendido bem a cena, ou faz um zoom abrupto, amador, e nessa brincadeira, nessa gramática que parece errada, mas é uma gramática, de repente o filme acaba. Para quem acompanha seus filmes, os fins abruptos são esperados e sabidos.

Os personagens hesitam como na vida, ensaiando o que realmente querem dizer. Polidos, contudo enganadores, dispostos a esconder um trunfo, os personagens de Hong Sang Soo, interpretados com frequência pelos mesmos atores em diferentes filmes (mas sempre o mesmo filme), conversam, bebem e fumam antes de entregar a que vieram, seus pensamentos e intenções. 

O professor que pegou suas alunas, e Kim Min-hee

O segundo fluxo, no caso deste novo longa, refere-se ao córrego próximo a uma universidade feminina sul-coreana (ah, a Coreia) onde o filme se passa. O professor que preparava uma peça de teatro com suas alunas havia se relacionado amorosamente com três delas em diferentes ocasiões no espaço de um mês, causando estupor e, como decorrência, sua expulsão da instituição.

Em razão dessa falta, a professora e artista têxtil Jeo-nim (interpretada por Kim Min-hee, a esposa do diretor, muito presente em seus filmes) decide chamar o tio, dramaturgo famoso cuja carreira foi enterrada, para encenar uma peça inteira em dez dias com estudantes amadoras. Um importante festival acontecerá e a universidade precisará comparecer com uma apresentação.

O tio é interpretado por Kwon Hae-hyo, que sempre faz um tipo de alterego em seus filmes: veterano bem reputado no campo das artes, ele não se sente seguro sobre seu ofício e frequentemente se envolve amorosamente com as mulheres com quem trabalha.

À beira do córrego, um esboço

O córrego faz sentido. Pode ser entendido como uma metáfora sexual (a corredeira do amor) ou como o fluxo do inconsciente dos personagens, sempre desejoso de ser revelado.

Hong Sang Soo é um blagueur, um tirador de sarro, um artista inspirado nos filmes de Robert Bresson. Mesmo sem entender o que ele pretende, um espectador pode divertir-se ao tentar.

O diretor Hong Sang Soo

Sessões no Cinesystem Frei Caneca 2 (19h30 do dia 26) e n Instituto Moreira Salles (20h15 do dia 30)

“A Câmera de Claire”, um naïf intrigante

“A Câmera de Claire”, disponível gratuitamente online até o dia 31 de outubro, dentro da Mostra Cinema e Reflexão, caminha para desdobrar sentidos em uma mis-en-scène quase anticinematográfica

Isabelle Huppert e Kim Minhee em “A Câmera de Claire”: retratos de finitude

Deve haver, na posada ingenuidade, uma razão a mais para que as obras deste cineasta sul-coreano de 60 anos, vencedor do Urso de Prata no festival de Berlim 2020 por “The Woman Who Ran”, calem fundo seu público. “A Câmera de Claire”, realizado por Hong Sangsoo em 2017, traz a francesa Isabelle Huppert no papel de uma professora vestida de amarelo que tira fotografias em Cannes. A irrealidade de sua figura luminosa se faz constante, como se ela fosse um meme vivo de auto-ajuda a passar pela timeline do facebook ou uma figura de coro grego a alertar os escolhidos sobre seus erros e perigos.

Jung Jin-young e Isabelle Huppert: poética fotográfica

Porém, antes que possamos nos dar conta desta sua qualidade que permeia o inconsciente (as profundas camadas de motivações dos personagens), nós a vemos saborear as férias como qualquer turista. Claire vaga pela cidade francesa onde se dá o célebre festival de cinema porque uma amiga irá se apresentar ali e a convidou. E, como um passatempo, ou como uma maneira de aprisionar o tempo em si, Claire porta uma polaroide que retrata os moradores da cidade antes que se modifiquem – porque a mudança dos olhos, ela vê, é constante de um segundo a outro. Talvez a razão para este desejo de aprisionamento venha de uma perda, somente relatada ao final do filme.

“A Câmera de Claire” parece aludir à “Câmara Clara” do célebre ensaio de Roland Barthes publicado em 1980. Nesse livro, Barthes observa que uma fotografia pode ser objeto de três intenções: fazer, suportar e olhar. O operator é o fotógrafo. O spectator somos todos nós que assimilamos e colecionamos fotos. E o spectrum, o alvo, o referente, é o simulacro, o objeto nascido da captura da luz. A relação da palavra spectrum se dá com o espetáculo tanto quanto com o terror presente em toda fotografia: “o retorno do morto”.

Eis que a partir disto fica “claro”, iluminado, quem sabe nítido, o que Claire faz pelo filme. Ela é o alerta sobre a finitude, a figura irônica da morte que passeia a veraneio. A professora se relaciona a uma teia de dramas individuais, a começar por aquele vivido pela linda Gam-hee (Kim Minhee), funcionária de uma agência de filmes que é despedida diretamente pela patroa, ciumenta de sua suposta relação com um cineasta embriagado. Claire anota, aponta, apreende, amplia e reduz todos os personagens envolvidos nessa história a uma só cena, como uma fotografia faria, eternizando-os em seus dramas supérfluos.

Huppert, Jung Jin-young e Chang Mi-hee: os dramas escondidos

Se a trama surpreende, mais ainda, sua realização. É como se “A Câmera de Claire” inventasse um novo naïf cinematográfico. Os movimentos quase não existem, exceto os de zoom, sem aparente razão. Os personagens nunca se tocam. Estão invariavelmente lado a lado na praia, num café, no restaurante ou na biblioteca, não raro situados diante do público de perfil, até de costas. A fala sugere espontaneidade, um interrompe o outro, de modo a sugerir que os diálogos não foram ensaiados direito. É como se Hong Sangsoo radicalizasse a montagem em tempo real de Bresson ou Rohmer, esticando a ingenuidade de sua mis-en-scène até alcançar uma espécie de anti-cinema.

Pode ser o que você não espera de um filme.

Pode ser que o filme não espere por você.

“A CÂMERA DE CLAIRE”

(Coreia do Sul/França, 2017)

Direçao: Hong Sang-soo

Com Isabelle Huppert

online e gratuito até 31/10

www.mostracinemaereflexao.com.br