Levados pelas marés

Um espetáculo a unir a paisagem humana à música (ou o cinema como ele poderia tão bem ser), no novo filme de Jia Zhang-Ke, presente na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Imagine se Wim Wenders fizesse ainda hoje o cinema que realizou até “Paris, Texas”. Aquele cinema. O cinema. E imagine o diretor alemão, na China, a contar a história recente do país a partir dos rostos exuberantes dos homens comuns, numa revivescência de duas décadas, com riqueza musical e, principalmente, com o ritmo narrativo fundado nessas melodias. 

Zhao Tao acaricia seu amigo, o robô

Se você pode imaginar coisa semelhante – a música não só como trilha sonora, mas como um chamado -, estará muito próximo de compreender o que o chinês Jia Zhang-Ke faz em seu “Levados pelas marés” (2024). Nossos ouvidos se conectam, nosso coração está a pulso desde que a banda chinesa dos anos 2000 Brain Failure toca a canção de abertura, “Underground”. A letra cita o verso de um poema famoso da Dinastia Tang: “Nem mesmo um incêndio florestal pode queimar todas as ervas daninhas, elas crescerão de volta na brisa da primavera”. O poema enfatiza, segundo Jia, “a resiliência da vida”.

Este filme quase sem diálogos e com alguns letreiros (uma feliz recuperação do cinema mudo) usa mais o olhar dos atores do que suas palavras para acompanhar a passagem do tempo.

É um filme, mas, principalmente, um espetáculo fundado na dramatização que Jia realizou de forma solta, por duas décadas, em Pequim e em Datong, uma localidade chinesa a viver das minas de carvão. Seus movimentos de câmera mais impressionantes são travellings que registram lentamente a paisagem humana na cidade. Eis a face da verdade, do deslumbre de viver, que o filme demonstra ora com pungência, ora com humor.

Todas as emoções em um rosto que não fala

Sua atriz-chave, Zhao Tao, volta a representar a personagem Qiaoqiao, introduzida por Jia no filme “Prazeres desconhecidos” (2002). Ela jamais fala (mas, neste filme, canta uma canção) e ama relacionar-se positivamente com robôs, entidades que tomam conta da vida chinesa ao oferecer serviços surpreendentes, como ler as emoções em um rosto e limpar o chão. Qiaoqiao busca seu amor desaparecido, Bin (interpretado por Li Zhubin), e por isso a acompanhamos pelos lugares alcançados por  trem. A mudança de modelos de trens a circular pelos trilhos sugere a mudança dos tempos. Principalmente, é pelos olhos de Qiaoqiao que vemos tudo se transformar, como se ela presenciasse o fluxo da vida com o fone de ouvido ligado no streaming musical, lá onde o rock faz poderosas aparições.

É cinema, é a resistência, é ver para crer.

O diretor Jia Zhang-Ke

Na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Sessões no Cinesystem Frei Caneca 1 (19h40 do dia 25), Sato Cinema (19h do dia 27), Reserva Cultural 1 (14h30 do dia 28) e Cinesystem Frei Caneca 3 (22h do dia 29).