Sobreviver como um não-temer

No documentário-western Permanecer Vivo – Um Método, cinco artistas capitaneados por Iggy Pop e Michel Houellebecq ensinam a abraçar as chamas da criação

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Michel Houellebecq e Iggy Pop em Permanecer Vivo – Um Método, filme presente na programação do festival É Tudo Verdade, entre 19 e 30 de abril: a arte até o fim

O inferno. Nós o vivemos em terra. Ele nos distingue. Eis por que precisamos olhá-lo de frente e incendiá-lo ainda mais. Arder por ele. Acariciá-lo de modo a ultrapassar as chamas.

Alguns documentários, em tempo recente, investigam esses infernais mergulhos humanos, agravados ou engrandecidos pela condição do artista. Nesses longas, o músico, o poeta, o pintor e o escritor surgem como heróis aqualoucos, piromaníacos da existência. Sua razão de ser remete tanto a uma corrente exacerbada nos séculos XVIII e XIX, o romantismo, quanto a um vaidoso racionalismo precedente. Sobreviver é expressar-se. Mas sobreviver, igualmente, funciona como um não-temer, fundado no ascetismo quase sacrificial.  

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A perda de Laurie Anderson em Coração de Cachorro, de 2015

Há dois anos, a diretora Laurie Anderson anunciava que deveríamos abraçar os infernos, ainda que gélidos, e fazê-los substância de nossa arte, especialmente se desejássemos exercer uma espécie de purificação pessoal. Coração de Cachorro mostrava a diretora a enfrentar a perda de sua cachorra (artista ela também), de seu adorado marido, Lou Reed, e, antes, de sua inquebrantável mãe. Ou a artista harmonizava internamente essa ausência ou se tornava insuficientemente capaz de absorver o sentido de viver (principalmente, o de perecer).

Seu documentário, contudo, parecia principalmente mergulhar na figura materna. No difícil, frio exercício de Anderson de perdoar aquela mulher (sua origem) e sua própria condição de mãe da cachorra, usando, para isso, lições zen tibetanas. Um filme grande, feito por quem dominava a narrativa e a força das imagens. O artista deveria saber extravasar – e também conter.

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O diretor Erik Lieshout: um certo bom humor em difícil era instagramática

Erik Lieshout não tem a dimensão de Anderson. Ao contrário dela, o diretor adota certo esquematismo narrativo e usa os filtros esmaecidos desta era instagramática para ilustrar muitas situações difíceis sob o enfoque emocional. É linearmente descritivo e bem-humorado, muito menos musical que Anderson. Seu filme de 2016, Permanecer Vivo – Um Método (que o 22º Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade, entre 19 e 30 de abril, no Rio de Janeiro e em São Paulo, exibe), toca as feridas em um tom de metódica, divertida burla. O músico Iggy Pop e o escritor Michel Houllebecq encontram-se juntos para comentar a arte a ser enfrentada por quem está à margem – a deles própria, mas também a de outros criadores anônimos com problemas mentais – e o fazem de maneira determinada, como a descrevemos antes: eles concluem que ser artista é olhar o inferno de frente e ter a morte como destino.

Iggy Pop é o mestre de cerimônias desta viagem, que no entanto começara em Houllebecq, em seu ensaio Rester Vivant (Permanecer vivo), e naquela transposição de A Possibilidade de uma Ilha, dirigida por Houellebecq em 2008. Admirador do escritor, Pop musicara esta versão cinematográfica do texto, e uma relação entre os dois, mútuos e compreensivos observadores, construiu-se a partir de então. Neste documentário, dirigido por Lieshout, Houllebecq vive um personagem fictício, o artista Vincent, um “decorador conservador” que, isolado em sua casa na França, aquela de seus pais, procura uma síntese imagética da arte.  

O documentário ouve também figuras reais – uma poeta, um escritor, um pintor – cujo talento se encontra mergulhado nas chamas da existência social. Um deles (aparentemente o grande artista entre os três) encontra-se preso em um hospício, que, contudo, parece salvá-lo.

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O músico Iggy Pop, a enfrentar desfiladeiros e cumes, torto como John Wayne

Iggy Pop apresenta a si próprio no filme como uma farsa, um idiota, alguém que usara uma faca para marcar o corpo em diversas ocasiões anteriores, quase incapaz de sobreviver, enquanto usufruía a aprovação midiática. Era célebre, mas não por isso menos incompleto ou ardente. Houllebecq lhe ensinara ser preciso cutucar a ferida até o fim, a realizar-se no artista que ele intuíra ser.

Aprecie Iggy Pop como um novo John Wayne. Ele anda torto e sua silhueta enfrenta os desfiladeiros e os cumes. Neste “documentário-western”, seus companheiros, quatro cavaleiros e um destino, alcançarão as fronteiras prestes a esmagá-los. Permanecer Vivo – Um Método tem apenas uma solidão acompanhada a nos propor.
Por Rosane Pavam

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