Da Venezuela ao passado onde vivo

Morar no centro tem sido minha alegria neste ano que já se vai.

Aliás, ele se vai, mas não desejemos que parta tão já.

Vamos curtir o que resta deste ano, porque como me disse um músico ontem, o Marcos Mauricio, tudo vai piorar no ano que vem.

Então vamos curtir o sol e as árvores…

E antes que você me pergunte: há miséria onde vivo, sim.

Mas a cidade inteira tem sua porção.

São Paulo se enche dela.

Me interessa a luz do centro.

Gosto de me centrar.

Às vezes me parece que, neste lugar onde reside o caos calmo dos meus afetos, volto à infância.

Um comportamento… um jeito de falar que é só daqui e que é pra mim…

E os prédios da Light e do Mappin que ainda estão lá, além de todos os caminhos que levam à Sé, à Liberdade, à Mário de Andrade!

A linda biblioteca para onde, criança, eu ia ler e estudar, já que não tínhamos muitos livros em casa, exceto os maravilhosos de arte de meu pai e duas enciclopédias: a portuguesa Verbo (seis volumes bem fininhos) e a Tecnirama, em fascículos.

Creio que fosse pouca coisa pra minha curiosidade em relação ao mundo, que nessa época me atordoava em demasia.

Sempre morei no meu passado com muito carinho.

Mentalmente.

E agora fisicamente também.

Pois sexta-feira ia naquele caminho bem andado quando o garoto de 15 anos da foto se aproximou de mim em cima de sua bike.

Me perguntou se eu sabia onde vendia brinquedo.

Fiquei meio confusa. Não achei que nada ruim partisse dele. Mas falava portunhol, eu não compreendia bem.

Queria comprar brinquedo, mas não de criança.

Não brinquedo de brincar.

Bonecos, assim.

Disse a ele que havia lojas especializadas nesse setor em duas galerias.

Ele não as conhecia.

Perguntei se queria que eu o levasse até lá, já que estavam próximas de meu destino.

Quis.

Então lhe perguntei de que tipo de bonecos gostava.

“Não são pra mim.”

“São pra sua namorada?”

“Ainda não. Não é minha namorada.” Riu. É só sorrisos.

“Ah, então é pra conquistar…

“Não sei se vou conseguir. Mas já fiz o desenho dela olhando a foto do WhatsApp.”

“Você é desenhista?”

“Sou.”

“Que bacana. Mas, olha, os brinquedos às vezes não são baratos.”

“Meus pais compram pra mim se eu for bem na escola.”

“Em que série você está?”

“Primeira do Ensino Médio.”

“E passou de ano?”

“Ainda não sei” (um riso grande). “Vou ver uma nota na segunda.”

“E de onde você é?”

“Como assim?”

“Onde nasceu?”

“Venezuela.”

“Que legal! Conheço um venezuelano que faz um documentário sobre os compatriotas no Brasil. Foi até Rio Branco.”

“Eu também.”

“Você veio de lá?”

“Não, eu moro na Rio Branco.”

“A avenida! Entendi. Você veio pro Brasil com sua família?”

“Primeiro vieram meu pai e meu tio. Depois vim com minha mãe.”

“Você gosta daqui ou pensa em voltar?”

“Penso em voltar.”

“Lá está ruim, né?”

“É aquele presidente.”

“Sim, imagino. E o que vocês achavam do Chavez?”

“Bom. Muito bom. Com ele não tinha ninguém morando na rua, hoje tem. Ninguém passava fome, hoje passa. Ele protegeu as áreas dos índios. Não quis saber dos Estados Unidos. E ele falava três línguas, sabe?”

“Não sabia. Quais? Espanhol…”

Mais um riso longo.

“Lá não falamos espanhol. É castelhano.”

“Claro!” (rio de volta). “E que outras línguas?”

“Guarau.”

“Língua indígena?”

“Sim.”

“E a terceira?”

“Não sei.”

“Que bom que Chavez era bom. Aqui falam mal dele, é incrível.”

“Também falam mal de Lula, não? As pessoas são muito ignorantes.”

“Pode ter certeza! Olha, chegamos na galeria.”

“Eu não posso entrar com a bicicleta, só vim ver onde comprar. Depois volto. Obrigado.”

“Como você se chama?”

“Elker.”

“Legal te conhecer, Elker. Sou Rosane. Posso te fotografar?”

Rastros de uma identidade emotiva

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O índio Funi-ô Thini-á (à dir.) atravessa o Xingu ao lado dos Caiapós em busca de narrar a vida de João Kramura

A Terceira Margem refaz a história do homem branco que lutou para viver entre os índios da tribo Caiapó

 

Um dos mais belos filmes do festival É Tudo Verdade, A Terceira Margem narra a história de João Kramura, que aos dez anos, a pedido da família, fora colher palha no terreno do outro lado do rio e terminara sequestrado pelos índios Caiapó. Sua captura equivalera a um troféu ou a uma responsabilidade. Kramura se fizera índio porque a tribo perseverara em sua educação, à moda do que ocorrera ao personagem de Natalie Wood em um filme hollywoodiano feito alguns anos depois, Rastros de Ódio, de 1956.

 

João Kramura aprendeu a língua Caiapó e esqueceu aquela de origem. Brincou de matar brancos ao lado dos irmãos índios. Cantou as cantigas da tribo e apagou de sua memória aquelas ouvidas no rádio. Oito anos acomodado a sua nova família, tornou-se um selvagem nas vestimentas, nos modos, mesmo nos lábios. Até que durante sua Marcha para o Oeste, em 1953, os irmãos Villas-Bôas deram com ele e entenderam como seu dever reaproximá-lo dos brancos.

 

O jovem foi levado a visitar a família de origem sem saber que, por artimanha dos indigenistas, seria devolvido a ela. Tinha 18 anos e não poderia ser reeducado, ao contrário do que supunham seus novos captores. Amansados, os índios não fizeram guerra por isso. Apenas, ao saber que não mais viveriam ao lado de João, criaram um ritual. Anualmente, como uma missão, atravessavam o Xingu, 250 quilômetros a pé, para visitá-lo.

 

João terminou a vida entre os índios quando contava 70 anos, depois de uma década gasta na tentativa de readaptar-se a sua origem branca. Tentativa dos outros, uma vez que ele jamais a entendera sua. O coração não habitava a vila dos brancos, os pensamentos estavam teimosamente longe. Ele sentia falta da aventura da floresta. Da caça, do rio, das suas margens.

 

Diretor
Fabian Remy, o diretor de A Terceira Margem

Contudo, como quer o diretor Fabian Remy neste documentário, as suas eram margens terceiras, solitárias, a reviver o conto de João Guimarães Rosa ou a cabeça de outro índio, Funi-ô Thini-á. Igualmente deslocado de sua vida na tribo, Thini-á guia o diretor, é ele quem faz as entrevistas, quem se embrenha diante da câmera até chegar às evidências do personagem para o espectador. O túmulo onde está enterrado seu corpo, por exemplo, junto a seus pertences. Sua fotografia, a única, uma 3×4 tirada quando ele estava doente e por certo indesejada.

 

Um filme de poucos recursos, mas bem narrado, emotivo. E precioso talvez porque alguma coisa confusa nele remeta a todos nós. Aos deslocamentos que nos vitimizam. À identidade que tão penosamente lutamos para alcançar, jamais certos de tê-la de fato capturado um dia. Às saudades daquilo que fomos e que o tempo destruirá.

Por Rosane Pavam

Um macabro filme B

Cidade de Fantasmas, de Matthew Heineman, traz o pulso da guerra ao narrar a ação de um grupo de jornalistas contra o Estado Islâmico em Raqqa, na Síria

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Jornalista com celular contra o poderio cinematográfico do ISIS, em Cidade de Fantasmas

Ele sangra pela boca quando se irrita. E ele se irrita muitas vezes, quase sempre quando assiste ao Estado Islâmico matar seu pai. O ISIS fez dessa morte um espetáculo filmado por diversos ângulos, todos muito próximos, de modo a exemplificar no homem de família um anjo infiel. De perfil, com iluminação escura, esse pai veste macacão vermelho. De frente, o fundo infinito, fala calmamente diante de seu inquisidor. Atado a um poste, lamenta que o filho tenha seguido os caminhos contrários aos ditados pela orientação revolucionária. O pai em oração, o rosto descoberto, sofre o golpe final.

Um macabro filme B, snuff movie roteirizado como um gibi ruim. Ensina-nos o documentário Cidade de Fantasmas, em exibição no festival É Tudo Verdade, aquilo que por longo tempo deixamos de perceber: sendo o ISIS um grupo de inspiração fascista, usa a estética do cinema para cooptar militantes. No documentário de Matthew Heineman, em que tal produção é exibida, o grupo também se mostra como uma onda violenta de sangue a perseguir a família daquele filho. A organização ainda não chegou até ele, mas provavelmente o alcançará. E, por conta disso, o militante esperará viver apenas mais um ano ou dois.

De cidade em cidade, pela Turquia fronteiriça ou por uma Alemanha de impensáveis liberdades (lá onde nem mesmo a neve parece ser igual às outras), esse filho, na companhia de amigos, divulgará tudo aquilo que sofrem os seus. O celular é a arma mais potente de Aziz, Hamoud e Mohamad. Até o momento, ela vence a guerrilha, ao possibilitar os posts informativos sobre as batalhas cotidianas sírias pelo facebook e pelo twitter. O filho quer seu país liberto do ISIS. E ele é quase a única força a enfrentá-lo.

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A comunicação de massas como princípio para vender o terror

Cidade de Fantasmas traz para o convívio do espectador a experiência de combater permanentemente um estado de supra-exceção. Heineman não esteve em Raqqa, onde o ISIS fincou bandeira em 2014 e de lá tirou as escolas, os hospitais e as parabólicas. As imagens com que ele lida são de dois tipos. Aquelas recolhidas na cidade, de seus celulares, por ativistas do grupo RBSS – Raqqa is Being Slaughtered Silently (Raqqa está sendo assassinada silenciosamente), e suas próprias, realizadas enquanto ele caminha ao lado dessa ONG de jornalistas por cada esconderijo, de modo a transmitir em tempo real as atrocidades de que são vítimas os sírios.

Os entrevistados de Heineman neste documentário não vivem mais em Raqqa, mas lá mantêm uma rede de ativistas a praticar o jornalismo in extremis. Os exilados perderam tudo, a começar por sua condição financeira de classe média. Depois da primavera árabe, eles se empenharam em derrubar do poder uma família de tiranos, mas viram a cidade natal tomada pela surpreendente associação de terroristas. Contudo, não se curvaram a tudo aquilo de que foram vítimas. E não desejam um país onde as crianças são usadas como “lenha na fogueira”, recrutadas por filmes de propaganda como aquele da execução do pai do ativista, para servir como bombas suicidas ou executores sumários. Eles querem libertar o lugar onde nasceram, ou nada terá valido.

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O diretor Heineman: ao lado do combatente para registrar o combate, como Wyler ensinou

De cidade em cidade, a cabeça a prêmio, os integrantes da RBSS centralizam as transmissões enviadas desde Raqqa e as postam no facebook e no twitter. Mas a cada dia é mais difícil enviar qualquer material a partir da cidade. O mínimo período de tempo para publicar um pequeno filme pode ser suficiente para que as vans do ISIS detectem o sinal do emissor. O último recurso do Estado Islâmico para impedir as transmissões do RBSS via satélite foi quebrar as antenas parabólicas dos moradores.
As leis do bom documentário estão presentes em Cidade de Fantasmas, especialmente aquela de William Wyler, conforme descrita na série Five Came Back, disponível no canal Netflix: é preciso estar ao lado do combatente para entender o combate. Heineman está com ele todo o tempo, a ponto de exibir seu corpo que treme. O filme não nos mostra a geopolítica que explica o ISIS, nem mesmo a responsabilidade de países como a Rússia e os Estados Unidos na manutenção do conflito. Mas aceitamos o que ele nos dá. A sociedade do espetáculo. O pulso da guerra. O terror, pulverizado por três heróis.

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Aziz, Hamoud e Mohamad, jornalistas-ativistas do grupo Raqqa is Being Slaughtered Silently

 

Por Rosane Pavam

O vento suave sobre as poças de sangue.

A diretora Sandra Werneck desenha sua delicadeza em Mexeu com uma, mexeu com todas, documentário a ser apresentado no festival É Tudo Verdade.

 

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Maria da Penha durante depoimento a Sandra Werneck em Mexeu com uma, mexeu com todas

 

A marca de Sandra Werneck é aquela da delicadeza. Dirigir para não se perder. Um cinema com ritmo suave e passagens nítidas. Os capítulos que se fecham e se abrem sem nunca deixar de apontar para um fio de esperança em relação a seus inabaláveis personagens.

 

Mexeu com uma, mexeu com todas é o documentário de sua autoria em competição na 22ª edição do festival É Tudo Verdade, entre 20 e 30 de abril em São Paulo e no Rio (com itinerâncias por Porto Alegre e Brasília em maio). Ali falam as mulheres abusadas por homens, entre as desconhecidas do público e as célebres Luiza Brunet, Joanna Maranhão, Clara Averbuck e Maria da Penha.

 

Sua fala é progressiva. Em casos como o da nadadora Joanna Maranhão, que sofreu o primeiro assédio aos 9 anos, por parte de seu treinador, a contundência é absoluta, enquanto a vemos em fotos de infância, da época em que competia. Um tremor de voz se dá em algum momento, quando ela situa a impossibilidade da mãe de perceber a violência de que fora vítima, e seu enfrentamento para a constante ideia de suicídio. A modelo Brunet, surrada pelo último marido, não esconde a incompreensão para esta atitude.

 

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A escritora Clara Averbuck, uma face da delicada fortaleza

A escritora Clara Averbuck quer manter a fortaleza quando narra em detalhes o estupro coletivo de que foi vítima. Acaricia seu gato enquanto descreve a dificuldade ainda a pesar sobre a mulher violentada no momento em que denuncia o crime. Não sabemos como a professora Maria da Penha visualiza a ação do marido colombiano que resultou em sua paralisia. Neste filme, ela é uma entidade intelectual e jamais descreve a violência física de que foi vítima. Entre todas as entrevistadas, Maria da Penha detém a razão em seu lugar e faz avançar a ação. Apenas aponta os sinais que a fizeram desconfiar inicialmente daquele homem como um potencial agressor para logo enumerar, diante da interlocutora Brunet, as fragilidades que ainda se abatem sobre a lei a levar seu nome, feita para proteger a mulher agredida.

 

As fortalezas prosseguem com as desconhecidas chamadas a falar, intercaladas por cenas documentais de recentes passeatas de mulheres. Uma de suas depoentes se viu estuprada pelo estranho que deixou entrar em casa, e esta razão machista, somada a outras, resultou que sua queixa fosse de todo desconsiderada pela polícia, ou nem mesmo realizada à época do crime. Outra mulher descreve com progressiva emoção o assédio sexual de que se viu vítima por anos pelo marido, que mostrava ternura em relação à família apenas quando bebia. (“Melhor quando ele bebe, mãe”, diziam suas filhas.) E uma terceira vítima teve de ver a irmã morta em seu lugar, enquanto o ex-marido jogava o carro sobre toda a família.

 

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Sandra Werneck, a direção como um lugar de poder

 

Werneck, educadora, não quer deixar seus personagens à deriva em dor e sofrimento. Mexeu com uma, mexeu com todas. A cineasta se ocupa incessantemente de lhes devolver um lugar de poder. Interessa-lhe, acima de tudo, reafirmar a maneira que as vítimas encontraram para se reerguer após a violência intensa, justificada por uma cultura do estupro a fincar raízes na sociedade, na cultura e nas instituições brasileiras.

Durante seus depoimentos fortes, jamais dramatizados por animações ou reencenações (documentos de palavra), a naturalidade das falas se impõe. Apenas a recuperação da vítima é dramatizada por ela própria. Brunet se embeleza, sorridente, diante do espelho. Uma das vítimas não-célebres participa de uma aula de dança do ventre. A cabeleireira continua a pentear cabelos. A vítima do marido está diante dos seus objetos e de suas leituras da bíblia.

Sandra Werneck faz da delicadeza uma fortaleza.

Como se o vento soprasse devagar sobre as poças de sangue.

 

 

Por Rosane Pavam

Sobreviver como um não-temer

No documentário-western Permanecer Vivo – Um Método, cinco artistas capitaneados por Iggy Pop e Michel Houellebecq ensinam a abraçar as chamas da criação

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Michel Houellebecq e Iggy Pop em Permanecer Vivo – Um Método, filme presente na programação do festival É Tudo Verdade, entre 19 e 30 de abril: a arte até o fim

O inferno. Nós o vivemos em terra. Ele nos distingue. Eis por que precisamos olhá-lo de frente e incendiá-lo ainda mais. Arder por ele. Acariciá-lo de modo a ultrapassar as chamas.

Alguns documentários, em tempo recente, investigam esses infernais mergulhos humanos, agravados ou engrandecidos pela condição do artista. Nesses longas, o músico, o poeta, o pintor e o escritor surgem como heróis aqualoucos, piromaníacos da existência. Sua razão de ser remete tanto a uma corrente exacerbada nos séculos XVIII e XIX, o romantismo, quanto a um vaidoso racionalismo precedente. Sobreviver é expressar-se. Mas sobreviver, igualmente, funciona como um não-temer, fundado no ascetismo quase sacrificial.  

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A perda de Laurie Anderson em Coração de Cachorro, de 2015

Há dois anos, a diretora Laurie Anderson anunciava que deveríamos abraçar os infernos, ainda que gélidos, e fazê-los substância de nossa arte, especialmente se desejássemos exercer uma espécie de purificação pessoal. Coração de Cachorro mostrava a diretora a enfrentar a perda de sua cachorra (artista ela também), de seu adorado marido, Lou Reed, e, antes, de sua inquebrantável mãe. Ou a artista harmonizava internamente essa ausência ou se tornava insuficientemente capaz de absorver o sentido de viver (principalmente, o de perecer).

Seu documentário, contudo, parecia principalmente mergulhar na figura materna. No difícil, frio exercício de Anderson de perdoar aquela mulher (sua origem) e sua própria condição de mãe da cachorra, usando, para isso, lições zen tibetanas. Um filme grande, feito por quem dominava a narrativa e a força das imagens. O artista deveria saber extravasar – e também conter.

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O diretor Erik Lieshout: um certo bom humor em difícil era instagramática

Erik Lieshout não tem a dimensão de Anderson. Ao contrário dela, o diretor adota certo esquematismo narrativo e usa os filtros esmaecidos desta era instagramática para ilustrar muitas situações difíceis sob o enfoque emocional. É linearmente descritivo e bem-humorado, muito menos musical que Anderson. Seu filme de 2016, Permanecer Vivo – Um Método (que o 22º Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade, entre 19 e 30 de abril, no Rio de Janeiro e em São Paulo, exibe), toca as feridas em um tom de metódica, divertida burla. O músico Iggy Pop e o escritor Michel Houllebecq encontram-se juntos para comentar a arte a ser enfrentada por quem está à margem – a deles própria, mas também a de outros criadores anônimos com problemas mentais – e o fazem de maneira determinada, como a descrevemos antes: eles concluem que ser artista é olhar o inferno de frente e ter a morte como destino.

Iggy Pop é o mestre de cerimônias desta viagem, que no entanto começara em Houllebecq, em seu ensaio Rester Vivant (Permanecer vivo), e naquela transposição de A Possibilidade de uma Ilha, dirigida por Houellebecq em 2008. Admirador do escritor, Pop musicara esta versão cinematográfica do texto, e uma relação entre os dois, mútuos e compreensivos observadores, construiu-se a partir de então. Neste documentário, dirigido por Lieshout, Houllebecq vive um personagem fictício, o artista Vincent, um “decorador conservador” que, isolado em sua casa na França, aquela de seus pais, procura uma síntese imagética da arte.  

O documentário ouve também figuras reais – uma poeta, um escritor, um pintor – cujo talento se encontra mergulhado nas chamas da existência social. Um deles (aparentemente o grande artista entre os três) encontra-se preso em um hospício, que, contudo, parece salvá-lo.

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O músico Iggy Pop, a enfrentar desfiladeiros e cumes, torto como John Wayne

Iggy Pop apresenta a si próprio no filme como uma farsa, um idiota, alguém que usara uma faca para marcar o corpo em diversas ocasiões anteriores, quase incapaz de sobreviver, enquanto usufruía a aprovação midiática. Era célebre, mas não por isso menos incompleto ou ardente. Houllebecq lhe ensinara ser preciso cutucar a ferida até o fim, a realizar-se no artista que ele intuíra ser.

Aprecie Iggy Pop como um novo John Wayne. Ele anda torto e sua silhueta enfrenta os desfiladeiros e os cumes. Neste “documentário-western”, seus companheiros, quatro cavaleiros e um destino, alcançarão as fronteiras prestes a esmagá-los. Permanecer Vivo – Um Método tem apenas uma solidão acompanhada a nos propor.
Por Rosane Pavam