Delicados insurrectos

Não acho o Almodóvar o melhor diretor do mundo, mas gosto de muita coisa que ele fez e faz.

Tenho curiosidade de um dia vê-lo encenar num palco.

Acho que mandaria muito bem com os atores, os cenários, a tradição dialogada do rádio…

E ele está sempre à vontade com a cor para empreender um propósito subjetivo.

É bem mais teatral do que cinematográfico porque depende da palavra proferida pelo ator, embora saiba que, ao transmitir a essência de suas situações, ela não aparecerá…

E às vezes ele cala seus personagens, que têm de falar por outros meios!

Ele os obriga a dizer as coisas numa segunda camada, pelo corpo, como este Banderas que deve ter saído diretamente do set para um massoterapeuta…

Sua luta ambígua entre falar e calar!

É tudo tão bonito, embora me falte…

E aquilo que sinto faltar em Almodóvar é o cinema mesmo, o movimento, a profundidade, a imagem de que nunca vou esquecer.

Antonioni, Buster Keaton, Murnau, Fellini, Buñuel, todos esses sabiam lidar com o subjacente, o inconsciente, o não dito. E partiam da imagem com tanta segurança que as poucas palavras no ar saltavam aos olhos da alma.

Quanta saudade deles…

Ou de Douglas Sirk, que impunha a magnitude da canção triste nos melodramas movimentados por carros atirados a estradas, buracos, abismos!

Contudo, gosto do Almodóvar, sim, da persona dele…

Porque sei que procura compensar uma ausência de movimento com a realização do drama musical, este do qual muitos diretores parecem esquecidos, ocupados apenas com a plasticidade frouxa dos efeitos visuais!

Drama e comédia se misturam (como na vida) em seus filmes de estranho humor, como este Dor e Glória.

Um escritor…

E seu novo filme é mais uma autobiografia ficcional…

Irônica e às vezes pesada, porque ele se ocupa de desfazer o mito materno, vejam só.

Com carinho, mas desfazer!

Ele expõe a dor da desagregação por ser um homossexual e precisar calar sua condição.

Ele fala sobre a luz!

A iluminação, a representar a imaginação…

E as trevas, dentro de nós (do apartamento de seu protagonista), a miná-la em nossos corpos criativos, que são as belezas acesas do Nelson Jacobina…

É tão triste este Almodóvar, porque o adeus é iminente, como no filme Cabaré, enquanto, ao mesmo tempo, o doente recupera a magia da infância, da catacumba cristã iluminada pela leitura!

As palavras, como um desenho.

E a insolação de que é vítima quando imagina com fervor, com desejo…

Almodóvar pra representar a gente!

Nós, os delicados insurrectos.

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