A gente chama de anjos os habitantes das nuvens, mas não tem palavras para descrever quem abre as asas no chão. Ora, são anjos também.
Letícia Kaplan, a primeira filha de Bob Fernandes e Ana, morta aos 24 anos no sábado 10, sempre foi um anjo perfeito.
Quieta, esguia, os cabelos algo anelados, tinha os olhos grandes e claros. Olhos de cinema mudo, de Lilian Gish. Seu observar agudo não escondia o alvo. Se ela lhe observasse, você se saberia observado.
Quando eu soube que havia entrado na escola de Direito, achei perfeito, porque era notável como ela apontava os detalhes e acompanhava a sequência das cenas. Acredito mesmo que tenha se formado brilhantemente.
Digo essas coisas, mas mal falei com ela na vida. Eu a conheci muito menina, colega dos meus filhos na escola de esportes. Sua idade regulava com a de meu filho mais velho e a de sua irmã Luana, com a do mais novo. Dois irmãos, duas irmãs.
Letícia criança era grande e longilínea, e seu corpo se dava muito bem com as desenvolturas da feminilidade. A ginástica, a corrida. Em campo, de início foi tímida, depois se tornou imprescindível na defesa. Num jogo decisivo, lembro do Bob ao meu lado comentando imodesto sua atuação como zagueira: “Praticamente um Baresi!” Ou o jogador italiano teria sido outro?
Ao fim do ano, a escola realizava longa e incansável olimpíada com competição final. Ficávamos às vezes na arquibancada por muito tempo, à espera dos jogos que se emendavam. Numa dessas ocasiões, meu filho mais novo aproximou-se do meu colo e deitou a cabeça suada na minha perna, de modo a descansar. Bob então se disse invejoso do gesto, pois suas garotas já pareciam independentes demais para dar esse mole público a um pai apaixonado.
Suas meninas iam crescendo, amadas e admiradas, e percebíamos a nítida diferença entre ela e a irmã Luana, uma atacante decisiva e virtuosa. Letícia, esse nome que a ligava à alegria, era também seriedade.
Bonita demais.
Um anjo perfeito.