Estive com Eva Wilma em 2008. Vivinha tinha então 75 anos, era sorridente, engordara uns quilos e usava vestido verde. O verde me perturbou. Eu só pensava em meu pai, que disse ter chamado a atenção dela na juventude ao usar um terno de mesma cor. A atriz achou a história estranha e justamente dela não riu, se bem me lembro. Me atrapalhei. Eva, que morreu agora como consequência de um câncer, emanava poder. Declamava Millôr de cor e naquela ocasião me contou que escrevia um diário sem pensar em publicá-lo. Ser atriz, disse-me ela, que sonhou em se tornar bailarina, não representava um chamado quando optou pela carreira: “O chamado era a época”

transformou em bordão a fala
de uma amiga pernambucana:
“Thank you very much, viu, bichinho?”
A DAMA QUE RI
A atriz Eva Wilma revê uma carreira vitoriosa, marcada pelo humor
Por Rosane Pavam
Diante desta Eva que é o princípio, um interlocutor pode se sentir perto do fim. A história de Eva Wilma, que fez grande carreira no teatro, na televisão e no cinema, intimida quem a analisa. Acontece, contudo, de a personalidade de Eva distanciar-se da altivez. Ela ainda assanha os olhos, delineados a lápis, na direção de quem a observa. Sobretudo, depois de 55 anos como atriz, usa uma arma incomum para quem é dama. O humor.
Fazer rir não parece permitido às mulheres bonitas. Eva Wilma contrariou a interdição. Foi uma das mais belas desde a fundação da televisão no Brasil, em 1950, mas manteve o pé no riso, a seu ver um instrumento reflexivo. Integrante do Balé do IV Centenário, ela não começou como atriz. Em sua primeira aparição na tevê, em 1953, compartilhou com o primeiro marido, John Herbert, historinhas diferentes sobre o encontro de um homem e uma mulher na sitcom Alô Doçura. O humor apareceu nos dez anos em que a série durou.
Não que Eva Wilma tenha se sentido predestinada a ser atriz. Teria sido bailarina se houvesse aparecido a chance real. Seu pai, o alemão Otto Riefle Jr., perdera o emprego em 1929, sem jamais se recuperar financeiramente depois, e Eva não tinha irmãos com quem contar.
“O chamado era a época”, ela avalia hoje. Quem a convidava simultaneamente a interpretar eram Luciano Salce, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, José Renato, do Teatro de Arena, e, na tevê, o apelo era de Cassiano Gabus Mendes. Resistir aos três seria para rir. Como bailarina, ela aprendera que ou se debruçava sobre a barra ou não dançava direito. Para uma atriz, a barra equivalia ao estudo do personagem.
Ficou clássica a sua interpretação para Raquel, a gêmea má de Ruth na novela Mulheres de Areia, de Ivani Ribeiro, em 1973. Eva se transformava então na vil-má, qualificativos que ela lamentava haver em seu prenome, conforme contou à escritora Edla Van Steen na biografia ilustrada Arte e Vida (Imprensa Oficial). A maldade de Raquel, contudo, apegava-se ao cômico. Era bom ser gozadora e atraente. Raquel jogava a cabeça para trás, mostrava os dentes e brandia o revólver como se fosse um brinquedo. A boazinha Ruth usava lenço na cabeça, prendia o cabelo de lado com a presilha, rejeitava os óculos escuros e, principalmente, não gargalhava.
Tudo muito simples, mostrado desde o início como truque. Por desempenhar tão bem duas personalidades diferentes em Mulheres de Areia, seria natural que ganhasse o Troféu Imprensa, prêmio concedido aos melhores da tevê. Quem levou a láurea de melhor atriz naquele ano, contudo, foi Regina Duarte, que representara duas mulheres em uma (a menina pobre e tímida que passava a intrépida e rica) na novela Carinhoso.
Regina Duarte era já amiga de Eva Wilma à época. Conhecera a atriz garota, ao atuar com ela em Blackout, com direção teatral de Antunes Filho, em 1967. Regina declinou do prêmio em favor de Vivinha, como ela e os amigos ainda a chamam. O gesto se tornou comoção nacional naquele 1974. Eva Wilma assistia à cerimônia sentada no sofá de casa. “Surpresa como estava, só pude ligar para a Regina e lhe mandar flores.”
Na televisão, acredita a atriz, é raro haver este espaço para exercer a ironia, à moda do que ela fez em Mulheres de Areia. “Como não temos tempo para nada, estudo ou concentração, e nos aquecemos na tapadeira, atrás do cenário, ainda por cima falando sozinhos, não deixamos passar a oportunidade da ironia quando ela surge. Ser irônico, neste caso, equivale a comentar toda a situação.” A história se repetiu de certa forma anos depois, em 1996, quando ela se deliciou ao interpretar Maria Altiva Pedreira de Mendonça e Albuquerque em A Indomada, de Aguinaldo Silva, e improvisar o bordão da vilã, aprendido com uma amiga pernambucana: “Thank you very much, viu, bichinho?”
Agora que Eva Wilma, aos 75 anos, surge para uma leitura de textos representativos de sua carreira, costurados por ela e pelo autor Antonio Gilberto, em Um Brinde ao Teatro, dia 27, no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, e que reestréia em São Luís a peça O Manifesto, de Brian Clark, agora na companhia do ator Pedro de Camargo, esta passagem que ela faz como poucos, do drama ao humor, e do humor ao drama, vai estar mais clara para o espectador.
Eva estudou para ser ambígua, para colocar algo de seu na personalidade dramática de seus personagens. Quem primeiro a obrigou a isso foi Antunes Filho, diretor do policial Blackout, sucesso de público e crítica ao lado de Geraldo Del Rey e Stênio Garcia. Para compor a personagem frágil pela cegueira, e que de repente investia contra os bandidos com uma faca de cozinha, ela leu o capítulo sobre dialética do livro Princípios Fundamentais da Filosofia, de Georges Politzer. Eva apelidou o livro de “meu pequeno operário”.
Dois anos antes, o diretor Sergio Luis Person a convidara a São Paulo S.A., filme no qual a personalidade da protagonista era desenhada com idêntica surpresa. A Luíza simples parecia acreditar no futuro industrial de São Paulo, mas seus olhos indicavam que ela esperava o pior. Eva Wilma apenas diz que se divertiu muito com Person, e que o filme a levou a Acapulco, onde ocorria o Festival dos Festivais. Lá, ela encontrou o diretor espanhol Luis Buñuel, admirador da obra. O filme, que rendeu prêmios a Eva, já valera por este encontro.
“Começamos a crer, emocionados, que o mal nem sempre vence”, diz o prólogo que Millôr Fernandes escreveu para Antígone, de Sófocles, e que Eva declama no saguão de um prédio paulistano. No edifício ela comprou um apartamento há quase três décadas, por iniciativa de seu segundo marido, o ator e diretor Carlos Zara, morto em 2002 de um câncer no esôfago. Eva ainda se emociona quando fala deste homem que ela amava e que sabia sempre por onde andar e o que fazer.
“O mais difícil da luta é escolher o lado em que lutar”, termina o prólogo de Millôr.

Tônia Carreiro e Odete Lara, em passeata contra a censura, 1968:
“O mais difícil da luta é escolher o lado em que lutar”
Eva também gosta de escrever, à mão, em um diário que não imagina publicar. “Não acredito que já tenha realizado tudo o que gostaria de realizar. De alguma maneira a juventude me parece mais próxima do que quando eu era jovem”, ela escreve. De tudo lê um pouco, como os textos do mambembe Airton Salvanini. Agora, dedica-se a um novo esporte: “Arrumação, você conhece?” O site de buscas google a libertou do desperdício de materiais representado pelos volumes da Enciclopédia Britânica.
Riam, mas não brinquem, com a Eva Wilma ética que, algo defendida pela notoriedade, caminhou contra a censura em 1968, para não mais se intrometer na política de candidatos. E jamais façam como o diretor inglês Alfred Hitchcock, que a convidou a um teste, naquele ano fatídico, para participar do filme Topázio. Durante a análise, ele a provocou em inglês. Irritada, Eva Wilma argumentou que jamais conseguiria responder à provocação em língua que não fosse a portuguesa. “Pois responda na sua língua”, ele a desafiou. Eva então lhe falou tudo o que ele não poderia compreender. Não ganhou o pequeno papel, que passou a uma alemã, Karin Dor. Topázio não fez o sucesso esperado, mas, ainda assim, ela teria adorado estar nele. Neste caso, Eva riu por último, mas não riu melhor.