A inteligência teimosa de Nara Leão

“O Canto Livre de Nara Leão”, série documental em cinco episódios pela globoplay, traz de volta o doce sabor das revoluções da intérprete na música popular

Nara Leão em 1964, quando
gravou seu primeiro disco

O dia de ver o documentário seriado de Renato Terra sobre Nara Leão chegou aqui graças à oferta de uma amiga querida, assinante da Globoplay, e eu não poderia me sentir mais satisfeita com o presente.

Nara, que mulher para mim. Não pela voz, exatamente, mas que grande personalidade havia dentro dela para caminhar à vontade naquele universo imperativo dos homens, fingindo, ainda por cima, não fazer nada demais.

Quantas vezes ouviu que desafinava, que era desanimada e “mixuruca”? Muitas. Todas. Mas nos momentos em que ouvia isso parecia dirigida pela impetuosidade, uma espécie de teimosia da inteligência, esta que a tornava a um tempo graciosa (os joelhos de Nara, como brincava o Otelo Zeloni do programa humorístico “Família Trapo”) e plena de generosidade, a mulher de família bem de vida que sabia reunir, destacar, dividir e compartilhar seu talento. Mulher do desafio que nos últimos anos parecia esquecida, como acontece usualmente com figuras cruciais da arte brasileira.

Então, sim, eis o documentário “O Canto Livre de Nara Leão”, que tantos amaram. E entendo por quê. Ele a traz de volta aos nossos corações. Ouvi-la falar, em depoimentos no mais das vezes desconhecidos, como aquele ao Museu da Imagem e do Som, para Sérgio Cabral e Roberto Menescal, é uma aula de posicionamento. Uma figura pra lá de gentil mas também assertiva, a ponto de dizer a um jornal simpático aos militares de 1964 que o exército não servia pra nada, e com isso ganhar uma crônica de Drummond em seu apoio, além do abraço dos amigos em seu apartamento – o que felizmente bastou, além do apoio do pai advogado, para que não se visse presa por conta da declaração.

No célebre apartamento de
Copacabana, com Tom Jobim e
Ronaldo Bôscoli ao lado

Mulher complicada, como ela diz ao MIS, para que Menescal a apoie. E maravilhosamente única, desinteressada do profissionalismo e do sucesso.

O documentário contribui para iluminar essa Nara desconhecida. Sabemos por meio dele que a artista nem mesmo imaginou que se tornaria cantora – gostava mesmo era de cinema e achava que iria trabalhar nesse meio, no qual começou como montadora, ao lado do futuro marido, Cacá Diegues, com quem teria os filhos Isabel e Francisco. E quando, adolescente, destacou-se por manejar voz e violão no seu apartamento, começou a entender que seu papel no mundo da arte não seria só o de cantar, antes o de mexer no panorama musical a ponto de desvelá-lo e redirecioná-lo. Uma ambição maior que todas, certo? E que Elis Regina, a rival que não lhe atribuía talento vocal, também experimentou.

Com o produtor Aloysio de Oliveira
(no alto), Carlinhos Lyra e
Vinícius de Moraes

Neste documentário em cinco partes, Nara diz, com objetiva e usual sinceridade, que nos seus tempos de bossa nova não conhecia o povo brasileiro. E ao descobri-lo em sua porção de miséria e fome, por meio de Carlinhos Lyra, que lhe apresentara o morro de Nelson Cavaquinho e Cartola, começou a se deslocar do grupo. A bem da verdade, afastou-se dele de uma vez quando Ronaldo Bôscoli, a quem começara a namorar no apartamento dos pais, Jairo e Altina (célebre lugar diante do mar de Copacabana onde o movimento da juventude carioca começou), traiu-a com a cantora Maysa.

“Opinião”, em 1964, acompanhada
por Zé Kéti e João do Vale

Bossa nova, espere sua vez! Zé Kéti e João do Vale se tornariam então tudo o que havia de melhor e com eles ela arrebentaria no show-teatro “Opinião” – este do qual desistiu também, depois de dois meses, por não ter estofo físico e se sentir nauseada justamente por seu sucesso. Foi ela quem sugeriu a substituta Maria Bethânia, que à época estudava recuperação para passar em matemática na escola.

Com Chico Buarque nos anos 1970, amigo de vida e de bom humor

Os melhores depoimentos sobre Nara, os mais deliciosos e esclarecedores, por anedóticos e bem-humorados, são mesmo, neste filme, os de artistas como Bethânia, que lhe aponta incentivadora e namoradeira, e Chico Buarque, que lhe fornece um perfil muito especial, em que o bom humor não coincide com o gosto pela piada e com a distração. Mulher séria que sabia sorrir, crava Chico, a quem acompanharia em sua fase posterior à do “Opinião”, com “A Banda”, ela ganharia a algo indesejada fama pop dos festivais.

Na capa do disco “Tropicália”, ela aparece num retrato exibido por Caetano Veloso

Depois de Chico, foi a vez da Tropicália; depois da Tropicália, os nordestinos feito Fagner; depois dos nordestinos, os gaúchos como Kleiton, secreto namorado; depois dos gaúchos, Erasmo e Roberto Carlos; e até morrer precocemente de um tumor cerebral, aos 47 anos, a companhia bossa-novista do violão de Menescal, sucesso no Japão. Com Nara por perto, qualquer novo movimento musical se redobrava em brilho, como se ela lhes desse chancela artística, quebrando padrões e preconceitos precedentes.

Nara e Menescal no Japão, anos 1980

Porém, o documentário em si tem muitos problemas. Com tanto BBB na produção – um Brêtas, um Boni, dois Bial, o Pedro ele-próprio, que se casou com Isabel, e seu filho José, neto de Nara – seria de esperar mais? Infelizmente, sim.

A série, no fim das contas, desfila a aristocracia musical do Rio e dá pouco espaço para além dela – mas Nara era nacional, com o gosto pelo povo em toda parte. No documentário, por exemplo, nem mesmo o bordão do Zeloni na “Família Trapo”, programa ao qual ela compareceu, é mencionado.

Em lugar disso, exibem-se fileiras de videoclipes do “Fantástico” de gosto duvidoso – em um deles, Nara canta a necessidade de viver “uma vida sem frescura”, na canção “Além do Horizonte”, de Roberto e Erasmo, espichada num iate… E haja Leda Nagle a entrevistá-la, com a explícita intenção de dirigir suas respostas.

Com Otelo Zeloni, joelhos à mostra, informação que a série não traz

Além disso tudo, nos surgem sonegados seu rosto de infância, muito sobre seu violão, suas preferências de instrumento e noções de estilo, o nome do violonista no primeiro disco, de 1964 (Geraldo Vespar), o fato de Elis ter-se casado com Bôscoli (o que explicaria melhor a rivalidade entre elas), mesmo o seu local de nascimento (Vitória, Espírito Santo), as datas em que nasceu (1942) e morreu (1989), a profissão do pai, mais sobre sua relação com Johnny Alf ao piano, onde se esconde Alaíde Costa em sua história, etc., enquanto frases e fatos inteiros são repetidos e salpicados pelos episódios, como se não tivéssemos tido condições de absorvê-los desde a primeira vez. A função “supervisão artística” é assinada por Pedro Bial.

Está certo que o final é belo, algo inspirado pelos deuses, e a gente dá muito valor ao que tem. Contudo, Nara Leão, como ela mesma queria, é assunto sério, sempre à espera de um novo exercício fílmico-historiográfico por meio do qual se possa ampliar.

Nara, reflexões à espera

O CANTO LIVRE DE NARA LEÃO

Dir.: Renato Terra

Série em 5 episódios

2022

https://globoplay.globo.com/o-canto-livre-de-nara-leao/t/fcfQvBWKVY/

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