A Folha não mudou

Ler a Folha é pra dias específicos na minha rotina, em geral quando algo inconsciente em mim quer reafirmar uma decisão tomada há décadas, a de me demitir da empresa.

Aprendi muito lá, contudo. Ali vislumbrei uma realidade profissional antes desconhecida por mim: a de que, uma vez dentro do jornal, seu pensamento não é seu. Você trabalha para uma empresa com pensar próprio sobre como o mundo deva funcionar. Especialmente, sobre seus próprios interesses financeiros. Melhor entender quais são antes de aceitar trabalhar para/por eles. Melhor que coincidam com os seus.

A Folha, contudo, nunca deixou de me pagar em dia, nem jamais tergiversou sobre meus direitos trabalhistas. Vocês podem pensar que isto seja algo de seu estrito dever, e é, mas não imaginam como outros veículos brasileiros, até mesmo ou principalmente os de esquerda, tratam nossa força de trabalho. A adesão à esquerda por parte deles, na maioria das vezes, é só um discurso conveniente. Se as pessoas soubessem como são feitas certas salsichas, não as comeriam mais.

Abaixo-assinados de jornalistas-funcionários deveriam ser livres, não? Não. Um abaixo-assinado contrário a diretrizes do jornal é entendido como força contrária a ele como empreendimento patrimonial. E ponto. Na Folha e em qualquer outro lugar. Parece que este último, circulado assumidamente contra a edição, no diário, de artigos com certo viés ideológico, era para ser interno, e sua publicação pelo jornal vinha sendo “avaliada”. Mas o conteúdo vazou para a concorrência e agora a Folha prepara “seminário interno” para explicar aos seus funcionários… como a Folha funciona.

Imagino o clima na redação. E imagino a cara dos signatários ao participar desses seminários, idênticos jornalistas que não reagiram quando as armações da Folha resultaram em golpe contra Dilma e a democracia – armações que, no fim das contas, ajudaram a eleger este governo de atitudes racistas, mimetizadas por setores da população.

No longínquo ano de 1985, uma menina em seu primeiro trabalho na grande imprensa, também eu assinei um manifesto interno contra as diretrizes da Folha, mal aterrissada lá. Deveria antes ter entendido como funcionavam os jornais burgueses – e deles desistido, talvez. Mas não. Continuei funcionária e o abaixo-assinado me fez respirar mal.

Leio as primeiras páginas da edição da Folha de hoje, 20 de janeiro de 2022, e constato o de sempre. Artigo de ex-ombudsman explica a treta sob a perspectiva do jornal (alegando que os signatários do abaixo-assinado não quiseram fazer comentários) e glorifica-o por treinar os jornalistas negros com aulas específicas.

É um cinismo, claro, mas aqui a equação é simples. Se continuamos a ler o jornal e não o confrontamos em suas posições, nós, leitores, o fortalecemos. As pressões não devem ser apenas internas – têm de partir da sociedade como um todo. É a sociedade quem deve ensinar a Folha a mudar. É ela quem deve estar atenta a tudo, ao modo como o jornal edita as coisas, desde as imagens. Por exemplo, a foto de um Lula irado e ameaçador, publicada hoje na seção de política, diz tudo sobre o texto que virá e sobre o Brasil que o jornal quer.

Continuo lendo a Folha? Às vezes. Como disse no início, eu a espio até inconscientemente, para reiterar as razões que me fizeram abandoná-la. Mas não assino o jornal nem o compro na banca, além de criticá-lo quando julgo necessário. Sou uma desempregada em crise financeira, que ainda dorme sobre um travesseiro quente.

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