Nem Paris, nem Texas: “Pegando a estrada” revive um cinema

O primeiro longa-metragem de Panah Panahi, presente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, rompe as regras do filme estático contemporâneo ao explorar a jornada de um jovem em formação

Infância, um lugar para a música

Um jovem dirige o carro no qual viajam seu pai, sua mãe, seu irmão mais novo e o cachorro da família. Ele precisa alcançar a fronteira e atravessá-la, para então viver sozinho do outro lado. Mas de que modo irá viver sem ninguém, se é tão imaturo? Principalmente, por que tamanha peripécia familiar para que se vá? Se você assistir a este longa-metragem sem saber que se trata da primeira realização cinematográfica de Panah Panahi, o filho de 37 anos do grande Jafar Panahi, diretor desterrado do cinema pelo governo do Irã em 2010, talvez o entenda parcialmente. De qualquer forma, estará diante de um belo filme com extenso arco emocional, este que admitirá até mesmo a presença do humor.

Eis um longa que mereceria ser incluído em todas as redes de streaming popular. Porque é acessível sendo ainda bom cinema, não um arremedo de telenovela brasileira baseado no jogo infinito entre campo e contracampo, a partir de enfadonhos planos médios e closes. Panah Panahi tem o controle da história e a fotografia de Amin Jafari é sempre clara, seja dia ou seja noite, de modo a fabular com nitidez a psicologia dos personagens. Os atores têm enorme carisma e beleza. Suas máscaras são acionadas tão perfeitamente que nos esquecemos de que interpretam papeis. Eles existem sem contestação dentro da verdade do filme.

A fotografia de uma fabulosa paisagem

Em poucos minutos iniciais nos quais apenas o caçula aceso fala sem parar, conhecemos todas as circunstâncias que orientarão a história. Para isso, o diretor se encarregará de condensar o Oriente em sua iconografia icônica. As montanhas parecerão pintadas, a estrada se alongará, o carro acessará os mundos interiores e exteriores, a religiosidade se introjetará nas canções e observações, o velho venderá pele de carneiro, a mulher espirituosa também será a mãe devota e o pai terá um mau humor divertido, que se desinteressará das convenções. Seremos jogados para o contexto no qual os personagens funcionarão com muita intensidade e leveza, se isto é uma coisa que se possa conceber simultaneamente. Até mesmo sentiremos vontade de conhecer esse recanto do mundo tão isolado pela intolerância, que sempre antes nos causara temor.

É coisa rara nestes dias, mas o diretor pratica a beleza do movimento, marca do cinema de antes, de Douglas Sirk a Wim Wenders. O filme deste Panahi também é musical, um “Paris, Texas” que corre pela imensidão habitada, mas às avessas. A questão do filho, do que fazer com ele, é também central. Mas o filho aqui não está abandonado, antes deseja se descolar dos pais, existir por si próprio, embora não pareça reunir ainda condições para tal. “Você fuma muitos cigarros vendo filmes”, diz-lhe a mãe. “Veja menos filmes”.

“Veja menos filmes”

É muito engenhosa a resolução dramática da figura filial. O personagem do filho, que imaginamos ser uma referência do cineasta a si em relação a sua família, a seu pai, vê-se construído numa convergência entre dois personagens, a criança e o jovem. O filho criança é brilhante, o filho jovem, opaco e comicamente inseguro. Dois meninos representam um. Mas como não se tornar progressivamente inseguro para se lançar no cinema se seu pai é Jafar Panahi? E há o cão. O cão está à morte. O cão é a alma de todos que se despedaça para que a jornada de herói do filho possa enfim começar.

Diante do herói

É um filme radioso, brilhante, também porque não se apega às convenções do que deva ser o cinema de arte contemporâneo. Vencedor do Festival de Londres, ele não paralisa as atuações à toa, não abusa da cinemafotografia sem movimento, que se insere apenas quando o diretor quer destacar uma estranheza, uma profundidade. Este cinema que não teme ser cinema paga sem temor um tributo à arte estadunidense, embora ironize o país (e os amantes do país) por meio de uma deliciosa piada em torno do ciclista Lance Armstrong. É um filme para ver, rever, mergulhar e cantar.

Panah Panahi, um
grande primeiro filme

Pegando a Estrada

(“Hit the Road”, “Jaddeh Khaki”)


Direção: Panah Panahi

cor, 93 min. 

Ficção

Irã

2021 

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=13S–yt8esA