Valdir de Morais, a história

Nesta entrevista de 2005, o jogador que primeiro exerceu a função de treinador de goleiros e que assessorou Telê Santana na seleção de 1982 relembra sua carreira desde o início no Rio Grande do Sul, descreve um inacreditável movimento de Pelé em sua área, lamenta a ausência do amigo Castilho e expõe o receio de viver afastado do futebol

FOTO 10
Valdir de Morais, talento extraordinário em bom tamanho (Foto Reprodução/Palmeiras)

A entrevista descrita a seguir destinou-se à conclusão de um curso que realizei na pós-graduação em História pela Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2005. Intitulada “História Sociocultural do Futebol: Impulso Lúdico, Composição e Significações”, a disciplina era então ministrada pelos professores Hilário Franco Jr. (“A Dança dos Deuses”) e Flávio de Campos.

Jornalista desde os anos 1980, atuante na cobertura de Geral, Internacional e Cultura, eu jamais havia coberto esportes e não conhecia nomes dentro do futebol, algo que dificultava meu acesso a personagens que o professor Hilário Franco Jr. nos solicitava a conhecer e entrevistar. O contato com Valdir de Morais (morto em 11 de janeiro de 2020, em Porto Alegre, após falência múltipla de órgãos) me foi dado pelo diretor de cinema Ugo Giorgetti, seu amigo, sobre quem escrevi dois livros, “O Sonho Intacto” e “O Cineasta Historiador: O humor frio no filme Sábado, de Ugo Giorgetti”.

A seguir, a íntegra do texto, que à época intitulei “Incrível Cavalheiro no País da Malandragem” e pelo qual recebi a nota 10.

 

INCRÍVEL CAVALHEIRO NO PAÍS DA MALANDRAGEM

Por Rosane Pavam

Esta conversa com o goleiro e treinador Valdir Joaquim de Morais começa uma semana antes de sua realização, quando a entrevistadora inicia o contato telefônico com um dos maiores profissionais de futebol do Brasil. Acertada a possibilidade de meu encontro com Valdir, ele me pergunta como me chamo, embora lhe tenha dito isso no inicio da ligação, e acrescenta um questionamento: “Você é conhecida por este nome mesmo?” Sorrio e lhe digo que, infelizmente, não sendo eu uma jogadora de futebol, jamais recebera um codinome condizente com o grande esporte. Valdir Joaquim de Morais teria de se contentar com a simplicidade de minha alcunha de batismo. “Também não me conhecem por apelido nenhum. E não chamo ninguém pelo apelido. Sou conhecido por Valdir. A televisão vem?” A televisão não vai, digo-lhe eu. Vão uma estudante e seu gravador. Tento combinar um dia da semana que nos seja favorável para a conversa. Arrisco terça-feira. E ele, sem negar diretamente a sugestão, faz uma observação firme: “Segunda-feira é um dia bom.”

Segunda-feira inquestionada, 31 de outubro de 2005, adentro o saguão do flat em que ele se hospeda, o American Loft, diante do portão central do Parque Antártica, estádio do grande clube que lhe deu a primeira acolhida profissional, sem a noção de que a escolha de um dia da semana tivesse uma razão especial para meu entrevistado. Havia dois meses, Valdir deixara a função de treinador de goleiros do Santo André, não recebera um tostão por seus serviços e estava sem emprego. Por que a segunda-feira seria necessária a um homem sem horários, de longa e proveitosa carreira, cuja família morava no Sul do país? A entrevista esclareceria indiretamente este ponto.

Segunda-feira, como a entende Valdir desde os tempos de jogador, é o dia do boleiro. O dia da folga. O dia da conversa descompromissada do trabalho, ainda que essa conversa raramente se distancie do tema futebolístico principal. Um dia, portanto, propício a meu intento de falar e ouvir. O futebol pode estar saindo aos poucos da vida de Valdir de Morais, mas ele o segue ritmada e ritualmente, observa todas as suas divisões de tempo, como se elas ainda lhe servissem. Ele usa as horas segundo aquilo que o esporte lhe ensinou a fazer: acorda como que para os treinos, almoça no restaurante dos boleiros, conversa à noite no bar onde estão os novos e velhos esportistas. Fora dos limites temporais do futebol, não há jeito de Valdir manejar a vida.

Então, algum treinador lhe proporia emprego numa segunda-feira? Durante as duas horas de conversa naquela tarde, o telefone celular ao lado de Valdir de Morais toca quatro vezes, e ele o atende sempre com presteza. Na primeira ocasião, sua esposa o chama, e ele pede que falem mais tarde. Nas outras três ocasiões, o gerente do banco combina uma forma de bloquear o cartão clonado de sua conta-corrente. As interrupções levam um total de quinze minutos de nossa conversa. Enquanto ela dura, Valdir, um cavalheiro em todos os momentos da entrevista, jamais pensa em desligar o celular.

Eu o aguardara por vinte minutos até que ele descesse ao saguão do flat, onde me encontrava, e começasse a responder minhas perguntas. O período equivalia aos minutos de atraso que eu infelizmente levara para chegar ao local da entrevista (segunda-feira não era meu dia bom). Valdir caminhou confiante do elevador ao sofá onde eu me acomodara. Sorriu, e com seus trajes discretos de passeio, estendeu-me a mão. Sentou-se no sofá do saguão e de lá não admitiu sair. Argumentei que o local era barulhento, que não somente as pessoas falavam alto, mas também as marteladas da reforma arruinariam a gravação, o que em parte se revelou verdadeiro. Mas o dia era frio e ele não queria conversar à beira da piscina, como fazia com os jornalistas. O saguão ou nada.

Seus modos, contudo, não eram duros como esta seqüência de imposições pode sugerir. Nem deve ter sido assim quando, ao contrário do que me garantira, usara um apelido para o amigo de clube abençoado pelo nome Picasso. Por que diminuir uma divindade a Padre Inácio, como ele e os outros do clube o chamavam?

Sempre sério, Valdir age gentilmente, apeia o cavalo e faz a guarda. Ao conversar comigo, também está guardando, firme, o templo futebolístico. A responsabilidade pela vida da rainha é sua: é sempre o último homem antes que o rei venha a tocá-la. Para fazer bem o seu trabalho, revela-se obsessivo com os rituais. Há um para falar, outro para se esquivar, ainda um terceiro para negar.

Valdir de Morais é um incrível cavalheiro no país da malandragem. Infelizmente, para viver entre malandros, ele desenvolveu uma habilidade própria, serena e furtiva, que mede a confiança no interlocutor para então lhe entregar as lascas do ouro da experiência. Ainda que sua entrevistadora tenha o intuito de trabalhar para a conclusão de uma disciplina universitária, ele talvez a veja como uma perguntadora da imprensa _ esta imprensa a que ele jamais se refere com carinho ou respeito, que é sensacionalista, divisionista e tem um “chefe” com armas ocultas. Para alguém como eu, vinda de um ambiente desmerecedor, toda a malandragem desenvolvida por ele será pouca.

Fosse de outra forma e Valdir talvez não houvesse se recusado a abrir certas fichas e cadernos. Deveu-me até o fim uma lista em que constava seu currículo integral _ e que, segundo suas palavras iniciais durante a entrevista, estava guardada no quarto do flat. Depois de meia hora de conversa, a lista permanecia escondida em algum lugar na casa de Porto Alegre; e dias depois, infelizmente, desculpe-me, possivelmente perdida, após tantos períodos de mudança clubística.

O futebol de Valdir de Morais é aquele brasileiro. No Brasil, são malandros o esporte, o samba de raiz, a boa literatura social. Neste mundo de Valdir de Morais, ser malandro é ser um homem. Mas não nos referimos, aqui, à malandragem resumida em preguiça, arruaça, trapaça ou preconceito, imortalizada desde a Lapa de Madame Satã. Ser malandro, no seu  caso, é abrir-se ou fechar-se na hora devida, saber se guardar, preservar o que é valioso do predador, jamais subestimá-lo, grande ou pequeno, como faz um craque indistintamente, esteja ele diante de uma seleção ou de um time do interior. Durante a entrevista, o princípio de hombridade de Valdir era o de defender o futebol (a vida) rapidamente, sem nem mesmo pensar, dos pontos de vistas negativistas ou críticos. Não havia nada em que sua entrevistadora pudesse lhe ameaçar, mas a consciência deste defensor era o ponto a martelar sobre o palco. O currículo que ele deveu a ela _ certamente extenso, incluídos clubes, seleções e glórias a ele ligados _ talvez representasse, para quem o lesse, uma carreira em declínio, algo que, naquele momento, ele se assustava em admitir.

É delicado colocar, sobre um grande goleiro e treinador, a pecha de que seu ofício represente uma espécie de maldição dentro do futebol. Imagine-se, então, fazer isto diante de Valdir de Morais. Ainda assim, esta entrevistadora achou que deveria lhe perguntar tais coisas, diretamente ou não. Isto porque a razão de ser de um goleiro pode se localizar num engano. O engano de ser livre. O pai de Valdir, Hilário, era goleiro como ele. Independente como tal. Mas independente no Concórdia, um time da paz, um time sem grandes títulos, pelo qual torcia ardentemente toda a família, incluídas a mãe e a irmã. Que maldição é esta, se em tudo, homens e mulheres, concordamos?

Independência talvez seja a primeira coisa a se passar pela cabeça de um goalkeeper _ e, logo depois, quando os grandes contratos chegam, e com ele a torcida e as responsabilidades, ele entenda que a liberdade nasce de um componente de servidão. Servil ao time. Servil ao treinador. Servil ao presidente. Servil até mesmo ao juiz. Porque é servindo que se pode fazer aquilo de que se gosta, continuar a ser feliz dentro das ilusões concebidas, contra o que dizem a realidade do futebol e a razão.

E as probabilidades de Valdir guardar um gol eram, de início, pequenas. Pequenas em razão de sua estatura de atacante. Ele diz a sua entrevistadora que media 1m75 quando era jovem, mas ela, que atualmente tem seu 1m73, pôde sentir que ele se coloca um pouco abaixo de sua cabeça quando está de pé, sempre esguio. A idade o teria feito encolher, ele argumenta.

Era tão baixo e surpreendentemente tão bom como goleiro, hábil até mesmo para acertar o lado da trave escolhido pelo batedor de pênalti, que esta ligação entre duas qualidades poderia lhe servir de orgulhosa fachada. Mas ele a recusa. Teve de responder por ela toda a vida. Ao final da entrevista, quando me encaminho ao táxi, Valdir me acompanha e abre a porta do carro. Fala com o motorista como se o conhecesse (mas é que, se ele não conhece todos, todos o conhecem, e os caminhos estão abertos). O motorista me confidencia, pronunciando o nome do homem, não o apelido, como se adivinhasse: “O grande Valdir Joaquim de Morais. Quero ver se pego ele um dia. Quero muito levá-lo no meu táxi. Eu o vi jogar contra o meu Corinthians e acabar com meu time. A única coisa que a gente podia fazer era gozar o fato de ele ser baixinho.”

Insisto, para que Valdir não me compreenda mal, que a responsabilidade do goleiro é grande, que é preciso um componente heróico para abraçá-la. Ele conhece a tragédia que cercou esse elegante cavalheiro chamado Moacir Barbosa, caído ao chão por uma falha só, ele acredita, num dia ruim de 1950. Barbosa é, para ele, o goleiro brasileiro mais completo de todos os tempos, aquele que lhe ensinou a importância de bater bem a bola, aquele que, além de boa cabeça, tinha calma e a transmitia à equipe. Não era um herói, porque heroísmo, para Valdir, não existe no gol. Como “guardião do templo”, imbuído que ninguém viole esta senhora desejada virgem, o goleiro tem apenas de ser sereno, forte, ouvir e se saber ouvir, sem reclamar do trabalho duro e ininterrupto. O rei é Artur, ele é Lancelote. Nem uma única grande defesa sua Valdir de Morais cita durante a entrevista _ apenas se lembra de um lance de sorte, do vento que, um belo dia, livrou-o da qualidade espantosa de Pelé contra sua Virgem. Ele não pode admitir que seja supersticioso: não é a superstição que o move. É a missão do cruzado. É Deus.

Depois que o abandonaram como goleiro no Palmeiras, aos 39 anos, ele achou que deveria reparar as injustiças contra os homens à sua semelhança, nascidos para a liberdade e condenados por ela. Tratou de ouvir a todos os que passassem por suas mãos de auxiliar para goleiros. Deveria ser óbvia, em 1969, a necessidade de um treinador específico para os infelizes brasileiros no gol, porque Osvaldo Brandão aceitou-a sem medo, e rapidamente ela foi estabelecida como incontestável. Valdir adivinhou o que faltava. Mais uma vez, sem ser um fanático da religião, muito pelo contrário, tornou-se o veículo de um “deus mais no alto” que lhe assoprou no ouvido um novo destino e o fez viver tranquilo e necessário ao mundo do futebol por anos recordes.

Quando ele me diz que sua tarefa mais importante como treinador era a de aliviar, dos goleiros, a carga de preconceito, e fortalecê-los em sua missão, parece que conversa frouxamente e deseja, com isso, esconder-me os segredos de seu método. Mas, ao resumir o trabalho que faz principalmente à conversa com esses profissionais, talvez Valdir estivesse sendo aberto com sua interlocutora pela primeira vez. O que é técnico _ e a palavra é tão pequena para ele que jamais chama um treinador assim _  já chega com os meninos de talento. Quem tem talento sabe, ele crê. O que os meninos não sabem é o que os espera, é a maldição que ele contraditoriamente nega haver, os meninos não sabem o que há numa escolha, num destino. Se souberem antes, e quiserem ouvir isso dele, Valdir, estarão preparados para tudo. Especialmente se escolheram desde o início o gol, e não foram levados até ele por uma série de esquivas.

Valdir de Morais está morando em um flat à espera de uma nova missão. Parece que se esqueceram do que ele pode fazer, da sua integridade, da mensagem que ensinou todos os grandes _ Leão, Zetti, Veloso, Ronaldo, Rogério Ceni, Marcos, Dida _ a passar. Mas é fim de ano, e o Leão ficou de chamá-lo para conversar no ano que vem. Talvez pinte alguma coisa, mas agora não… Ou será agora? Valdir vive para servir, para ficar onde sempre esteve, e mesmo assim não lhe respondem.

Este homem que vê o espaço do goleiro cada vez menor, que assiste à confusão da artilharia na boca do seu gol, que precisa formar a guarda para o templo sagrado dia a dia ameaçado, afirma odiar as prisões da vida. Não o coloquem preso (num escritório, numa casa de família), coloquem-no em um avião para novos jogos e ele se sentirá livre de novo. Teria feito o curso de piloto não aparecesse o futebol um pouco antes, delimitando para sempre seu espaço. Agora, os aviões são escassos e o flat tornou-se sua espécie não reconhecida de cárcere: noite e dia, diante do portão principal do Parque Antártica, o treinador espera que o celular toque.

Depois de quase duas horas de conversas, horas em que Valdir de Morais se resguardou de espadachins imaginários avançando na direção do trabalho do amigo Telê Santana na seleção brasileira de 1982, ou dele próprio, dividido entre ter sido o jogador importantíssimo que foi ou o precursor de uma atividade de formação (o que teria lhe marcado na história, ser o homem do gol ou o treinador? Ele não responde), e ainda acuado pelas balestras na direção do próprio ofício de goleiro, que resume sua vida, Valdir abriu o raciocínio à minha compreensão. Mas, então, o gravador se desligara.   

Em primeiro lugar, Valdir se desculpou por falar pouco, ou por não falar tudo. “Você deve entender, Rosane, que não posso dizer muita coisa, porque dizer muita coisa envolve esses homens, e eles estão mortos. Já me pediram para escrever minha biografia, mas não autorizo. Não é justo com os mortos, eles não podem falar.” Eu digo que entendo, embora a razão se interponha a meus pensamentos: “Se estão mortos, vão reclamar?” E volto a bater na bola do heroísmo do goleiro contra a maldição. Comento com ele a morte de Castilho. Falo de Yashin. De Gordon Banks. E ele me conta, de Castilho, que se lembra de ter visto a mulher do goleiro um dia antes daquele marcado para a partida rumo à Arábia Saudita, quando estava no bar do Elias, em São Paulo, em companhia do preparador físico Gilberto Tim. A mulher carregava um cachorrinho que deveria vacinar, ou não viajariam. Era algo tão prosaico, tão comum, um cachorrinho no braço da mulher do seu amigo! E, à noite, sentado à mesa de jantar com um dos filhos, Castilho atravessou a sala, chegou até a janela e pulou.

“Quem explica isso?”, ele me pergunta. E eu pondero que, talvez, houvesse em Castilho apenas um componente não combatido de depressão, um problema químico jamais tratado que acabara em suicídio. Contei-lhe de outros casos conhecidos, como quem consola um amigo. E ele então me disse: “Eu tenho medo que isto aconteça comigo, Rosane. Depressão. Dois meses sem trabalho, já. Eu não vou aguentar.”

 

 

A ENTREVISTA

Como e onde sua carreira começou?

Começou em Porto Alegre, onde nasci em 23 de novembro de 1931. Não sei se houve alguma influência, mas meu pai, Hilário Morais, foi goleiro na cidade, pelo Concórdia, clube rival do Grêmio e do Internacional. Ele jogou como profissional, mas não daquela forma profissional que já havia na minha época. Minha família tinha um armazém (hoje seria um supermercado) para se sustentar. Meu pai e minha mãe adoravam futebol. Minha mãe, Adelina, acompanhava tudo, além de cuidar da casa e também do armazém da família. Era uma época difícil, mas não como hoje, havia mais respeito pelas pessoas, então não víamos problema em torcer. Nosso time era o Concórdia, onde meu pai atuava.

Quando criança, eu jogava em Porto Alegre mesmo, no centro, em campo de várzea. Havia quatro campos de várzea nas imediações. A gente saía de casa e já caía no campo, então era o dia inteiro passado lá. À noite, a gente fazia lição. Meu time era o do bairro, o Floresta. Recebi todo o incentivo de meus pais para jogar, porque todos adoravam futebol, tanto quanto minha irmã, Nadir, cinco anos mais velha do que eu e hoje já falecida.

Sempre joguei no gol, e muito antes de começar no juvenil do Renner, aos 14. Nunca me interessei por outra posição, pela de zagueiro ou qualquer outra. Ninguém gosta de ir para o gol. Só quem tem a tendência, como eu. Hoje, eu treino goleiros. Meu trabalho inclui conversar, não só treinar. Quero conhecer o lado deles, gosto disso. Então, nas minhas conversas com eles, pergunto: “Como é que você foi parar no gol?” E as respostas vêm. “É, fui porque não tinha quem jogasse na posição…” E, então, eu tenho meus pensamentos. Aquele que foi para o gol porque gosta vai ter uma carreira bonita.

Jogar no gol é fazer uma coisa diferente dos demais. Você é praticamente independente. Depende dos outros dez, mas depende muito de você. É uma posição muito criticada, embora hoje nem tanto, e eu tenho uma parcela muito grande nessa mudança de pensamento, nessa formação. O goleiro é sempre condenado por erros que não cometeu. Outro dia, assisti a uns tapes da atuação de um desses profissionais e vi o narrador afirmar, de uma forma acintosa: “Que frango, hein, goleiro?” Para mim, a palavra “frango”, no gol, é agressiva. Eu não a uso. Quando um repórter vem comentar uma má atuação, digo logo: “Frango, não. Falha.”

Será que você vê essa posição como maldita? O goleiro é independente, mas também solitário, e as regras concorrem para limitar a cada dia sua atuação. Ele é, muitas vezes, o bode expiatório das partidas ruins.

Eu não encaro assim. Gosto tanto de ser goleiro que, se escolhesse jogar futebol novamente, iria mais uma vez para o gol. Para mim, ter trabalhado ali foi uma realização muito grande. Eu costumo dizer que o gol é um templo sagrado. Eu não quero que ninguém o viole, que ninguém o macule. Transformei o gol em um templo, ao qual me dedico inteiramente. Tanto é que tive muitas chances, na vida, de ser treinador, mas sempre escolhi treinar os goleiros. Quando eu jogava, o goleiro brasileiro tinha uma fama péssima. Como viajei muito, vi que os erros dos outros não eram maiores, mas iguais aos nossos. E eu vi que a imprensa buscava, erroneamente, desculpar as derrotas argumentando que o nível técnico dos goleiros havia caído muito.

Culpou-se muito o Moacir Barbosa pela derrota brasileira em 1950, mas, pelo que sei, você assumiu a defesa dele em diversas ocasiões, dizendo até que aquele goleiro era um ídolo seu.

É, seguramente, meu ídolo. Pode haver um pouco de racismo nessa crença de que o Barbosa fora o culpado por tudo. Criou-se uma história, no Brasil, que o goleiro preto, de cor, não teria vez. Há goleiros da raça com o mesmo nível que qualquer grande goleiro, mas, talvez infuenciadas pelo erro do Barbosa em 1950, as pessoas tenham feito essa associação. Eu adotei o Barbosa como ídolo por conta do que fizeram com ele, uma injustiça. Houve goleiros que eu vi jogar, e que foram tachados de melhores do mundo, como o Yashin… Na Copa do Mundo do Chile, em 1962, a última de que participou, dos quatro gols do time, ele falhou em três e continuou sendo idolatrado pela imprensa brasileira e por todos os brasileiros… E o Barbosa, que cometeu um único erro, em 1950  [no segundo gol uruguaio, aquele que deu a vitória por 2 a 1 e a Copa àquele país], foi tratado da maneira que a gente sabe. Isto me machucava interiormente. E, então, comecei a abraçar a causa dele. Era meu ídolo e meu amigo. Me aproximei dele quando vi essa injustiça. Nós conversamos. Ele me orientou bastante. Eu o vi jogar diversas vezes. Era muito tranquilo e muito correto. E batia na bola muito bem.

Tinha dignidade, não é?

Sim, e foi tudo isto que me fez trabalhar em cima da profissão. O Barbosa passava a imagem de tranquilidade, e eu, no fim, também fiquei conhecido por este tipo de conduta. Talvez isto tenha ocorrido por eu gostar de jogar no gol…

Como eu disse no início, muitos jogadores vão para o gol por uma coincidência qualquer, e têm uma carreira. Mas eu acho que quem tem a tendência para a posição, como eu e o Barbosa… Por ele ser daqui de São Paulo, eu o acompanhei e conheci bem sua história. Ele gostava de jogar no gol e se tornou o principal goleiro brasileiro. Mas o que aconteceu por conta de um erro?

Veja o Oliver Kahn, goleiro da Alemanha em 2002: cometeu uma falha na final e ainda assim foi eleito o melhor jogador da Copa do Mundo. Por que, então, o Barbosa teve de ser crucificado? Você lembra de uma declaração que ele deu? “A pena máxima para um crime no Brasil é 30 anos e estou sendo punido há 40.” Isto entristece quem joga no gol. A gente conhece as dificuldades, a gente sabe o que passa em treinamento, o que a gente procura transmitir.

Não é uma posição de muita responsabilidade, a do goleiro? Não é difícil optar por uma função tão solitária? Se o goleiro erra, é crucificado. Se acerta, praticou um milagre.

Eu não acho que a posição tenha todo esse peso. Quando a gente começa a jogar futebol, e escolhe onde jogar, é muito novo para pensar nisso. A gente vai sentir o peso quando começa a se tornar profissional, sobe na carreira e a cobrança passa a ser grande. Mas, da mesma forma que sentimos o peso, sentimos que somos figuras importantes. Você é o comandante lá atrás e tem de passar essa tranquilidade para o grupo. Quem tem esse dom, esse comando, não o comando de grito, mas de atitudes, de ação, de jogo, de autocontrole, exerce bem a posição.

Havia um time muito bom do Palmeiras em 1959. Jogamos juntos na defesa por seis anos e sabíamos o que cada um fazia. Quando eu entrava em campo, minha primeira atitude era conversar com quem jogava lá na frente. Dizia: “Se eu errar, não venha me bater nas costas. Isto me joga contra as feras, contra o público. Se você perder um gol lá na frente, eu não vou bater nas suas costas. Se eu errar, deixa que eu sei. Eu sei melhor do que ninguém.” Este tipo de confiança eu passava para o time.

Lá atrás, você é o último. Precisa ter orientação e orientar. O Brasil está cheio de goleiros com essa personalidade. Da minha época, veja o Gilmar. Foi meu colega. O Castilho, o Barbosa… Quando estava começando minha carreira no Renner, o Barbosa jogou com o Vasco contra o meu time, em Porto Alegre. Não fui escalado para o jogo, mas fiquei observando… Houve um jantar na Renner e nós conversamos. Me entusiasmei. Naquele dia ele se transformou em um grande ídolo para mim. Entendi que, no gol, temos de passar uma mensagem, um equilíbrio.

É preciso ser uma fortaleza…

Claro que é. Você tem a família, os amigos, os poucos que realmente o são, e isso ajuda a enfrentar certos momentos. Futebol é muito conhecido. As pessoas se aproximam da gente porque, por conta dele, temos muito nome. Mas, quando paramos, essas mesmas pessoas somem, ninguém telefona mais, e a gente vê que escolheu uma profissão muito ingrata. Não senti muito o dia seguinte àquele em que decidi parar, a primeira segunda-feira. Senti, mesmo, o domingo seguinte. Saí, peguei minha família, fui dar uma volta e liguei o rádio. Todos os meus amigos estavam lá, jogando futebol. Foi um baque muito grande. Durante a semana, eu trabalhava numa empresa de caça e pesca, mas só para passar o tempo. Tanto que, um ano e meio depois, voltei a trabalhar de novo no mundo do futebol.

Meu signo é sagitário. Segundo você lê, é um signo “de mala na mão”. Eu sou um “de mala na mão” porque gosto de viajar. Se for para viajar daqui do Parque Antártica para o centro de São Paulo de avião, eu vou. Quando eu comecei a jogar futebol, minha intenção era fazer um curso de piloto. Mas era janeiro e meu time, o Renner, me chamou para viajar. Foi indo, foi indo, e não deu mais. Quando estou preso… Não sei ficar preso. No entanto, para muitos jogadores, é um martírio pegar um avião. Não querem nem ver. Sou completamente diferente.

Hoje, quando estou quase encerrando a minha carreira, estou sem clube, tenho dificuldade para me encaixar… Mas naquela época eu era muito jovem e consegui um meio de voltar. Coloquei na cabeça que um dia iria treinar os goleiros, em vez de ser treinador. Minha idéia era reparar as injustiças todas que eu e meus colegas havíamos sofrido. Consegui e fiz escola. Hoje, estamos aí com goleiros de nível técnico apurado. Temos hoje dois no campeonato europeu, Doni e Dida, indicados a melhores jogadores. Antigamente, era uma heresia, um sacrilégio, pensar em um goleiro brasileiro jogando fora.

Como você viveu as crenças e superstições no futebol?

Eu me formei em Contabilidade no Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre. Tenho uma formação católica. Acredito em um deus, um ser mais alto. Peço proteção a ele e à Virgem Maria antes de entrar no jogo, e só. Mas, pense: se Deus e a Virgem ajudarem a todos, bá, tu não ganha, não é? Nenhum time sai vencedor.

Uma vez, em Porto Alegre, fomos jogar contra o Internacional, clube do povo. O jogo era domingo. No sábado, até filmaram: alguém pintou de vermelho umas cruzes com o nome de cada jogador do nosso time e fincou nas imediações do estádio. Mas nós fomos lá no dia seguinte, domingo, e vencemos. Foi a única vez, aliás, que o Renner ganhou o campeonato gaúcho.

Eu mantinha minha crença religiosa e nada me influenciava. Mas, num grupo de jogadores, cada um tem um santo, uma religião. Eu sempre respeitei aquilo em que cada um acreditava. Minhas preces, as que eu faço, são minhas. Não gosto muito de participar da reza do grupo, porque é automática. Participo para não ser contra. Hoje, depois que parei de jogar, observo que todos os jogadores, em todos os clubes, sempre fazem sua prece antes da partida. Os jogadores dão-se as mãos numa corrente, todos rezam juntos e um deles (cada dia um) dá uma palavra. Depois do jogo, antes de tomar banho, a mesma coisa: reúnem-se novamente no vestiário, rezam juntos, e o que dá a palavra diz o que sentiu.

Na minha época, existia o hábito de rezar, mas não como hoje, tão automático assim. Sempre fui muito recatado nas minhas coisas. Fazia minha reza pedindo proteção, para mim e para os outros, para ninguém se machucar. Quando um colega se machuca, tem problema, pára um tempo… Naquela época, não tivemos a ocasião de ficar milionários. Quem parou na minha época e não fez mais futebol, passou necessidade. Eu, felizmente, segui. Imaginou o Pelé jogando hoje? Não tinha dinheiro no mundo que pagasse.

Barbosa conta dos problemas políticos envolvidos nos jogos de 1950. Você assistiu a esse tipo de utilização política do futebol?

Eu ouvia o Barbosa falar isso sobre 1950. Também participei da preparação das copas do mundo de 1962 e 1966. Me diziam que o mundo da política estava lá, mas nós jogadores não tínhamos conhecimento dele.  Não chegou até mim, pelo menos; ninguém tentou fazer qualquer coisa comigo nesse sentido. 1950 deve ter servido de lição. Hoje, chamam um jogador para um comercial, mas isso é outra coisa.

No colégio marista, você tinha time? Participava de competições?

Os irmãos maristas gostam de futebol uma barbaridade. Então, eu jogava sempre nos times deles. No início do ano, quando fazíamos a matrícula, o irmão Gabriel já separava os melhores jogadores para o time da escola. Nas férias, os selecionados por ele jogavam o campeonato interno e, durante as aulas, o campeonato colegial, em que uma escola de Porto Alegre enfrentava outra. Era um campeonato maravilhoso, aquele, porque tinha rivalidade, como nos grandes times de futebol. Escolas como o Rosário e o Anchieta eram enormes. Ganhei dois ou três campeonatos pelo Rosário. Era uma festa quando vencíamos, uma gozação. Comecei a participar das competições colegiais aos 14 anos, quando iniciei minha carreira de juvenil pelo Renner. Nesta categoria, fiquei dois anos. Não precisei frequentar os aspirantes. Subi direto para o profissional do Renner em 1949, aos 16.

Quando eu passei a estudar Contabilidade, já era maior de idade. Me formei com 22 anos. Já tinha consciência maior do mundo do futebol. Todos sabiam que eu jogava. Havia quem jogasse no Grêmio, no Internacional, e estudasse também. Fiquei no Renner até 1958, desde 1947. Vim para o Palmeiras em agosto de 1958. Quando eu saí, o time do Renner fechou. Não sei se ele fechou porque eu saí, ou eu saí porque ele fechou… Brincadeira: fui eu que saí. E, naquele mesmo 58, o Renner encerrou suas atividades futebolísticas.

Em 1954, pelo Renner, ganhamos invictos os campeonatos municipal e estadual. Foi um acontecimento para um time pequeno, do porte de um Juventus. Em 1956, nós, jogadores gaúchos, fomos representar a seleção brasileira no México e ganhamos o Pan-Americano, com o Enio Andrade como técnico. Foi a primeira vez em que usei a camisa do Brasil.

Enquanto joguei no Renner, trabalhei na empresa, porque naquela época não se ganhava muito só com futebol. Eu trabalhava no setor de contabilidade, um período só, diariamente. Acordava às seis, entrava no escritório às sete e trabalhava até 11h30. Eu fazia trabalho de rua, porque, como já disse antes, nunca gostei de ficar preso. E à tarde éramos liberados para o treino. Às vésperas de um jogo, três dias antes, nosso treinador nos concentrava e nos tirava do trabalho. À noite, eu ia para a escola de contabilidade. Naquela época, eu parecia essa tua caneta aí, era magrinho…

Desde o início você quis ser jogador de futebol?

Sim, desde pequeno tinha a convicção. Eu era do tipo que gostava. Nunca fui um grande aluno na escola. Me formei e só. Futebol foi uma paixão muito grande para mim, e ainda é. Talvez só o Zagallo, com a minha idade, tenha a mesma longevidade no futebol, e o Evaristo de Macedo, que agora é treinador. Jogamos muito em campo, por muito tempo, o que nos dá uma agilidade maior.

O site oficial do CSA de Alagoas afirma que você teria se recusado a ficar no gol na hora da cobrança de pênalti contra a seleção alagoana em 1953, por acreditar que o juiz Adalberto Silva fora injusto ao apitar contra seu clube, o Renner, num jogo empatado em 2 a 2. Esta história existiu?

Não. Jamais tomaria uma atitude desta. Posso ter reclamado, não sei. Mas sair do gol? Se eu perdi a memória, não lembro… Ainda mais antigamente, quando havia mais respeito profissional do que hoje. Nós chegávamos a um diretor, a um presidente de clube, como quem chega a Deus. E as figuras éramos nós! Hoje há mais liberdade. O juiz, no meu tempo, era sempre respeitado, porque tinha de ser assim, de qualquer forma. Sempre acatei muito. Podia até conversar, e eu conversava com ele… Mas me rebelar? Primeiro, porque não adianta. Você, ao discutir com o juiz, está provocando sua ira, não está beneficiando em nada o próprio time. Você tem de ajudar o juiz. Nunca procurei imaginar que um juiz estivesse me prejudicando.

Quem levou você ao Palmeiras em 1958?

O Osvaldo Brandão. O Palmeiras precisava contratar um goleiro e o Enio Andrade, sendo meu conterrâneo, me indicou para o Brandão. Sou padrinho de casamento da filha do Enio. O Brandão já me conhecia, mas em Porto Alegre recebi esse reforço do Enio. Sair de Porto Alegre, menor naquela época, para vir a São Paulo… Eu tinha até experiência, fui campeão sul-americano, viajei, fiz jogos na Argentina e no Uruguai pelo Renner… Quando cheguei no Palmeiras, tinha 28 anos! Mas estranhei a cidade. Só que por pouco tempo. Hoje, meu problema é sair de São Paulo.

Naquela época, era difícil sair da minha casa, a não ser para viagens de competição. Eu já era casado, trouxe minha mulher logo em seguida. Meu filho, Renato Morais, hoje com 52 anos, veio comigo. Chegou a jogar futebol de salão no Palmeiras, no início no gol, depois na zaga, e jogava bem. Mas, interessado em economia, quis fazer carreira. O filho dele, meu neto Danny, joga no Internacional B, como zagueiro. O Danny faz educação física e a irmã dele, Suane, propaganda e marketing. Meu filho, incentivado por eles, decidiu completar o curso de economia.

Você sentiu muito a diferença entre os dois clubes quando chegou?

A diferença entre o Renner e o Palmeiras era a grandeza. No Renner, era tudo organizadinho, mas organização pequena. Torcedor para o time, devia haver uma meia dúzia. E o Palmeiras tinha aquela torcida. A diferença de estrutura entre os dois era espetacular. Era difícil jogar no gol do Palmeiras por causa do Oberdan. Não que ele fizesse qualquer coisa contra mim, tanto que sou amigo dele até hoje. Mas ele era um ídolo que poucos venceram. Quando eu entrei, havia um outro goleiro, o Aníbal, que se preocupava tanto com isso…. E eu dizia para ele: “Aníbal, o Oberdan é ídolo, vamos colher dele alguma coisa.” De fato, aprendi muito com ele. Tê-lo como inimigo não adiantava. Vir para o Palmeiras como goleiro era uma dificuldade por conta do Oberdan.

A torcida não me assustava. Me preocupava. Minha estréia aconteceu contra o Corinthians, justamente… Nesse dia, os alto-falantes do Pacaembu sofreram uma pane e eu entrei. Então, ninguém sabia que eu ia entrar, já que a imprensa não investigava tanta coisa como hoje. O pessoal sabia que eu era goleiro, mas nunca tinha me visto jogar. Quando entrei no campo, foi uma surpresa. Um jornalista da época, Ethel Rodrigues, que foi até juiz, ao me ver entrar fez uma pergunta para o rádio: “Valdir, me diga uma coisa. O que você acha da fogueira em que o seu Osvaldo Brandão está lhe colocando?” Fogueira no futebol quer dizer uma fria. E eu disse para ele: “Ethel, no futebol existe uma coisa: a oportunidade. Estou tendo a oportunidade de provar para o Palmeiras quem eu sou.” O Palmeiras ganhou de 2 a 1 e eu fui eleito um dos melhores em campo. Na saída, veio o Ethel de novo. E eu: “Ethel, tenho 28 anos, fui campeão pan-americano, campeão do Rio Grande do Sul, tenho experiência, embora não em São Paulo.” Esta vitória me ajudou muito. Se eu tivesse perdido o jogo, talvez nem estivesse mais aqui. Dei uma resposta logo para a torcida, justo numa partida contra o rival.

Como você se preparava para um time como o Santos da época?

Nós, que estamos no dia a dia do futebol, não temos essa preocupação tão grande que tem o jornalista, o torcedor, com um determinado  time. Se vivemos muito essa preocupação, nossa profissão não será boa. O time do Pelé era uma preocupação, sem dúvida, mas o Palmeiras da época rivalizava com o Santos. A diferença, e muito grande, estava no ataque santista. O Pelé desnivelava tudo. Nós nos preocupávamos, mas era uma preocupação normal.

Eu sempre achei assim: se eu enfrentar time pequeno ou grande, a minha responsabilidade vai ser a mesma. Tenho de defender as bolas, tenho de me portar com dignidade, tenho de passar uma mensagem. Para mim, tanto faz. Lógico que temos de ter cuidado com os grandes jogadores: se eu disser que não, vou estar mentindo. Mas a responsabilidade da gente é com o pequeno e o grande. Por isso eu digo que a coisa é diferente do que pensa um torcedor ou um jornalista, que fica fazendo sensacionalismo. Nós conversávamos, mas não muito, sobre o adversário.

O Pelé exigia cuidado especial, de uma marcação. O Garrincha era um fenômeno e você nunca sabia o que ele ia fazer. Eu tinha de me preocupar, no Santos, com Durval, Coutinho, Mengálvio, não só com o Pelé. O Pepe tinha um chute fortíssimo. Quando ele pegava a bola, você se preocupava. O Pelé não tinha um chute violento, mas a qualidade… Ele desequilibrava. Contudo, o Palmeiras tinha a defesa muito boa e nós nivelávamos.

O chute de efeito do brasileiro é diferente do europeu, como você disse uma vez. Ter tido adversários do quilate desses que você mencionou deve ter lhe fortalecido no gol.

Hoje, com essas bolas… Hoje, é tudo melhor: campo, bola, chuteira, camisa… O Marcos (goleiro do Palmeiras) me deu outro dia uma camisa que é como uma caneta, de tão leve, não transpira. Mas, naquela época, a manga da camisa caía pela mão… A preocupação com o chute sempre existiu. A preocupação individual existia nos casos de Pelé e Garrincha. Não tinha preparação para eles. No dia do jogo, minha preocupação era com todos.

Você, como goleiro, lembra-se das defesas decisivas?

Sim. Jogávamos duas, três vezes por ano contra o Santos, em dois campeonatos. Não me lembro de uma defesa, mas de uma jogada do Pelé. Lembro, no campo do Santos, garoando, de uma jogada iniciada por Pepe nas costas da linha do meio do campo. Ele chutou para o gol. Pensei: se a bola vem em cima de mim, dou uma amortecida nela (a gente não usava luva na época). Para você ver a qualidade e a força que ele imprimia: nesse meio-tempo, quando o Pepe pegava a bola, Pelé e Coutinho entravam para a área. A bola chegou no Valdemar Carabina. E então o Pelé entrou entre ele e o Aldemar, saltou, dominou no peito e a bola não caiu no chão. Ele girou, bateu na direção do gol e eu fiquei parado. A bola bateu na trave e saiu. Uma jogada magistral. Mas era preciso ser vista para que se pudesse ter a dimensão de sua beleza. Eu tinha pensado, antes, em dominar a bola na mão. Mas o Pelé dominou no peito como se usasse a mão. Eu não tive tempo de reação, mas o Pelé teve. E então apareceu o vento, só que, felizmente… Meu santo foi mais forte que o dele, Pelé.

Dava para se sentir estável num clube na época? Ou você se via constantemente ameaçado pela possível chegada de um novo jogador para sua posição?

A pressão era igual. E, naquela época, havia um campeonato de aspirantes, eram todos muito bons, jogavam tão bem quanto nós. A gente procurava nunca sair do time, porque, depois que uma chance era dada a eles, a gente podia perder o lugar. Você perdia a oportunidade de gratificações, de fazer um bom contrato, uma série de coisas. A rivalidade, a disputa eram as mesmas de hoje. Mas a gente conservava mais a posição. Tanto que ficamos seis anos com a mesma defesa no Palmeiras.

Minha carreira foi tão boa, tão bonita… Mas houve um ano em que perdi a posição para o Picasso. Era 1962. Disputei o primeiro turno e não havia férias na época. Disputava o campeonato até dezembro e já saía para jogar na América. Ficamos dois meses viajando. Eu estava três ou quatro anos sem sair uma partida. Estava esgotado, precisava de um descanso. O técnico era o Geninho, Eugênio Bahiense. Joguei a última partida do turno, nós perdemos. Daí, no dia seguinte, tivemos o treino. Não na segunda, porque era dia do boleiro e não havia treino. Na terça, ele me chamou.

O Geninho era muito amigo meu. Dar má notícia para o amigo é chato… “Valdir, preciso falar com você”, ele falou. Já senti. Eu estava mal, mesmo. “Valdir, vou tirar você do time, estou achando que você não está bem.” Fiquei sério, eu sou meio sério. Perguntei: “É isso que você quer?” E ele: “É isso.” E eu dei a mão para ele, dizendo: “Muito obrigado.” Ele até pensou que eu estava ironizando. Mas não estava, não. “Eu queria pedir isso para o sr., mas fiquei com medo que o sr. me interpretasse mal, que me imaginasse fugindo da responsabilidade. Mas eu estou mal, cansado, minha cabeça precisa parar.”

Foi então que o Geninho disse: “Vou lhe dar 15 dias para viajar.” Mas eu retruquei: “Não, senhor! Se eu fico 15 dias fora, não volto mais, e eu quero voltar para a minha posição. Só que eu não posso parar de treinar… “ Ele pensou mais e disse assim: “Tá bom, mas você não vai ficar no banco.” E eu discordei: “Quero ficar no banco! Não quero é jogar.” O Geninho estava ficando preocupado: “Mas não pode, você é jogador de seleção!” Minha insistência foi maior: “O Picasso está na reserva e nunca reclamou… Por que eu não posso ficar?” Fiquei no banco. O Picasso jogou como titular o segundo turno, foi campeão, o melhor goleiro do campeonato, e com dez anos de idade a menos do que eu… Pensei: tô fora.

Picasso era muito amigo meu. Eu morava em Porto Alegre, ele em Gramado. Fomos os dois para Porto Alegre de carro, um DKW. A gente chamava ele de Padre Inácio porque ele estudou pra padre. “Padre Inácio”, disse a ele, “você vai engordar e eu vou te tirar o lugar”. O Picasso engordava até respirando. Fomos juntos viajar. Ficamos três dias no Sul e depois voltamos. Quando voltamos, ele já estava um pouquinho gordo. Dali partimos para a América. Jogamos três jogos no Peru. O treinador já era o Perillo. Nós perdemos a primeira partida por 2 a 0, a segunda por 2 a 1… O Picasso foi mal nos três primeiros jogos. No quarto, eu entrei. E não saí mais.

Como você trabalhava com o sonho da seleção?

Todo jogador tem o mesmo sonho de jogar pela seleção brasileira. Lá você ganha os contratos melhores, tem a projeção, é conhecido… A vaidade funciona. Teu interior pede. Fui convocado mas não viajei para o Chile em 1962. Iam só dois goleiros e me cortaram. Foram o Gilmar e o Castilho, e achei muito justo. Se fossem três os convocados, não havia dúvida nenhuma, eu iria. Gilmar era titular com todo mérito. Quando fui dispensado, a imprensa veio em cima de mim para fazer uma onda, porque eu estava muito bem também. Mas eu disse a eles: “Tem uma coisa que eu acho. Eu me sinto honrado de ter sido convocado. Ser convocado já é uma honra. Agora, ser dispensado é uma decisão do departamento técnico. Eu não discuto.” Já cortei o papo deles _ nunca gostei desse tipo de polêmica. Fui a uma CopaRoca depois, na Argentina. Em 1966, me convocaram de novo para a Copa do Mundo e me dispensaram na Suécia, depois de dois, três meses treinando, que era o tempo destinado à preparação da época. Em 66, a imprensa e eu sentíamos que eu tinha de ter ido. Mas acabei sendo cortado… Dá uma tristeza na gente ser cortado assim, mas a gente passa por isso, fica a história…

Você continuou no Palmeiras até…

… agosto de 68. Parei quando o contrato acabou, mas o campeonato terminava em dezembro. Digo que não tenho superstição (o Zagallo é que tem), mas o mês de agosto… Todas as desgraças que aconteceram comigo aconteceram em agosto, até a minha dispensa do Palmeiras. Mas eu não me preocupo com isso, não. Em 69, o Brandão me convidou para trabalhar com ele, e eu voltei para o clube. Pedi para o sr. Osvaldo, quando era auxiliar técnico dele: “Eu quero fazer uma coisa que é um sonho meu. Vejo muita injustiça praticada contra os goleiros brasileiros, muita coisa que não é verdadeira, então eu gostaria de fazer um trabalho de treinamento deles.” Ele disse que tudo bem, embora não houvesse, naquela época, treinamento desse tipo. Treinador de goleiro é uma função bem detalhada, específica, que não existia antes de mim. Fui um precursor mundial, acho. Aquilo que aprendi, comecei a passar.

E o que você passava a eles?

O treinamento que eu criei não inclui só o chute, o treino, propriamente. O treinamento precisa ter conversa, você precisa adquirir a confiança do jogador. Eles me contavam coisas da vida pessoal… que eu não contava a ninguém, nem vou contar. Eles chegavam com a cara aborrecida, então eu perguntava: “O que houve?” E eles: “Aconteceu um problema aí…” Eu trazia eles para mim. Eram meus filhos, alguns, quase netos. Eram da família. Por isso eu lhe digo que fico tão ofendido quando alguém diz “frango” para uma falha deles. Me sinto agredido, como um pai.

Rogério Ceni diz que você forma homens.

Sempre houve uma confiança mútua nas minhas relações com os goleiros. Quando eles cometiam um erro, eu conversava, e de um jeito diferente com cada um. Eu acho que o lado emocional é mais importante até do que o técnico num treinamento. O goleiro sabe pegar a bola. Você treina a elasticidade, e ele tem elasticidade. Ele tem tudo. Eu tive essa facilidade de descobrir a importância do lado emocional. Não estou fazendo elogio a mim, mas essa qualidade eu tive.

Há algum sentido em afirmar que o brasileiro não tem, muitas vezes, a frieza exigida para a função?

Não há. Há, no brasileiro, as diferenças de temperamento. O Ronaldo, do Corinthians, por exemplo, eu gostava dele, apesar de explosivo. Mas todos eles, os bons, são equilibrados: Rogério Ceni, Veloso, o Zetti, o Marcos… O Marcos é aquele jeitão dele, meio interiorano, uma alma muito boa, e passa o equilíbrio necessário ao time, mesmo diante dos problemas físicos que ele enfrenta.

Quando eu saí do Palmeiras, veio um jornalista me perguntar como eu estava me sentindo. Eu disse a ele: “Ué, na vida a gente sobe e desce. Eu estou descendo na minha vida profissional.” E é mesmo. Você tem um período. Um período bom, um período ruim. O importante é que você consiga, no período ruim, não se entregar. Porque você volta, não é?

Você vê sua importância maior para o futebol como jogador ou treinador de goleiros? Você tem idéia de como a história vai reconhecê-lo?

Tenho. E eu, praticamente, ainda não parei. Estou fora há dois meses desde que deixei o Santo André, mas ainda trabalho com futebol. Sinto que me reconhecem quando vejo a receptividade que tenho em qualquer lugar. O carinho é muito grande, sempre falam muito bem do meu trabalho e da minha pessoa. No futebol, sei que sou reconhecido. Em São Paulo, onde atuei mais, e no Brasil. Especialmente no Palmeiras… Vou deixar minha marca na história.

Você teve duas áreas de atuação, como goleiro e treinador. Tem idéia do que lhe deu mais destaque? Poucos chegam a exercer mais de uma função no futebol.

É verdade. Quando comecei a treinar com o Osvaldo Brandão, me criticavam uma barbaridade. “Para que precisa de treinador de goleiros? Vai gastar dinheiro!” Mas o Brandão nem ligava. Além de meu amigo, era uma personalidade marcante. O tempo foi passando e nosso nível técnico realmente melhorou. Lá fora, nem em nenhum outro lugar, havia um treino específico para goleiros. Falavam da escola argentina, da uruguaia… E a imprensa, e o mundo  brasileiro, diziam que eles eram melhores do que nós. Eu jogava quase todo mês pela América do Sul e não via isso. Rodolfo Rodriguez? Teve uma carreira, mas não foi muito grande. Quem conseguiu uma carreira bonita aqui foi o Poy. Muitos outros vieram para cá e fizeram nome por terem a fama de serem melhores do que nós.

Diz-se que o jogador que virou treinador, quando sonha, vê-se jogando, não agindo como técnico de um time. Como é para você?

Para mim, também. Nada é tão importante como jogar. Eu não criei meus filhos. Quem criou foi minha mulher, e graças a deus muito bem, porque eu viajei muito. Quando conheci meu primeiro filho e minha filha, eles tinham três meses. Eu não vi nada. Minha mulher estava lá para cuidar, felizmente. Hoje, não sei se está certo ou errado, isso mudou. Mas se a mulher não acompanhar nossa vida… Nossa vida é de cigano, de nômade. Se ela não acompanhar, não temos família.

Por quanto tempo você ficou com o Brandão?

O Brandão foi para a seleção, mas o dispensaram para dar lugar ao Claudio Coutinho, em 1978. Eu deveria ter ido com Brandão, mas, por esta circunstância, não fui. Fiquei treinando no Palmeiras até a década de 80, depois fui para o Grêmio por um ano, onde treinei o Leão. Voltei ao Grêmio mais uma vez nos anos 80. Depois fui para o São Paulo, a convite do Telê Santana, e para a Arábia Saudita, que adorei… Minha mulher só ficou um mês lá, claro, porque a mulher lá não dirige, não vai a restaurante sozinha… Mesmo as nossas. E eu tinha de viajar muito. Fiquei lá por dois anos e, depois de três, voltei novamente. Eu voltaria a morar lá. A vida era muito boa.

Como foi trabalhar no São Paulo?

O São Paulo foi uma das grandes partes da minha vida profissional. Lá, trabalhei com o Poy, com o Cilinho, com o Telê Santana. Quem me levou ao São Paulo foi o Poy. Ele ficou doente, o Cilinho veio no lugar, fiquei dois meses com ele e fui para a Arábia Saudita. Quando voltei, fui auxiliar técnico do Telê Santana, mas, como sempre, treinando os goleiros.

Como era trabalhar com o Telê?

Ele era um amigo-irmão. Temos mais ou menos o mesmo pensamento em relação ao trabalho, à seriedade do trabalho. Nós nos jogamos de corpo e alma para a profissão. Telê é um obcecado pelo futebol. Cuidava muito da vida do jogador, também. Ele, como patrão, era muito bacana.

Vocês atuaram juntos nas copas do mundo de 1982 e 1986. Como isto se deu?

Em 1982, foi a primeira vez que trabalhei para a seleção como auxiliar técnico. Depois, atuei em1986 e, com o Vanderlei Luxemburgo, trabalhei na preparação para a Olimpíada de Sidney, em 2000, embora somente nos treinos daqui, porque eu atuava também no Corinthians e não poderia abandonar o clube durante a temporada da seleção na Austrália. Ganhamos, com ele, a Copa América no Paraguai.

E com Telê em 1982, havia muita pressão?

As pressões eram maiores na seleção. O trabalho, para nós, era o mesmo, mas vinha envolvido em muitas outras coisas. Trabalhar na seleção envolve o país, o mundo. O Brasil é o mundo. Você fala de futebol e futebol é Brasil. Não tem como. O mundo inteiro reverencia. E aquela seleção de 1982 foi uma… Só perdeu, foi a única coisa que deu errado. No dia em que perdemos para a Itália, eu ouvia no vestiário uma mosca bater as asas, de tão calados que estávamos. Fomos eu, o Telê e o doutor Ney até a concentração, que era distante do estádio, tomar uma cervejinha, mas não bebemos. Nem conseguimos falar um com o outro. Deu vontade de sumir, o chão saiu fora. Se eu não gostasse, se eu não precisasse trabalhar, eu teria parado ali. Mas, como a seleção foi muito respeitada, muito bem jogada, nós não ficamos desacreditados depois, tanto que o Telê foi chamado de novo para o comando em 1986. Seguimos a vida com respeito, porque fizemos um trabalho maravilhoso. Só que… É aquela coisa. A gente reza para Deus. Mas Deus não se mete em futebol. Deus não vem para castigar ninguém. Vai dar para você e para mim, como é que faz? Naquele dia, era o dia da Itália, e o Brasil não jogou mal. No finalzinho, o Oscar deu uma cabeçada, você lembra disso? E o goleiro pegou quase com uma só mão… Nós tivemos duas vezes o empate, o empate, o empate, o empate… Só precisávamos do empate! Tínhamos tudo para ganhar, mas perdemos. Aquele dia foi triste.

Chegou a hora do jogo contra a Itália e só pudemos entrar no estádio, eu e o Vavá (o Vavá era auxiliar técnico do Telê), depois que o aquecimento dos jogadores foi feito no vestiário. E, quando chegamos para sentar, não havia mais lugar. Os espanhóis torciam para nós, contra a Itália. Quando nós perdemos, descemos eu e o Vavá para o vestiário, e ouvimos os espanhóis dizendo: “Si acabó el fútbol”. Os espanhóis eram apaixonados pelo Brasil e pela seleção. Também vimos a tristeza do povo na estrada, durante o caminho de volta para a concentração. A coisa foi impressionante. Pouca gente testemunhou. E aconteceu o mesmo no México, em 1986, depois da derrota: o povo via nosso ônibus, parava na frente dele e aplaudia.

Em 1986, como foi a reação de vocês? A gente aprende a perder?

Não, a tristeza é a mesma… Só que, em 1982, nós sabíamos que não havia ninguém melhor do que nós. Em 1986, nós tínhamos jogadores um pouco mais velhos, mas grandes jogadores… Você vê que nós perdemos pênalti contra a França. Todo mundo dizia: “Como o Zico foi perder o pênalti?” Mas o Zico não batia pênalti! O Sócrates perdeu, o Platini perdeu, o Júlio César perdeu… Nos treinamentos, eu e o Telê dizíamos para o Júlio César, que era zagueiro: “Bá, pára de jogar que tu vai machucar a mão de alguém!” Isto porque ele batia bem e forte. Na hora do jogo, ele bateu forte, mas na trave, que deve estar tremendo até hoje. E ele não perdia um pênalti nos treinos.

A tristeza, então, foi a mesma, mas um pouco menor que em 1982, por conta dessa diferença no nível técnico. Em 1986, quando me reuni com o Telê depois do jogo perdido, na concentração, nós pelo menos tomamos a cervejinha. Não com muita satisfação, mas tomamos. Em 1982, nós também tomamos, mas depois, não no dia.

A impressão do torcedor depois dessas duas derrotas talvez fosse a de que dificilmente o Brasil voltaria a ganhar, já que com suas melhores formações não havia conseguido ser campeão.

Mas nós, na comissão técnica, não pensamos assim, não. O choque em 1982 foi que tínhamos o mundo à nossa frente. Em 1986, era o futebol brasileiro, claro, mas ninguém dizia por unanimidade que ia ser campeão, como em 1982. Nós conversamos muito, embora o Telê não fosse de conversar com os de fora. Quem jogava com ele, quem estava com ele no grupo, sim, podia saber o que ele pensava.

E o que Telê pensava sobre 1982?

Ele… Nós não fizemos nada de errado. O Jô Soares tinha aquele personagem que dizia: “Põe ponta, Telê”, mas… Todo mundo sabe que o Batista tinha se machucado contra a Argentina e não estava nem no banco. Nós, que vivemos o dia a dia, soubemos que não era verdade o que diziam, que foi uma fatalidade… Conversávamos, as coisas brotavam… Trabalhamos certo. Alguma coisa deu errado, talvez, mas não sabemos o quê.

No São Paulo, depois dessas duas derrotas pela seleção, vocês dois puderam mostrar a grandeza do trabalho que vinham fazendo.

Realmente foi um trabalho maravilhoso. Eu há havia trabalhado com o Telê antes, no Palmeiras. Quando fui convocado para 1982, era naquele clube que estávamos, porque o treinador, na época, não era exclusivo da CBD.

Na preparação para o campeonato mundial que o São Paulo viria a ganhar, vocês sentiram que estavam amadurecidos pelos episódios na seleção?

Nosso tempo no futebol _ e o Telê tem um ano de idade a mais do que eu _ fez muita diferença. Por conta dele, soubemos como tratar esse tipo de dificuldade. O futebol não depende só do seu trabalho, depende do grupo, de como ele está naquele momento. Mas é claro que, por onde passamos, fizemos um bom trabalho.

A preleção do Telê era de quinze minutos, não era muito, não. Punha um chiclezinho na boca, ou então um palitinho, e ia falando… Mas ele treinava muito. Aquilo que ele queria que fizesse no jogo, ele fazia no treino. Eu era observador dos jogos, na época, e viajava para tudo que é canto para ver os outros times. Quando eu voltava, sabia como ele gostava da coisa, então preparava um relatório até muito bonito. Eu passava para ele característica de jogador, e então ele ia treinar. No dia da preleção, ele nunca elogiou um time adversário. Ele elogiava a equipe dele. Nunca ouvi o Telê dizer: “Olha, cuidado com fulano, com sicrano…” Não. Ele dava uma força tão grande para a equipe dele, passava tanta confiança! Há muitos treinadores que fazem isso também, mas o Telê… Era um tipo diferente. Ele era chato, ranzinza. Eu até dizia: “Quando chegar na sua idade, vou ser como você…”

A gente saía muito em São Paulo para bater papo, tomar um chopinho, comer uma carninha ou um pastel… Aonde tivesse pastel, ele, mineiro, ia, podia ser pastel gelado, pastel frio… No futebol, não é reunião que funciona, é bater papo. Você toma um chopinho a mais e tem mais coragem de falar… Nem sempre isso é necessário, claro. Mas o bar é muito importante para o futebol. Não que se deva ficar por lá…

É importante saber conversar.

O Telê também sabia. Ele falava para os jogadores: “Vocês um dia vão agradecer, viu?” E isto acontece até hoje. “Que pena que não trabalhei mais tempo com ele”, dizem esses jogadores. Quando eu percebia que alguma orientação do Telê não era bem recebida, eu chegava para o jogador e dizia: “Se você vem chamar a atenção do seu filho, se o repreende, se o ensina, por que é? É porque você gosta do seu filho. Pois se o Telê está lhe chamando a atenção, se está lhe cobrando, é porque ele quer que você suba, ele quer que você melhore, ele quer que seu time ganhe.”

O Telê cobrava e se preocupava com a vida deles. Não entrava na intimidade, mas, com ele, tinha horário para chegar, ele educava. Tem muito treinador sem essa capacidade, embora, hoje, isto esteja melhor. Não muito, muito, mas está…

E o Luxemburgo, como é a preleção dele?

Ah, o Vanderlei é diferente. Ele fala bem mais. Não chega a falar uma hora, mas fala. Usa o projetor, que no tempo do Telê não existia (e eu não sou contra, sou a favor desse modernismo). O Vanderlei projeta o campo de futebol, os jogadores se mexendo, como se estivéssemos diante de um jogo. É muito bom de preleção, como o Parreira também é. O Parreira tem as convicções dele, é criticado por isso, mas ele está certo. É mais pausado que o Vanderlei nessas horas. Nas preleções do Vanderlei, alguém faz uma pergunta e ele já bate com a resposta, ele tem uma dinâmica. Fala do adversário na preleção, ao contrário do Telê, que só falava do adversário no treino. Na hora da preleção, o Telê achava que precisava do calor do seu jogador, e não dava moral para o time adversário. O time dele é que era melhor: ele passava a imagem de confiança para quem ia jogar.

Os estilos são diferentes, mas o efeito das preleções era igual nos dois casos, do Telê e do Vanderlei. Durante o treinamento, a cobrança do Telê era um pouco maior. Fazíamos o treino pela manhã e, se não tivesse ficado bom, treinávamos à tarde. O sujeito, então, era obrigado a fazer um treino bom de manhã… Se você me perguntar quem foi o melhor treinador com quem trabalhei, eu digo: não tem. Aprendi muito com todos eles.

E você, como treinador? Por que não seguiu esse caminho?

Substituí o Mário Travaglini por uns dois meses no São Paulo quando ele adoeceu. Fiquei doze partidas como treinador. E quando saí do Palmeiras, aos 40 anos, fui ser o treinador do Juventude de Caxias. Trabalhei lá uns seis meses e saí para ser auxiliar no Palmeiras. Não sei se eu empaquei. Quis treinar goleiro… Mas eu tenho condição de pegar uma equipe e treinar.

Às vezes, embora tenha domínio técnico, o profissional…

… não sabe passar a mensagem…

… ou tem outro perfil, não sabe se relacionar com a diretoria do clube, por exemplo.

Olha, um treinador não pode se preocupar com este detalhe. Senão, não trabalha. O treinador agora é a majestade, o papa do futebol brasileiro. O que ele falar está falado, até porque a responsabilidade sobre o time é dele. O Leão, o Parreira, o próprio Zagallo, trabalham do seu jeito. Mas eu não sei se teria o perfil para ser treinador.

Talvez tivesse, por esta característica de saber conversar com o jogador.

Eu teria condição, mas não quis fazer. O que eu gosto muito é de uma conversa como a que estamos tendo agora, ou de pegar um pequeno grupo… Goleiros, eu pegava uns quatro e ficava conversando… um dia inteiro. Para um grupo completo, talvez eu não conseguisse passar uma mensagem. Quero dizer: eu trabalhei como treinador, passei mensagem e talvez na seqüência eu aprendesse mais. Mas saí da condição de jogador no Palmeiras diretamente para a de treinador do Juventude, um caminho muito curto.

O goleiro teria mais facilidade para se tornar um treinador, por dispor de uma visão total do jogo?

Não acho. Há grandes treinadores que foram goleiros, como o Geninho, o Leão, o Poy. O goleiro tem é o comando, obrigatoriamente. Ele tem de ser ouvido. Mas isto não significa que ele será necessariamente o melhor treinador.

Me conte o episódio em que você ficou  sozinho quatro dias com o Edmundo, em Quito, durante a Taça Libertadores da América de 1995.

Quem vê o Edmundo no campo, o tipo dele, não tem a noção exata do que é a personalidade, o coração daquele moço. Eu tive prova disso. A gente foi a Quito, no Equador, jogar pelo Palmeiras [contra o El Nacional] na Libertadores da América. O técnico era o Valdir Espinosa. Na Libertadores, pelo menos no meu tempo, o repórter não podia entrar em campo com a câmera. Como a televisão do Equador é dona do Equador, um repórter entrou depois de o Edmundo ter perdido um pênalti no primeiro tempo. O repórter entrou com um microfone para entrevistá-lo e, é lógico… ele afastou o microfone com o gesto, e o microfone caiu no chão. O repórter disse que ele chutou o microfone. Eu estava perto, no campo, e não vi.

Terminou o jogo [o Palmeiras perdeu por 1 a 0], fomos embora para o hotel. No outro dia de manhã, umas 11 horas, íamos voltar para São Paulo quando chegou um oficial de justiça com uma intimação. Só eu estava no hotel. O oficial perguntou: “Quem é o responsável pela delegação?” E eu disse: “No momento sou eu, mas estão aqui o presidente, o vice-presidente…” O oficial informou: “Estou aqui com uma intimação para levar o Edmundo preso.” E eu disse: “Quando o presidente chegar, o senhor fala com ele.” Neste meio tempo, chega o advogado do hotel, informa-se sobre o que passa e diz para o oficial: “Daqui do hotel você não tira ele.”

O Edmundo então ficou esperando no hotel por quatro dias. Não podia sair do quarto. A delegação foi embora e eu fiquei com eles, já que o diretor do clube tinha outros compromissos. O Edmundo almoçava, jantava no quarto, e nós batíamos papo. Ele começou a me contar a vida dele, o que ele passou de problema… O embaixador do Brasil em Quito ligava para mim a toda hora e me dizia: “Não deixa ele dar entrevista.” Depois do quarto dia, tivemos autorização para sair e eu decidi deixá-lo falar, com a autorização do embaixador. Peguei um chefe da imprensa e disse: “Eu e algum de vocês vamos determinar o que vai acontecer aqui. Quando fizer pergunta, faça sem comprometer. Porque, se começar a fazer pergunta, ele vai responder.” Cada jornalista fez duas questões. Trabalhei com a imprensa muito bem, deu tudo certo. Chegamos ao aeroporto de Quito e todo mundo, todos os equatorianos, até os policiais, queriam um autógrafo do Edmundo. No aeroporto de São Paulo, a imprensa se reuniu para ouvir o que acontecera. O Edmundo quis que eu ficasse ao lado dele, mas eu disse: “Isso agora é com você, eu vou embora.”

Foi um momento bonito para mim. Bonito porque ele me conheceu, e eu o conheci também. O Edmundo me contou por exemplo que, na época de juvenil no Vasco, não tinha dinheiro para a condução e pensou em largar o futebol. Mas então teve a idéia de, na companhia de um amigo, vender cerveja na praia para financiar o transporte. Gostei muito dele depois de tantas histórias. Bom, mas um dia estava eu no Maracanã, pelo Palmeiras, quando entrou o Edmundo em campo, pelo Flamengo. Na hora de tirar a foto, ele ficou me olhando. Quando terminou, correu direto para mim. Me abraçou. A imprensa veio, lógico, para ver o que estava acontecendo. E o Edmundo disse para eles: “Este foi o maior homem que eu conheci na minha vida.” Terminou o jogo e ele me deu a camisa dele. O lado humano dele é muito bom. E talvez tenha mais cabeça agora.

O Rogério Ceni disse de você: “Ele foi fundamental para a história do clube e para a formação de homens e pessoas que jogaram aqui.”

Conheci o Rogério Ceni na sua época de juvenil. Ele nunca tinha chance no time titular, porque havia o Zetti na frente dele, o Marcos Monechini e o Alexandre Crioulinho, que depois morreu num acidente de automóvel quando vinha de uma ascensão maravilhosa. O Rogério era júnior e, um dia, chegou para o diretor do clube e disse que ia parar, já que não tinha uma chance entre os titulares. E o diretor falou: “Vai conversar com o Valdir.” Ele veio. Comecei a treiná-lo, já que eu não o conhecia, não tinha como fazer isso na equipe dos juniores. Nesse meio tempo, o Alexandre faleceu e o Rogério ficou com a gente em razão da qualidade, o mesmo que acontecera certa vez com o Ronaldo. O Rogério é uma cabeça boa. Um moço que vai fazer uma carreira bonita fora do futebol também.

O Ceni  bate bem as faltas e eu imagino que outros goleiros também o façam. Então por que não há espaço para que se aperfeiçoem nessa direção?

Esta é uma coisa que aprendi com quem? Com o Moacir Barbosa. Ele era perfeito na hora de bater a bola. Eu vi que o chute dele era localizado, era na verdade um lançamento. Hoje em dia, grande parte dos goleiros pega a bola e dá chute para cima. Com o Zetti no São Paulo, fizemos sete ou oito gols a partir de lançamentos dele. Essas jogadas são treinadas. Os laterais saem. Ou o goleiro joga com eles ou dá um lançamento com objetivo. Chute para frente, não. Isto só acontece quando você quer fazer um pouco mais de tempo. E eu sou contra a cera. Não aceito goleiro caindo no chão com esse objetivo.

Você veja uma coisa: se o goleiro está com a bola na mão, o que acontece? O adversário está tocando. Automaticamente, a defesa está desguarnecida, pelo menos teoricamente. A chance do contrataque é muito grande se você der o chute para cima. O Rogério aprendeu a bater a bola comigo, e o Zetti também.

Você batia falta, como faz o Rogério Ceni?

Não. E o Rogério, comigo, nunca bateu falta. Começou a bater depois, quando eu saí. Não é que eu seja contra isso. Mas, se você tiver grandes cobradores na equipe, por que tirar o goleiro da sua função? Só que, hoje, o Rogério tem de bater, porque é o melhor do time. O Rogério é uma figuraça, um tipo diferente. Tinha o Chilavert, do Paraguai, que era mais jogador do que goleiro. O Rogério, não: é um grande goleiro e um grande chutador de falta. Todos os goleiros que passaram por mim e venceram tiveram uma qualidade: o equilíbrio. Acho que minha concepção saiu vitoriosa, no fim. O gol é uma posição muito séria.

Há alguns atributos necessários para exercer a função. Hoje em dia, os de estatura não muito alta vêm sendo excluídos. Quanto você mede, Valdir?

Hoje em dia, estou encolhendo… Mas tinha 1m75 quando jogava. Naquela época, eu guardei um álbum de figurinhas com 40 times de seleção. Apenas dois dos goleiros tinham 1m86 ou mais. Cinco tinham 1m80. O resto era baixinho, 1m70. Era uma conduta da época. O tipo de posicionamento do goleiro era diferente em função do número de jogadores presentes na área. Hoje, você bate um escanteio, uma falta, e está todo mundo lá, com a exceção do outro goleiro, e às vezes até ele… Então, dificulta para o goleiro. Não tem área para você correr, caminhar. Naquela época, era mais fácil sair do gol do que hoje. Hoje, o escanteio é batido no gol. Antigamente, era levantado. Vinha da lateral, levantava a bola e dava tempo para a gente sair.

A altura se tornou mesmo um requisito?

Sim, mas veja outra coisa. Hoje, os goleiros grandes têm mais agilidade que os de antigamente. Vou lhe falar por quê: porque não havia treinamento específico de goleiros.

O sujeito crescia sem base. Hoje, uma criança de sete anos que queira ir para o gol já tem alguém para orientá-la. O jogador vai crescendo com habilidade, com noção. O importante no treinamento de goleiro é a categoria de base. Daí é que você vai formando os atletas. Veja a agilidade que tem o Dida: ele pega mais bola embaixo do que em cima. Antes, não, os goleiros altos tinham dificuldade, porque inexistia treinamento especializado. Optei por fazer isso porque via, desde 1947, portanto há 48 anos, que esse trabalho era necessário. Já vi tudo, ou quase tudo, no futebol.

Me fale do tempo dentro do jogo. Como você acha que o jogador e o treinador o encaram? Essa ideia do tempo é trabalhada em treino?

O tempo no jogo é muito importante. Não preocupa, mas faz com que você tenha cuidado. Se você está ganhando o jogo, e o jogo está terminando, você tem de estar sempre atento ao tempo. Sou contra a cera, como lhe disse, contra a idéia de o goleiro segurar a bola, rolar, se enterrar em campo… Sou contra essa simulação. Falo isso para meus goleiros: “Tem tanta maneira de você fazer tempo!” Qual é a melhor maneira de fazer tempo? Pegou a bola, faça um lançamento: você está ganhando tempo e não está perdendo a credibilidade. O goleiro que simula muito vai ser sempre tachado como aquele que faz cera no jogo.

O tempo para nós, no campo, tem diversos aspectos. Começando o jogo, aos dez minutos, se por acaso você já está perdendo de dois, três a zero… Uma vez, nos anos 60, veio o príncipe da Inglaterra, Philip, marido da rainha, ver o Santos jogar contra nós do Palmeiras. Aos quinze minutos, já estávamos perdendo de três a zero. Como eu estava no gol, pensei: “Meu Deus do céu, hoje vou pagar meus pecados.” E então fizemos 3 a 1, 3 a 2 e o Santos fez 4 a 2. O time do Palmeiras era bom, mas mesmo assim… Tínhamos jogado no dia anterior contra o Botafogo de Garrincha. O Garrincha mudou dois laterais nossos no jogo, um amistoso.  Jogamos à noite no Rio e fomos de ônibus para São Paulo, para enfrentar no dia seguinte, um domingo chuvoso, o Santos de Pelé, que estava descansado havia uma semana.  Nem vi o príncipe, depois. Mas já tinha visto a rainha lá na Inglaterra, com a seleção brasileira…

O tempo no futebol nos deixa sempre preocupados. Quem falar que não tem preocupação com ele é mentiroso. Você tem de fazer o máximo. Fazer o tempo, isto é: reter a bola na hora certa, dar o chute mais longo, uma série de coisas. Fazer o tempo é administrar. Na minha época, era possível atrasar a bola para o goleiro. Então, eu podia ficar com a bola o tempo que eu quisesse, porque era permitido. Hoje, quando isto não é mais possível, entra o treinamento para fazer o tempo render.

O que é o futebol para você? Você consegue defini-lo?

Futebol é o meu objetivo, a minha vida, o que a realiza. Ainda é uma expectativa para mim, com seus limites.

 

 

 

 

HISTÓRICO FUTEBOLÍSTICO

Valdir Joaquim de Morais começou jogando futebol em campos de várzea do bairro Floresta, de Porto Alegre, onde nasceu, em 1931. Pelo Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário, onde cursou o ensino fundamental e médio, participou de campeonatos internos e intercolegiais. Iniciou a carreira de futebol como juvenil no time Renner, de Porto Alegre, em 1946, aos 14 anos. Em 1949, sem passar pela etapa de aspirantes, foi chamado a defender o time dos profissionais. Pelo Renner, onde permaneceu até 1958, ganhou os campeonatos municipal e estadual de 1954.

Em 1956, Valdir de Morais vestiu a camisa da seleção brasileira pela primeira vez, num combinado gaúcho que ganhou o Pan-Americano do México. Dois anos depois, foi chamado a defender o Palmeiras, onde estreou em 10 de maio de 1959, num clássico contra o Corinthians vencido por seu time em 2 a 1. Pelo Palmeiras, onde permaneceu até o encerramento de sua carreira como goleiro, em agosto de 1968, ganhou duas vezes a Taça Brasil (1960 e 1967), venceu uma vez o torneio Rio São Paulo (1965) e três vezes o campeonato paulista (1959, 1963 e 1966).

Participou, como goleiro, da preparação da seleção brasileira para as copas do mundo de 1962 e 1966. Na primeira ocasião, viu-se cortado para a disputa no Chile à véspera do torneio, em favor dos titulares Gilmar e Castilho, já que não havia a opção de escalação de um terceiro atleta para sua função. Em 1966, sua não inclusão no time que disputaria a copa da Inglaterra rendeu protestos da imprensa e de torcedores.

Em 1969, encerrada sua carreira como atleta, voltou ao futebol por um período de seis meses, como treinador do Juventude de Caxias do Sul, mas não considerou a experiência bem-sucedida. Pelas mãos do técnico Osvaldo Brandão, voltou ao Palmeiras nesse mesmo ano para exercer uma função nova, a de treinador de goleiros, sugerida e elaborada pelo próprio Valdir.

Foi como treinador de goleiros que, pelas décadas seguintes, Valdir de Morais consolidou sua importância no mundo do futebol. Como treinador de goleiros e auxiliar técnico de Telê Santana, chegou novamente à seleção brasileira, mas desta vez pôde disputar integralmente duas copas, a de 1982, na Espanha, e a de 1986, no México. Não foram duas experiências vitoriosas, mas prestigiadas, e elas consolidaram sua importância como treinador de atletas no gol e olheiro. Na preparação para a Olimpíada de 2000, ele auxiliou Vanderlei Luxemburgo a partir de sua base em São Paulo, onde Valdir treinava os goleiros do Corinthians. Com Vanderlei, Valdir ganhou a Copa América no Paraguai, em 1999.

Além de Brandão e Telê, chamaram-no a compor suas equipes técnicos como Carlos Alberto Parreira, pelo Corinthians, a partir dos anos 90. Esteve na Arábia Saudita por duas temporadas nos anos 80. Na mesma década, treinou os goleiros do Grêmio, por duas ocasiões. No São Paulo Futebol Clube, trabalhou com Poy, Cilinho e Telê Santana, e esteve ao lado deste último nas  conquistas mundiais do clube. No primeiro semestre do ano em que esta entrevista se realizou, havia atuado pelo Santo André, na mesma função de treinador de goleiros, por seis meses.