O filme britânico “Broken English”, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, faz homenagem à cantora e compositora morta em janeiro deste ano

“Broken English”, dos diretores Jane Pollard e Iain Forsyth, é uma hagiografia amorosa da cantora e compositora inglesa Marianne Faithfull (1946-2025). Um documento de amizade justificado não apenas por ter sido Marianne quem foi, autora, entre outros, dos versos da canção que intitula o filme, mas pelo sofrimento experimentado por ela ao exercer o protagonismo feminino em época tão desinteressada disso.
Sob o frio chuvoso de 29 de outubro de 2025, a caminho da sessão do documentário no Cine Satyros Bijou, na praça Roosevelt paulistana, eu me sentia um tanto como em maio de 1990, quando vi uma apresentação ao vivo da artista em Paris. Tinha medo e andava só.
Verdade que pouco deveria temer em São Paulo agora, pois moro na vizinhança e sei onde piso, ao contrário do que acontecia no bairro parisiense à época de minha juventude. Mas é que os dois bairros, o da República e o La Pigalle parisiense, algo se aproximam, visitados não só pela boemia artística como pela dor da pobreza e da prostituição, com as quais não sei lidar ao certo (mas à solidão, me acostumo bem).
Era noite iluminada pelas cores carmim e esmeralda, como naquela Paris, quando cheguei à porta do Satyros, eternamente o Bijou de minha infância e adolescência. As cadeiras vermelhas da pequena sala de cinema (as poltronas do La Cigale tinham cor idêntica) estavam no mesmo lugar. No Bijou, eu pude assistir quantas vezes desejei, em uma mesma sessão, aos filmes que me impressionaram, tão diversos entre si quanto “A Crônica de Hellstrom” (1971) e “O Amigo Americano” (1977) pudessem ser. Agora somos obrigados a sair da sala tão logo acabe o filme. Agora também não há mais pulgas e outros bichos eventuais entre as cadeiras. Mas a conversa lá fora, nós a ouvimos como antes, sem que ninguém se anime a interromper.
Não à toa, portanto, o passado voltou. Era pleno porque eu via Marianne na tela também. Filmado em algum ponto de 2024 até o início de 2025, quando a artista morreu, o longa me revelava, contudo, uma outra mulher. O rosto arredondado e liso parecia afável, apesar de o tubo para a entrada de oxigênio estar visível. E o sorriso constante dos últimos dias seria impossível de perceber em 1990, quando a soberba se destacava na sua expressão facial e na postura de palco, o cigarro eternamente entre os dedos. Uma condição que, para mim, gritava Marianne até ver este documentário, presente na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Nele a artista acresceria, ao forte orgulho, a raiva e a luxúria como seus pecados capitais prediletos, todos eles reverenciados no álbum de 1998 “The seven deadly sins”.

Amei aquela mulher como amei a Rita Lee de início, os cabelos longos franjeados, a ousadia de estar entre a soberba masculina do mundo do rock com o talento, a beleza e a ousadia das roupas e sapatos. Hoje podemos calcular apenas longinquamente o quanto este ambiente custou para as duas artistas. Internações, overdose, depressão e isolamento eram constantes em Marianne. O descrédito doía. Igualmente machucava a tentativa de apagá-la ao torná-la “visível” em manchetes como aquela que relatou sua pretensa nudez numa festa em casa do guitarrista Keith Richards. “Era muito mais lógico para eles que eu tivesse morrido”, ela crê.

Eis um filme feito de muitas reflexões sobre o ato de fazer um filme e sobre a predominância do desejo de não-esquecimento, proferido pela atriz Tilda Swinton como quem dirige o documentário a partir de uma cabine do tempo. O restabelecimento do poder feminino é a tônica expressa por debatedoras, atrizes e até por uma performance da cantora Courtney Love.

Bob Dylan à máquina de escrever, cantando Marianne na cara dura
Marianne conta que “Sister Morphine”, sua primeira composição de sucesso (ela diz que fez a letra para que Mick Jagger parasse de tocar a melodia na guitarra o dia todo), foi desautorizada às paradas depois do segundo dia de execução pública. Não era possível que revelasse vício a voz de uma jovem a quem o mercado atribuía tamanho encanto – este compartilhado pelo músico Bob Dylan, que lhe dedicou um poema na cara dura, mesmo estando ao lado da mulher, a cantora Joan Baez, tão admirada pela inglesa. Marianne diz que nem viciada era então. Contudo, a canção parecia liberada para que Mick Jagger, o então namorado com quem vivia, a interpretasse sob aplauso geral. “Por que você não se manifestou a respeito? Você ou Jagger?”, perguntou-lhe no filme o apresentador George MacKay, de 33 anos, ao mostrar extratos de suas entrevistas e apresentações. “Não sei”, Marianne respondeu, após hesitar. “Não éramos tão conscientes disso quanto vocês hoje são.”
O filme brilha no fim, quando Nick Cave rege em estúdio a sessão final de gravação da vida da artista.
Saio do meu Bijou inquieta como as luzes vermelhas e verdes projetadas sobre a rua molhada. Saio como quem reflete. Decidida a não esquecer uma das verdades de Marianne proferida no filme, prezo a incerteza, rica como a água da chuva que corre.

Iain Forsyth e Jane Pollard, os diretores de “Broken English”
