Eleanor Marx, a saga e o rock

No longa em exibição na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a filha mais nova do pensador alemão tem a trágica trajetória narrada pela cineasta italiana Susanna Nicchiarelli

Romola Garai interpreta Eleanor, filha caçula de Marx e socialista dedicada à obra do pai

Antes de sua morte em 1883, aos 65 anos, Karl Marx assistiu ao perecer de cinco de seus familiares mais íntimos, quatro filhos e a mulher Jenny. Foi um marido apaixonado e um pai tão bom para todos que, enquanto se concentrava para a escrita de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, por vezes interrompeu o trabalho e se atrelou, como um cavalo, a uma fila de cadeiras de pés quebrados. Atrás dele, os filhos usavam sobre suas costas um chicote imaginário, e assim ele fazia a carruagem andar.

Patrick Kennedy vive Edward Aveling, militante marxista que significou a ruína para Eleanor

Eleanor, a Tussy, era a filha mais nova a puxar pelo pai. Estudiosa de sua obra, ela inicialmente, como a irmã Jennychen, desejou os palcos, mas o pai a proibiu de ser atriz. Suas filhas, preocupava-se Marx, deveriam casar-se bem para evitar a miséria e a exclusão social. Ainda assim, elas prosseguiram a pensar, traduzir e ler. Nascida na Inglaterra, Eleanora formulou parâmetros para a ação libertária feminina dentro da Liga Socialista. Mas, no meio disso, uniu-se ao eminente militante marxista britânico Edward Aveling, um mulherengo e perdulário que foi sua ruína. Suicidou-se aos 43 anos, da mesma forma que a irmã Laura, morta junto ao marido Paul Lafargue.

Eleanor em foto de 1871, aos 16 anos
A eletrizante biografia da família Marx, aqui publicada em 2013


MISS MARX, longa-metragem da italiana Susana Nicchiarelli, parece sabedor das informações apontadas neste texto, muitas delas organizadas na eletrizante biografia familiar “Amor e Capital”, de Mary Gabriel (Zahar, 2013). Mas as utiliza displicentemente, como se falasse apenas aos marxistas sabedores dos bastidores históricos. O filme sofre de mimetizar a ousadia de Sofia Coppola, que um dia transformou Maria Antonieta em uma figura hollywoodiana sobre os tênis do presente.

Susanna Nicchiarelli, a diretora de Miss Marx

Eis que Nicchiarelli se sente livre, depois de Sofia, para afogar o desespero de Eleanora no bom punk do Downtown Boys. Seu filme tem uma fotografia de qualidade, como se ela trouxesse a nossos corpos a umidade londrina, a se espalhar por tecidos, casacos e tapetes entre o verde e o vermelho. De resto, contudo, MISS MARX é uma oportunidade perdida.

Um punk dos Downtown Boys para a triste Eleanor desabafar

Miss Marx (Miss Marx)

Dir.: Susanna Nicchiarelli

Itália, Bélgica

2020

107 min

https://mostraplay.mostra.org/search.html?q=miss+marx

As lágrimas apagadas

Documentário refaz a trajetória de Vivian, a primeira esposa
de Johnny Cash, perseguida pela Ku Klux Klan e descaracterizada pela cinebiografia “Johnny e June”, lançada há 15 anos

Vivian, que nasceu Liberto, a primeira e controversa esposa de Johnny Cash

Quando um pintor deseja modificar um trecho indesejado de seu quadro, cobre-o usando o pincel. Mas, conforme o tempo passa, seu quadro corre um risco. O envelhecimento pode anular a camada de tinta e fazer surgir o que ficou encoberto. A este processo, na pintura, se intitula “arrependimento”. Vivemos para constatar algo parecido surgir no cenário da música popular estadunidense. Vivian Liberto (1934-2005), a primeira esposa de Johnny Cash, foi apagada de um quadro inteiro e o arrependimento começou.

Na sua festa de casamento com Cash, em 1954

Vivian conheceu o marido aos 17 anos numa pista de patins enquanto ele, aos 19, prestava serviço militar em San Antonio, Texas. Cash viajou para servir em Berlim, escreveu-lhe mil cartas apaixonadas e de volta casou-se com ela. Tiveram quatro filhas em breve período, enquanto sua carreira explodia e eles se mudavam para uma montanha na Califórnia. De menina católica do interior, Vivian se viu cercada por flashes e fãs. Não tardaria em se apoiar numa espingarda capaz de livrá-la tanto das cascavéis quanto de possíveis ataques da Ku Klux Klan. Entendida como negra pelos supremacistas, Vivian precisou declarar-se branca em juízo para que o marido pudesse fazer shows no sul. Logo, mergulhado em drogas e em novo amor, o músico não voltaria mais para casa.

Ao centro, rodeada pelas filhas, anos depois da separação

Endemonizar a mãe solitária e rechaçada pelo establishment foi o que fez Johnny e June, cinebiografia de 2005 que deu o Oscar a Reese Witherspoon no papel de June Carter, a segunda mulher de Cash. No filme, Ginnifer Goodwin interpreta Vivian, parodiada no Saturday Night Live por Kristen Wiig. O documentário My Darling Vivian, que não é musical, mostra como até mesmo o único agradecimento feito à primeira esposa, durante o funeral de Cash, foi cortado pela transmissão televisiva do evento. Suas filhas produziram este filme de narrativa tradicional, recheado de depoimentos, fotos e efeitos delicadamente especiais, para dar sua versão sobre a mãe cancelada, e já era tempo.

MY DARLING VIVIAN
Diretor: Matt Riddlehoover
Brasil, 2019, 90 min

onde: bit.ly/3hIMcWs [até 20/9, às 18h]

when you’re smiling

“the many faces of billie holiday” (https://youtu.be/wiEcL372LD0, filme para a tevê de matthew seig) talvez seja o melhor documento que conheci sobre billie holiday.

nada de sensacional se apresenta nele exceto a voz da cantora, analisada e respeitada, neste filme de 1990, por alguns dos músicos e produtores que com ela conviveram e que permaneciam vivos à época.

(mal waldron, por exemplo, muito jovem quando chamado a acompanhá-la, tinha exatamente esse rosto sereno quando o vi tocar…)

billie sofre nas biografias.

apanha, literalmente, jogada ao chão.

há essa tendência de a retratar em meio à ruína, como acontece com a carolina de jesus.

mas eu gosto de billie como está aqui, linda e luminosa na maior parte das vezes… da mesma maneira que amo carolina sem o lenço na cabeça, elegante e digna no seu encontro com clarice.

billie sabia rir e chorar, evitava a impessoalidade, falava consigo enquanto cantava para os outros. e, ainda mais raro, comunicava o seu ser e sua história, a tristeza e a alegria de viver no mundo, em cada canção.

conheçam sua maneira moderna e a voz como um trompete do íntimo, à moda do ídolo louis armstrong…

descubram como sua arte sempre foi, à parte todos os ruídos e feridas da vida pública, esse saber interpretar.