Um remédio para a dor.

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Emma Stone e Ryan Gosling em La La Land: dançar é o de menos.

La La Land não é tão pior assim que Moonlight. E talvez tenha até mesmo algo a dizer sobre o cinema.

Eu não iria assistir a La La Land – Cantando as Estações. Não tinha motivos. Amo musicais, mas os protagonistas deste filme, Ryan Gosling e Emma Stone, me indicavam desconhecimento de causa. Não dei muita importância à troca de envelopes que resultou em La La Land ser anunciado erroneamente como melhor filme no lugar de Moonlight – Sob a Luz do Luar. O escândalo vende a festa. E a arte não visita o Oscar há décadas…

Quero apenas dizer que minhas objeções ao musical nasciam de impressões. Gosling não parecia ter a gana de quem voava com asas no pé, distante demais de um Gene Kelly. Mas lhe dei uma chance por várias razões. Uma delas é que sempre, ao caminhar nos filmes, Gosling o fez com algum porte, uma ginga ligeira. Mesmo que não pudesse exibir as provas de um ofício, ele parecia ter o corpo mais adequado à lida do que Emma Stone. Me esforço para entender o fascínio por esta atriz. Existe o fascínio, sem dúvida. Talvez ele nasça de seus olhos, grandes a ponto de expressar a surpresa e a procura de uma menina-moça, longinquamente próximos daqueles de Leslie Caron, que, contudo, sabia dançar. Enfrentar o filme, talvez? Uma amiga havia gostado de todo o sonho vendido pelo diretor Damien Chazelle. Das cores idas e vindas nas sequências, como leituras dos sentimentos dos personagens. Minha amiga desenha vestidos oníricos, com estampas e textura arduamente buscadas. E se ela achava haver qualquer coisa a conferir em La La Land, por que não?

Ainda assim, decidir-se pelo filme me trazia grandes dificuldades. Cinema não é cor, figurino ou cenário. Nem mesmo beleza. Cinema é drama. Mesmo nos piores momentos, se por acaso hoje pudéssemos aceitá-los como piores, Fred Astaire dançou e cantou sem qualquer dúvida, diante de cenários estupendos, com histórias divertidas a sustentar os diálogos. Vigorava então o código de censura Hays, e era preciso driblá-lo, sem fazer menções diretas ao sexo. Enquanto o código vigorou, entre as décadas de 1930 e 1970, os musicais mostraram os corpos em dança sobre o palco em lugar de fazê-los rodopiar sobre a cama. E havia que interpretar as canções, os gritos dilacerados da decepção ou do regozijo do amor, com idêntico erotismo oculto. Os diálogos exigiam maturidade, ironia, tom. Drama cem por cento, mesmo sob a comédia.

Mel Tormé, um dos grandes intérpretes da canção americana, dizia não ter havido sobre a Terra um único cantor melhor do que Astaire, cuja voz, em seu entender, ultrapassou os musicais (quando declarou isso, em 1994, durante um show no Café Carlyle, em Nova York, Tormé apontou sorridente para a própria garganta, primor das ironias, de modo a dirimir dúvidas sobre qual qualidade desejava ressaltar em Astaire; ademais, era seu modo de resolver a disputa crítica, hoje esquecida, entre sua voz e a de Frank Sinatra. Sua astúcia foi despejar o atributo de melhor cantor a um terceiro, Astaire…)

Decidi-me enfim por La La Land porque não havia o que fazer. Ocasionalmente, preciso de um “me tirem daqui, por deus”, esse que o cinema me oferecera no passado. Vou às salas por hábito, não por esperança. Um ousado musical em nossos dias? Você pensa que me engana, e eu finjo acreditar. Dois dias antes, preciso dizer, assistira a Moonlight, do diretor Barry Jenkins. Ficara com a sensação incômoda de reviver a eterna telenovela brasileira no cinema, o conhecido exagero expressivo em plano próximo. Gritos, o agito de braços e mãos quando a dramaturgia dá sinais de falir… Algumas sequências eram irrecuperáveis, à moda daquela, interrompida e desritmada, em que a canção de Caetano Veloso emoldurava o percurso do protagonista pela estrada até reencontrar-se com seu verdadeiro amor. Em Moonlight, contudo, alguns dos atores coadjuvantes expressavam com contenção um drama maior (Mahershala Ali talvez não tenha sido o melhor deles; venceu o Oscar, suspeito, por reverência a seu papel de cínica elegância em House of Cards). E a infantilidade do filme servia à narrativa de uma trajetória em formação.

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Mahershala Ali, vencedor do Oscar de melhor ator coadjuvante.

 

Moonlight  e sua câmera voyeur… No início, ela gira sobre os personagens no pátio da escola como se reproduzisse a perspectiva do espectador da briga, de quem assiste ao bullying praticado contra o menino homossexual. O diretor quer que ele cambaleie também? Pelo menos minha vertigem, Barry Jenkins obteve, mesmo que eu jamais tenha presenciado um embate físico à saída do colégio. Uma certa insistência em caminhar com o personagem por trás, às vezes à altura da cabeça, faz ampliar a sensação de uma curiosidade principiante, essa que talvez, justamente, tenha contribuído para aumentar, sobre o filme, a enorme empatia. O protagonista hesita em sua procura sexual e existencial, assim como parece girar em torno da verdade o próprio cineasta, mais experimentado em curtas-metragens. Contudo, necessário dizer que ele soube expressar uma beleza. Fez o espectador mergulhar com certa naturalidade nos objetos de cena e no figurino de um ambiente segregado. Seus homens e mulheres, aparentemente distantes de nós pela língua, origem ou etnia, misturam-se àqueles que conhecemos em nossos bairros pobres pela fragilidade diante do caos da vida.

Em La La Land,  na direção oposta, há um distanciamento ensinado pelo cinema. Esse caminho o faz evocar as cinematografias do passado. A sequência inicial da obra momentaneamente nos transporta ao cenário dos carros à espera em Oito e Meio, do qual o diretor interpretado por Marcello Mastroianni sai em voo, como um herói da HQ. Mas, em La La Land, durante um  ensaiado plano-sequência, não há um apelo à subjetividade do personagem, antes à concretude da situação. Os motoristas engarrafados, em lugar de voar, sobem nos carros, cientes de sua realidade, do papel escapista do cinema, e ali revivem sua condição de outsiders. Uma intenção felliniana, à moda de La Nave Va, às vezes estiliza o chão, tornado líquido. Tudo se mistura, o que é real e o que cinicamente o transpõe. Sério, os protagonistas deste filme não sabem dançar nem cantar. Mas é isto: tampouco nós. Ademais, o filme tem a coragem de remodelar a ideia de um final feliz e de nos conformar descaradamente com o que temos, como prometera no início.

Quero dizer que gostei mais de La La Land que de Midnight? Talvez. Entre um chuchu e um pepino, me deem os pepinos, os problemas. Contudo, é preciso atentar para o fato de os filmes não se terem confundido por acaso ao final da atrapalhada apresentação do Oscar. Os dois caminham em simetrias. São muito parecidos. Discorrem sobre aquilo que, em nossas vidas, poderia ter sido e não foi. Ou, amplamente, como a inconsciência dos filmes parece propor, discutem a distopia de uma nação decaída – aquela democracia que poderia ter sido e não aconteceu. Principalmente, as ficções tentam acomodar a situação, sem apontar perdedores. Se apontam a regressão, indicam ao mesmo tempo que ninguém deve perder o sono por ela. Valorizam o trabalho sobre os afetos e querem nos fazer acreditar que o verdadeiro, eterno amor, pode sobreviver à ausência corporal, como uma nação, a seus ideais não concretizados. O sentimento não é novo, apenas renovado. Bette Davis, americana número um, não acreditava muito nas relações pessoais (tão frustrantes, dizia) e preferia, por isso, emendar mergulhos no cinema. A fé no trabalho pode ser, sim, um remédio para a dor.

Por Rosane Pavam

3 comentários sobre “Um remédio para a dor.

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