Às vezes você se ilude achando que não vai precisar discutir mais certas coisas, de tão ultrapassadas.
Mas é claro que certas coisas continuam intransponíveis.
Pego o uber e o motorista de uns 35 anos, já com um início de calvície, usa um boné maneiro. Somado a seu estado corporal, ele é uma espécie de Chorão do Charlie Brown sem a consciência crítica. Todo ele, pelo contrário, é mais a fúria inconsciente.
Vamos para a Barra Funda, que em certos trechos, mais funda não poderia ser.
– Esses caras espalhados pelo chão me dão uma raiva – o motorista vai dizendo.
– Raiva por quê? – vou perguntando, em lugar de sabiamente interromper a possibilidade de discussão.
– O problema, eu acho, é esse tal de direitos humanos – ele responde.
– Por que direitos humanos seriam um problema?
– Porque essas pessoas que ficam na rua matam inocentes.
– E você acha que sem direitos humanos se faz justiça?
– Não sei. Elas não folgam, ao menos. Eu sei que tem miséria no meio, mas tem também malandragem.
– Malandragem é morar ao relento?
– Malandragem assim, como vi outro dia. O amigo disse pro outro: “Trabalhar pra quê se a gente recebe o dinheiro do Bolsonaro?”
– Quanta ignorância, né amigo?
– Muita!
– Você sabe que o dinheiro não é do Bolsonaro, né? É nosso!
– É nosso, claro!
– E ele nem queria distribuir pros pobres, né? Foi o Congresso que obrigou.
– Isso!
– Então. Que sentido faz pedir o fim dos direitos humanos? Isso é pedir o fim dos nossos direitos. Dos nossos, que não somos ricos. O direito a um julgamento justo. Porque os ricos não vão presos, certo?
– Não vão, é revoltante, o povo não aguenta mais!
– Então. Sem direitos humanos, quem vai decidir sobre nossa vida? Quem vai nos defender? O Bolsonaro?
– Ele é que não!
– Então não vamos pedir o fim dos direitos humanos, tá? É nossa garantia de sobrevivência.
– Mas que me dá uma raiva a senhora não imagina.
– Raiva do povo ou raiva do Bolsonaro? Você precisa escolher.
– Tenho mais raiva do povo. Mas vou pensar, prometo.